sábado, 26 de dezembro de 2009

Eu quero é ser feliz!

Bom, passados os inevitáveis excessos da ceia com a família e do almoço no dia seguinte na casa da sogra com aquele monte de parentes que mais parecem uma das pragas bíblicas, recomeçamos a vida no dia 26, entre antiácidos e dietas de desintoxicação, lânguidos e trêmulos olhares para o cake de nozes e uma absoluta falta de imaginação para reaproveitar as sobras de tanta comilança... No entanto, apesar do estômago em frangalhos, o ponteiro acusador da balança e a empregada nova, nada pode me abater hoje. Não pretendo descumprir as minhas promessas de fim de ano, então acredito que a minha ceia de ano novo consistirá em algumas folhas de alface e agrião, sete tomatinhos cereja, peito de frango grelhado com batatas cozidas e um potinho de sorvete diet que devorarei na mais santa alegria. Acho que isto é suficiente para me alimentar (e ainda tenho o bônus de um sorvete!) deixar meu espírito -e meu intestino- leve e me deixar pronta para encarar o que me aguarda em 2010. Por um lado, o ponteiro da balança vai descer, e pelo outro, o da minha felicidade vai subir, e espero que seja bastante!...
E aqui vai a desta semana, a última do ano, porque a próxima já será no ano novo.

Gosto que meu dia seja ocupado, ativo, uma hora envolvido com os alunos, outra com meus textos, ou então com filmes, passeios, meditações, panelas, pássaros, cachorros e plantas, com compras e contas, com cochilos e mudanças na decoração. Gosto de estar em constante contemplação para assim aprender; adoro viver criando, ensinando, refletindo. Gosto de perceber tudo que me rodeia e de estar sempre nesta luta pelo aperfeiçoamento, pela melhora da minha saúde física e espiritual e, especialmente, pelo crescimento e consciência da minha felicidade, pois tenho certeza de que todo e qualquer bem que eu consiga irá se refletir automaticamente no ambiente e nas pessoas que estão à minha volta. No fundo, todos somos geradores e propagadores do bem, do crescimento, da saúde, da sabedoria, do consolo e da compaixão, mas nem sempre temos uma consciência clara deste fato e assim, o deixamos passar como se sequer existisse, perdendo chances únicas e irrepetíveis de experimentar esta sensação maravilhosa, diferente de todas as outras, mágica e renovadora, que é a felicidade. Porém, e mesmo apesar disto, somos nós mesmos quem propiciamos e espalhamos o paraiso ao nosso redor, esta é a verdade, e o toque do amor com que fazemos isto pode verdadeiramente ser capaz de transformar os outros e de resolver as situações mais difíceis das formas mais impensadas. Nós temos este poder!... Céu e inferno habitam dentro de nós, tornando-nos mortais e eternos ao mesmo tempo, mas cabe a nós fazer a escolha e aceitar as suas conseqüências. Ser feliz ou infeliz é, afinal de contas, uma opção somente nossa, que pode aparecer diante de nós a qualquer hora, em qualquer lugar, pois nada é definitivo e sempre podemos mudar o nosso caminho.
Lembro-me de quando era adolescente e todos na família me perguntavam o que planejava ser quando terminasse meus estúdios, tremendamente preocupados com a minha aparente falta de ambição e definição nesta área. "O que você quer ser? O que vai estudar? Onde vai trabalhar? Quanto pretende ganhar? E o que vai fazer com o salário?"... Era a ladainha de todo dia, e eu, invariavelmente, tinha sempre a mesma resposta: "Eu quero é ser feliz!", o que era um agourento despropósito para os tempos que estávamos vivendo, exigentes e ferozmente competitivos, onde o que valia era o status, a especialização, a pós-graduação, a ambição... "Mas ser feliz não é uma profissão! Não dá dinheiro! Nós estamos falando de algo concreto e não desses teus sonhos utópicos!", retrucavam, escandalizados. E eu alegava, perplexa diante da sua total falta de lógica: "Mas, existe algo mais concreto e importante na vida do que a felicidade? Nada vai valer a pena se você não for feliz! Não quero um futuro próspero e infeliz!"...
E ainda acredito piamente nisto, hoje mais do que nunca, sobretudo vendo tudo que consegui me entregando sem reservas a esta empreitada, pois a minha convicção nesta premisa era tão grande que conseguiu mudar a minha vida, traçou meus caminhos e ditou as regras, que eu não hesitei em seguir. Ser e fazer a felicidade é o que realmente nos realiza, não importa como, onde ou com quem. O verdadeiro anseio pela felicidade nos mostra os caminhos, nos abre as portas, nos coloca nos lugares certos, nos apresenta ás pessoas e ás situações que irão aprimorar as nossas potencialidades e acelerar o nosso crescimento para assim podermos seguir o rumo certo e atingir os nossos objetivos de vida. Com certeza, a vontade de ser feliz é sempre a luz que podemos acender na mais profunda escuridão. Acredito totalmente que perseguir e alcançar a felicidade é o "bom encontro", como diria Spinosa, pois é encontrar Deus em si mesmo, é encontrar a si mesmo e isto pode modificar tudo em nosso interior e à nossa volta. Apoiados no desejo de ser felizes nos tornamos capazes de encarar cualquer desafio ou provação, já que à felicidade se alia naturalmente o otimismo e a fé, que permearão os nossos atos, as nossa decisões e processos, facilitando assím a descoberta de soluções para os problemas... E se por ventura fracassarmos, a felicidade ainda nos sustentará e nos fará reunir novas forças para continuar a lutar, fazendo com que deste fracasso tiremos uma lição valiosa que irá nos ajudar em outras situações difíceis. Não existe só um motivo que nos deixe felizes, a felicidade não se baseia numa única coisa, situação ou pessoa, mas sim num conjunto de todas elas, que estão espalhadas em todas as áreas da nossa existência. Então, se não temos sucesso numa, ainda nos restam todas as outras para nos manter felizes e dispostos a abrir novas portas e percorrer novos caminhos.
Não interessa quanto se tem, ou o que se faz, onde se mora, quem se é. Vivendo em felicidade, a realização é certa, mesmo que ela não signifique riqueza, fama ou poder, porque ser feliz não é uma profissão, mas uma escolha de vida.
"O que nos define não são as nossas habilidades, mas as nossas escolhas" (Dumbledore, Harry Potter)

domingo, 20 de dezembro de 2009

Manhã, tarde e noite

Finalmente de férias (agora sim podem fazer carinha de inveja!) e acho que vou poder começar a cuidar um pouco mais de mim mesma, coisa que estou precisando um bocado. Pretendo voltar às minhas caminhadas matinais, à dieta certa e à produção literária, que anda bastante prejudicada com tanto desgosto, trabalho e doença. Não vou esperar o dia de ano novo para fazer as minhas promessas, vou começar a cumpri-las a partir de hoje mesmo!... Afinal, fim de ano não é só para avaliações, cobranças, arrependimentos ou críticas, mas também -e principalmente, acho eu- para novos começos, para reciclagem, para renovação física e espiritual, para limpeza e renovação da fé e do otimismo. E se posso começar agora, por que aguardar até o dia 31?... Meu ano novo já está correndo!.

É tão diferente sentar-se aqui fora ao entardecer para escrever!... É incrível como o cenário muda da manhã para esta hora! No fim do dia vem a penumbra, rápida e bela, dramática, e em seguida a escuridão, povoada de sombras, mistérios e insetos que sonham com beijar a luz dos postes e das garagens e, qual Romeus desenganados, acabam morrendo no instante em que o conseguem. À noite a cidade se enche de luzes artificiais, de uma expectativa sem respostas, daquela languidez que chama a janta, a novela, o banho, a cama... Os sons e os movimentos são outros. Os pássaros, vibrantes e velozes pela manhã, desaparecem, confundindo-se com a folhagem escura e silenciosa das árvores; o frescor é diferente, cansado e denso, impregnado de perfumes e suor; a paisagem se mostra menos nítida, algo mórbida, sem definições... Este não é, definitivamente, o melhor periodo para eu produzir qualquer coisa, mesmo se, raramente, tem as suas excelentes exceções. Sou uma pessoa totalmente diurna, adoro o amanhecer, a manhã, o sol, os pássaros e a sua algaravia, a energia do novo dia e seu frescor -mesmo no nosso verão escaldante- a expectativa, os desafios que ainda nos aguardam, aquela incomparável sensação de constante renascimento, de possibilidades criativas, de estar acordada e viva... Já o fim do dia me leva ao repouso, a uma certa letargia, a um quê de inquietação, de avaliação -quase sempre positiva, graças à Deus- de término. É um apagar-se, esvair-se, um diluir-se no sono que começa a rondar os nossos gestos, palavras e pensamentos, nossos olhares e intenções. É aquela preguiça gostosa e cheia de dengo que não quer saber de mais nada. Logo depois de almoço começo a ser tomada por esta sensação de que tudo vai parando -pois a minha mente já está cheia de imagens, vozes, acontecimentos, revelações e conclusões, o que significa que é hora de parar e começar a refletir- adormecendo, de que o periodo de atividade foi encerrado uma vez que a última garfada de comida caiu no estômago. Faço a minha antológica sesta e vou para o trabalho, onde sou obrigada a produzir, a me mexer, falar, tomar decisões e encarar turmas de alunos irrequietos e barulhentos, ansiosos para aprender, mas estou convencida de que se ficasse em casa e tentasse criar alguma coisa meu cérebro simplesmente se negaria a funcionar. Precisaria de um esforço enorme para programar meu corpo e a minha mente para se acostumarem a produzir às tardes... Na verdade, estou sempre tentando, mas até agora não obtive muito sucesso na empreitada...
Gosto da noite para me despir de tudo e me preparar para o constante e novo amanhã, para seus desafios e descobertas, seus encontros e lições, para o diário renascer e refazer. A luz se vá, as imagens mergulham na escuridão imóvel do céu, a definição esvanece, os contornos tornam-se incertos... No ar cheiro de janta, chuveiros ligados, carros voltando para casa, música e vozes de jornal, de novela... O mundo se recolhe, adentra no silêncio do seu cansaço e, finalmente, adormece. Tudo acaba, mais uma vez... Para recomeçar amanhã, e amanhã, e amanhã de novo. Amanhã para sempre, quer estejamos ainda aqui ou não.

sábado, 12 de dezembro de 2009

A experiência

E como prometido, aqui vai a segunda crônica, para ficarmos em dia... Mas na verdade estou tão contente que seria capaz de postar algumas outras por puro prazer; porém, como não pretendo que tenham uma indigestão, não vou exagerar, então, serão somente estas duas neste final de semana.

Chego à conclusão, após mais um ano de trabalho duro e nem sempre muito gratificante em todas as áreas, de que o que realmente importa nesta vida é a experiência, a vivência; são os processos de descoberta, compreensão e conclusão pelos quais passamos ao longo dos anos, pois é só através deles que nós crescemos e amadurecemos, que aprendemos a conviver, a interagir, a aceitar e a nos doar para o bem do outro. Agora, para medir o sucesso destas experiências não é necessário que tenhamos nos tornado ricos, famosos ou poderosos, pois não é por estes motivos que passamos por elas, mas para nos tornar mais sábios, compassivos e pacíficos. A experiência é composta por uma série de processos que podem ser sumamente enriquecedores, portanto, não devemos subestimá-lo ou tentar minimizá-lo, menos ainda esquivar-nos dela ou descartá-la. Pena que, com demasiada freqüência, as pessoas só se preocupam com os resultados, sem importar-se muito com a qualidade da experiência, com os detalhes, os sinais, as mensagens, o percurso em si. Querem mais é mostrar do que são capazes, mas eu acho que não é preciso montar uma exposição no Louvre para dizer que pintamos, ou publicar um best-seller mundial para chamar-nos de escritores. Não temos que subir ao palco da Ópera de Paris para provar que cantamos nem fazer piruetas espantosas sob os holofotes do Bolshoi... Mas, por que será que sempre procuramos mais uma experiência limite, que fique conhecida e nos dê prestígio perante a mídia ao invés de investir em ações mais discretas, porém efetivas e que, de qualquer forma, poderiam nos levar aos mesmos resultados? Acho que é porque este é o comportamento padrão, aquele que é aceito pela sociedade e ninguém está disposto a correr o risco de ficar à margem dela... Mas a intenção primordial da nossa existência é poder compartilhar a felicidade da nossa experiência e assim animar outros a se aventurarem por estas veredas tão gratificantes e cheias de descobertas e emoções únicas e transformadoras. O pequeno também tem seu mérito -que, por sinal, é enorme- e não podemos esquecer que a grandes coisas são formadas por partículas minúsculas, as obras mais célebres por palavras, notas, grãos de areia, passos e frases.
Uma experiência vivida plenamente pode, efetivamente, transformar a nossa existência, abrindo portas e desvendando caminhos impensados e bem mais duradouros e enriquecedores do que os conhecidos e percorridos pela maioria

A grande performance

Bom, e para começar a recuperar o tempo perdido por causa de viroses, apresentações, ensaios e reuniões de todo tipo, visitas ao médico e à oficina técnica da loja de computadores, aqui vai a primeira crônica das que estou devendo-lhes. Hoje, amanhã e até quinta-feira da semana que vem ainda estarei bastante ocupada, pois, ao invés de sair de férias (mas podem continuar com inveja porque sairei na próxima sexta) como eu pensava, vou ter de apresentar uma peça para arrecadar dinheiro e pagar umas contas da fundação, porque o orçamento ficou curto este ano -coisas da oposição, dizem eles- e só sobramos nós para dar conta deste recado. Em todo caso, ao invés disto estar sendo algum tipo de punição extra, na verdade mais parece um presentão de natal porque, finalmente, estou fazendo aquilo que mais gosto: teatro adulto. Estou cansada (ando por aí durmindo em pé) com a glicemia disparada e uma anemia meio séria, mas estou completa e absurdamente feliz por esta chance bem no fim do que eu achei -e ainda acho- ser o pior ano que já vivi na fundação. Tudo parece estar se recompondo, voltando aos eixos, retomando o rumo lógico... Só espero que a coisa continue assim o ano que vem e que todo este esforço valha a pena. Em todo caso, de qualquer forma terei meu grupo de teatro de novo, o que vai compensar qualquer desgosto que possa aparecer... Como podem perceber, então, meu ano novo já começou, e da melhor forma possível!...
E aqui vai a primeira crônica, que foi publicada esta semana no jornal:

Olho em minha volta e percebo -suponho que como artista que sou- que é tudo uma grande, interminável e perfeita performance. Cenários, personagens e histórias transcorrem sem cessar; alguns são protagonistas, outros coadjuvantes, iluminadores, figurinistas, maquiadores. Algumas vezes somos público, outras atores; outras poucas nos aventuramos a escrever roteiros, a criar textos e viver personagens e ilusões que nem sempre acabam em aplausos ou elogios, nem nos tornam ricos ou famosos. Às vezes nos perdemos entre os cenários, as máscaras e a maquiagem, nos enganamos -e tentamos enganar os outros- com falas e marcações que não sentimos, esquecemos o diálogo. Nos deixamos seduzir pela luz dos holofotes, pelo barulho ensurdecedor dos aplausos, nos envolvemos numa história que não é a nossa.
Quase sempre esquecemos que o ator precisa ser dirigido por alguém mais sábio, precisa aprender, precisa adquirir técnica, desenvoltura, domínio, equilíbrio; precisa trabalhar a sua criatividade, a sua humanidade, tem que investir em seu talento com afinco e perseverança, pois um diamante sem lapidar é tão somente uma pedra e um ator que só decora e repete falas e gestos não passa de um papagaio. A terra é um palco de infinitos cenários pelos quais vamos passando, feito os personagens de um roteiro, nos quais interagimos, crescemos e temos a oportunidade de acrescentar preciosos detalhes à trama. Encontramos nesta história incontáveis ajudantes, protagonistas, mocinhos e bandidos, princesas em perigo, ladrões bons e rainhas más, nos deparamos com heróis e traidores, com sábios e idiotas, somos envolvidos pelo amor e pelo ódio, pela cobiça, pela compaixão, pelas mentiras que nos confundem e escurecem nosso caminho e pela verdade que tudo revela e tudo desimpede, mesmo diante dos maiores desafios.
Olho em volta e me sinto parte real e viva desta peça fantástica que é a existência, com todos seus altos e baixos, seus incontáveis finais e recomeços, suas mil faces e vozes, os encontros e desencontros, os fracassos e as vitórias, a glória e a miséria, e uma imensa onda de gratidão me arrasta para o seio infinito e cálido de Deus que, apesar de ser o criador e o diretor, sempre nos brinda a possibilidade de escolher nosso papel e de improvisar.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Mudanças

Atrasada por falhas técnicas e humanas, porém, fiel e inspirada, aqui vai a crônica da semana passada, e na sexta postarei a desta semana, prometo. Acho que tudo vai voltar ao normal agora que já melhorei -e meu velho samurai (leia-se:computador) também- e como estou prestes a, finalmente, sair de férias (vi alguma carinha de inveja?) agora terei tempo de escrever, de passear, de observar e refletir com calma e profundidade para me renovar e me encher de inspiração e paz. As coisas ruins serão esquecidas e aguardarei por felizes novidades para o ano que vem, que de desgraças este já encheu a sua quota e até extrapolou! Então, como o pêndulo vai e volta, acho que está chegando a hora dele voltar trazendo alegria, otimismo, novos desafios, abrindo portas e mostrando-me novos caminhos e possibilidades que não pretendo desaproveitar... E afinal, o que seria da nossa felicidade e o nosso sucesso se não conhecéssemos a tristeza e as dificuldades?...

Calça preta social, camiseta preta, sapatos fechados pretos e bolsa preta... A moça loira, de pele clara, olhos verdes e bastantes quilos a mais, atravessa com passo rápido e firme a rua em direção ao seu trabalho, uma escura lojinha de auto-peças quase no fim da avenida principal da cidade, espremida entre um lava-carros e um pequeno bar sempre lotado de trabalhadores barulhentos e suas bicicletas atravancando a calçada. Não olha a paisagem ou as outras pessoas, não cumprimenta ninguém, nada parece capaz de fazê-la mudar o ritmo da sua caminhada decidida e pesada, sem graça... Está tão absorta em algum pensamento grave que o mundo à sua volta deixou de existir ou, simplesmente, não tem interesse algum naquilo que a rodeia?...
Todo dia a vejo passar assim, rápida, séria e indiferente, sempre trajando preto -que não é o uniforme da loja, já investiguei- através do portão aberto da academia enquanto suo e ofego na esteira, e todo dia não posso evitar me perguntar por que só usa roupa preta, por que parece tão séria e por que anda tão rápido (será que todo dia perde a hora e precisa correr para chegar em tempo no trabalho?) Não me é totalmente desconhecida, pois faz parte do coral da Fundação Cultural onde trabalho -lá também só vai de roupa preta- e já me cumprimentou algumas vezes com um tímido sorriso ao cruzar comigo à caminho do seu ensaio, mas agora conseguiu despertar a minha curiosidade com seu comportamento, pois a sua presença passou a formar parte da minha rotina diária, o que para mim significa um tipo peculiar de intimidade e cumplicidade, de partilha, que me autoriza a tentar descobrir alguma coisa sobre ela e a sua vida... Nâo sei seu nome e, apesar do seu aspecto algo rude, na verdade é muito tímida e fala quase sempre num murmúrio que parece pedir licença para sair da sua boca e ser escutado... Tem uns dentes lindos, brancos e perfeitos, a cor dos seus cabelos é de um dourado luminoso e, quando solto, se espalha lindamente sobre seus ombros, feito uma cascata de cachos solares. Seus olhos são de um verde no qual se mistura um pouco de azul e, apesar de pequenos e de cílios curtos, se iluminam toda vez que ela sorri, o que é bastante raro... Eu a observo demoradamente, sem que ela perceba, e ao mesmo tempo observo o cenário em sua volta: ninguém parece notá-la, não faz nenhuma diferença no quadro, passa feito o ar, uma sobra fugidia, um vulto ignorado por todos... Será que ela se dá conta deste fato, ou, numa resposta inconsciente, também ignora o mundo ao seu redor? Ou então, realmente não percebe nada?.
Então, de repente me ocorre imaginá-la usando uma blusa com estampas claras, sandálias e calças jeans, uns brincos caprichados, batom e sombra nos olhos, talvez uma presilha colorida no cabelo. Pareceria tão diferente, tão mais leve e amigável! Realçaria a cor da sua pele, o cabelo, os olhos claros, suavizaria as feições tão sérias e pouco graciosas... Será que nunca ninguém falou isso para ela? Será que quando se olha no espelho toda manhã não sente vontade de mudar, de se transformar, de fazer parte do mundo em que vive?... Bom, talvez não. Talvez nem sequer se olhe no espelho. Mas, com certeza, tudo isso seria uma ótima mudança. No entanto, o preto continua prevalecendo, junto com a minha curiosidade.
Falto alguns dias na academia por causa de uma gripe e quando retorno ao meu lugar na torturante esteira, me encontro com uma nova e inesperada visão. Eis que a moça surge no retângulo do portão, como todo dia, mas logo percebo a mudança: está vestindo uma camiseta marrom!... Nâo consigo segurar um sorriso e imediatamente me pergunto o que terá acontecido para ocasionar esta transformação. Será que conheceu alguém? Ou resolveu algum problema grave e isto deixou-a leve e disposta a arriscar alguma mudança, mesmo que pequena? Será que algo ou alguém a fez criar coragem para tomar uma atitude há tempos adiada?... Porque a cor a camiseta é somente o reflexo do que algo aconteceu dentro dela, fazendo-a rever a sua vida e optar por novas atitudes. E em seguida me pergunto: mas, e os outros? Será que eles notaram a diferença? Será que vão falar alguma coisa para ela, elogiá-la, incentivá-la?... Ah, se eu pudesse pular desta esteira neste instante, o faria, para ela perceber que a sua mudança não passou em branco e deixou alguém contente. E me deixou mesmo, pois gosto de ver mudanças positivas acontecendo na vida das pessoas que me rodeiam, quer as conheça ou não! Gosto de alegrar-me com elas e por elas, pois sinto como se fossem minhas também.
A moça desaparece do espaço do portão poucos instantes depois (será que também estava caminhando mais devagar, ou foi impressão minha?) e eu fico sorrindo na minha esteira, suando às bicas e aturando papo furado dos monitores, mas com o coração leve e agradecido, sentindo-me de alguma forma importante no dia dela pelo fato de ter notado seu discreto, porém ousado feito... E enquanto me enxugo perto do bebedouro, penso em todas as mudanças pelas quais passamos ao longo das nossas vidas, essas que são conseqüência de nossas próprias decisões, nosso risco e nosso jeito de manifestar a nossa liberdade de escolha, a nossa responsabilidade, o nosso anseio por melhorar e ser felizes, e me pergunto quantas delas são realmente percebidas e incentivadas por aqueles que nos rodeiam, sem importar seu tamanho ou a sua obviedade; quantas são sinceramente comemoradas por quem nos ama e compartilha a nossa vida, quantas são usadas como exemplo, como porta para maiores transformações. É tão importante recebermos essa força nesses momentos! Mudar é tão sofrido, tão difícil, requer de tanta coragem e perseverança, de tanta fé e força de vontade, que cada passo rumo à transformação tinha que valer um carnaval!... Na verdade, é bem isto que tenho vontade de fazer. Sair correndo atás da moça e abraçá-la, dar-lhe os parabéns e encorajá-la a continuar, pois com certeza, a sua mudança pessoal é também parte da uma mudança na história da humanidade, não importa quão diminuta ela possa parecer. Não se pode esquecer que é de minúsculos grãos que um deserto é formado e é deles que depende a sua beleza, a sua forma, a sua duração... Hoje, a camiseta marrom; amanhã, quem sabe, um batom transparente, uma sandália verde, ou branca, um brinquinho discreto, e a imagem irá se transformando até virar um ponto de luz no quadrado do portão da academia.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Nossa expressão

Bom, dizem que as desgraças nunca vêm sozinhas, e é justamente por isto que esta semana estou tããããão atrasada para postar a minha crônica. Acontece que na quinta-feira passada roubaram a minha bolsa com todos meus documentos, dinheiro, cartões, medidor de glicemia, chaves e agenda, mais meu precioso celular novo, que nem comecei a pagar ainda!... Imaginem como fiquei!... Totalmente desesperada, porque para tirar a segunda via da minha identidade de estrangeira residente é um tremendo rolo e sai super caro; e furiosa pela absoluta impotência diante de alguém que -não sei por que cargas d'água- acha que tem o direito de pegar as minhas coisas, ficar com as que gosta ou podem lhe ser úteis e jogar o resto fora em qualquer data vazia sem o menor escrúpulo... Confesso que ainda tenho a esperança (afinal, é o último que morre) de ter me deparado com um ladrão piedoso e gentil -se é que eles existem- que tenha dó de mim e me devolva, pelo menos, os documentos, evitando-me assim um pouco de transtorno... Vamos ver se santa Rita de Cássia quebra meu galho neste problemão...
A segunda desgraça é um vírus que peguei, por causa del tremendo calor que anda fazendo, e que me tem feito um pinto molhado, murcho e sonolento. Como tive que apresentar dois espetáculos para encerrar meu ano de trabalho na fundação, não consegui me cuidar direito e acabei desidratada e debilitada, então estou de repouso por dois dias inteirinhos... que pretendo aproveitar para pôr meus blogs em dia (que já ultrapassaram as mil visitas, vocês viram?) assim como meus outros escritos... Bom, e aproveitando os últimos vestígios de frescor antes que o sol comece a derreter os nossos cérebros -com sombrinha ou não- aqui vai a crônica da semana passada... Na sexta posto a desta semana, assim vocês têm mais para ler. E obrigada pelas mais de mil visitas!...

Cabecinhas abaixadas, olhar compenetrado, pincéis ou lápis na mão, costas curvadas sobre a mesa... Às vezes param, se endireitam, mãos no ar, e ladeando a cabeça permanecem durante alguns instantes apreciando seu trabalho. Uns sorriem, outros franzem a testa, não muito contentes com o que vêem; já outros ficam pensativos, à procura do próximo traço, da cor perfeita, da forma que dança em suas cabeças. Uns poucos estão tão compenetrados que não prestam atenção em mais nada. Já outros rabiscam distraidamente na folha branca do bloco, sem nenhuma vontade, ou dão uma espiada nos trabalhos dos outros para ver o que é mais fácil de copiar ou aproveitar como idéia básica (Estes, eu me pergunto uma e outra vez, o que estão fazendo aqui, mas com certeza a sua presença em minha sala deve ser culpa dos pais, que querem uma folga das suas peraltices)
A cada certo tempo, se viram e me mostram o trabalho, perguntam a minha opinião, pedem para corrigir alguns traços ou passar um risco preto em volta do desenho, para fazer a margem ou misturar uma cor... Damos muita risada, escutamos música, fofocamos, criamos, analisamos. A hora e meia de aula passa ora rápido, ora com uma lentidão desesperadora, e me deixa invariavelmente muito cansada, mas contente e satisfeita, pois os resultados estão sendo excelentes e elogiados por quem vê os trabalhos. No entanto, não é somente por iste motivo que me sinto realizada, mas principalmente pela experiência sobre a expressão da alma, da linguagem peculiar de cada um que estes alunos estão vivenciando. Isto é o que realmente tem valor para mim: a liberdade e o auto-conhecimento, o despertar da consciência do universo interno e externo no qual existimos e a expressão das imagens e conclusões a que isto nos leva. A busca de uma linguagem pessoal, única, a experimentação sem compromisso, o prazer do ato criador, a descoberta e desenvolvimento das próprias capacidades de expressão e a aceitação da diversidade que existe entre as pessoas são as matérias mais importantes em minha aula. Estas experiências e seus resultados são o que fazem tudo valer a pena. Imagino o que estes alunos sentem quando contemplam a sua obra terminada: são seus traços ali no papel, as cores que eles escolheram, as formas e texturas, a interpretação que deram ao tema, ou a livre escolha dele... Eu as vejo penduradas na parede ou em cima das prateleiras e me parecem maravilhosas, a despeito de qualquer "defeito técnico", pois tenho certeza de que são o fiel reflexo de uma experiência única e verdadeira. São brilhantes, espontáneas, graciosas, originais, ousadas, puras. Possuem uma beleza intrínseca que desafia qualquer padrão estabelecido ou crítica, porque foram criadas com amor, com cuidado, sem medo, sempre perseguindo a expressão mais íntima. Assim, elas são tão valiosas quanto aquelas que estão expostas nas paredes dos grandes museus protegidas por vidros, grades, lasers e alarmes, valorizadas com uma iluminação especial e com confortáveis poltronas ou bancos na frente para que o público possa tomar seu tempo para contemplá-las, copiá-las ou analisá-las.
No entanto, o mais importante na produção destas obras é a adquisição da consciência de que cada coisa que produzimos é uma parte vital da nossa existência, até a mais banal e breve, pois expressa o que somos e o que queremos dizer, o que sonhamos, o que desejamos partilhar com o mundo. Comida, roupa, decoração, jardins, objetos, textos, quadros, músicas, poesias, esculturas, palavras, gestos, tudo é parte do que somos, tudo que produzimos nos revela diante dos outros, por isso todo ato de expressão é tão valioso e precisa ser levado em conta, não importa se ele provém de uma criança, de uma dona de casa, de um velho, de um mendigo ou de um príncipe... Estes alunos em minha sala estão dando os primeiros passos não só no caminho da arte, do desenho, mas da expressão pessoal, e não interessa se irão se tornar grandes artistas ou simples pedreiros, executivos, balconistas, donas de casa ou arquitetos, o importante é terem esta experiência e se tornarem capazes de levá-la adiante pela vida afora, enriquecendo assim a história da humanidade da qual formam parte.