segunda-feira, 31 de maio de 2010

Opostos

Mais uma vez na segunda, porém desta vez bem mais relaxada. Como é esse milagre?... Bom, primeiro, porque é feriado aqui, e segundo, porque ontem tivemos o primeiro ensaio completo da peça sobre o café e -fora as três coreografias que estão faltando (já montamos duas) e que serão relativamente fáceis- percebi que, finalmente, está terminada!... Ufa!, vocês não imaginam o alívio que senti, porque a partir de agora posso me dedicar somente a limpar ou remontar os detalhes, a aperfeiçoar as performances de atores e bailarinos e a corrigir partes do texto que ainda não estejam bem fechadas. O grosso, que era decorar texto e marcações, já está pronto, e bem à tempo, porque a estréia já foi marcada para o dia 30 de julho (sexta-feira) e até as sessões de cinema serão canceladas à patir do dia 15 para que tenhamos todo o tempo e o palco à nossa disposição para os últimos ensaios gerais... Putz, sinceramente, houve um momento em que não tive certeza de se conseguiria dar conta do recado, que me parecia grande demais para as minhas capacidades. Vontade eu tinha -isso eu sempre tenho!- mas tinha hora em que as coisas pareciam tão desconexas e as pessoas tão sem noção da coisa, que achei que tudo acabaria num grande e vergonhoso fiasco... Porém, aos poucos e com a maior calma e clareza possíveis, sempre pedindo inspiração e força, cada parte começou a entrar nos eixos e agora está tudo funcionando feito uma seda. Acho que no instante em que percebi que se alguém -eu própria, já que meu chefe, que havia dito que pegaria para si o papel e diretor, estava ocupado demais com outros problemas da fundação- não tomasse as rédias da montagem com firmeza o projeto todo iria por água abaixo, e que esa tarefa estava em minhas mãos, foi decisivo para que o trabalho tomasse forma e direção. Até então, eu estava meio que na retaguarda, só observando, sem querer intervir no trabalho das outras áreas envolvidas (até porque já levara uma tremenda bronca do meu chefe por fazer isto) e deixando a direção na mão do meu chefe, mas aos poucos, ele foi se afastando e delegando esta tarefa a mim, então, ou eu acordava e pegava a direção para valer ou ia levar não só uma bronca fenomenal, mas um chute no traseiro... E ele, numa atitude completamente inesperada, me deu este voto de confiança e deixou todo o processo de montagem de todas as áreas em minha mão... Uau, isso foi demais! Era o que precisava -o desafio e o voto de confiança- para me jogar de cabeça e botar todas as minhas habilidades, a minha criatividade e o meu fôlego, além dos meus dotes de líder, para funcionar a todo vapor!... E, acreditem, não estou arrependida em absoluto de ter topado carregar este peso sozinha, porque acho que o musical vai ficar ótimo e vai ser um sucesso não só pelo meu trabalho, mas pelo empenho e o talento de todos os envolvidos. Talvez não fique à altura de um musical da Brodway -como meu chefe sonha- mas acho que vai dar conta do recado e o público vai gostar mesmo, até porque nunca antes foi montado algo desta magnitude aqui na fundação, neste teatro. Então, estou honrada por ser quem vai "inaugurar" a era dos grandes espetáculos nesta cidade... Não é para estar com a corda toda?... Isso, aliado ao sucesso que as minhas aulas de teatro estão tendo (todo mundo quer entrar para a turma!) e à qualidade dos alunos deste ano, me tem completamente feliz e realizada... Mais uma vez: não é para estar com a corda toda?... Não é um mar de rosas e o caminho está cheio de empecilhos, desgostos, frustrações e tudo isso que equilibra a balança para que não morramos tão cedo de pura felicidade, mas acreditem, definitivamente, vale a pena...
E, como sempre, aqui vai a crônica da semana passada, neste glorioso e frio feriado de sol e céu limpo.
Na viagem, um curioso contraste de quadros através da janela do carro: nas encostas, enormes canteiros naturais cravejados de açucenas brancas, semelhantes a orgulhosos príncipes coroados de neve, e no acostamento irregular e carcomido pelo mato e a terra um cavalo morto, as tripas miseravelmente expostas, o corpo inchado e coberto por enxames de moscas... Nuvens cinzentas que escurecem o céu numa ameaçadora coreografia, sobrepondo-se umas às outras, transformando a paisagem em cima da igrejinha de onde saem os recém casados, sorridentes e emocionados, para receber uma chuva de arroz e flores do campo... Vilas, casebres isolados, sítios, plantações semeçhantes a ondulantes oceanos verdes, riachos, gado pastando preguiçosamente, rochas pré-históricas, aves desconhecidas soltando seus trinados insolentes acima das nossas cabeças e, ao lado, como numa dimensão paralela, a auto-estrada pela qual avançamos, junto com outras centenas de carros que também precisam regressar para casa, velozes e impávidos, rugindo as suas notas desafinadas e estridentes em meio a esta paisagem tão serena e anacrônica... O zumbido do vento, o apito do trem ao longe, os cachorros de ninguém; homens, mulheres e crianças caminhando com passo lento pelo acostamento onde a passagem dos carros levanta redemoinhos de poeira. Alguns vão bem arrumados e penteados, com sacolas e pacotes, como quem vai fazer uma visita ou ruma para a igreja; outros vão sujos de terra, esfarrapados, de chinelos ou botinas disformes, carregando sacos ou ferramentas no ombro... Tudo passa feito um borrão pela janela: bicicletas sucateadas, chapéus amorfos, rostos morenos e sulcados por mil rugas, roupas coloridas, bolas e crianças gritando e correndo, bares, homens sentados em caixotes fumando ou bebendo, oficinas, borracharias pretas e sepultadas em pneus velhos, postos de gasolina, restaurantes anunciando o prato do dia. Campanários pobres e silenciosos, cemitérios derretendo ao sol, barracas de mel e fruta, de salame caseiro, de queijo fresco... Olhando pela janela, protegida pela sombra e a comodidade da poltrona do carro, começo a perceber que lá fora, à beira da estrada, existem outros universos que, para mim, no entanto -e talvez por aparecerem tão diferentes e distantes- não passam de meras passagens, pontos de apoio, espaços de sobrevivência que recheiam os quilòmetros que separam as grandes cidades. Porém, aos poucos me dou conta de que, para toda essa gente que vive ali, aquilo é um lar, um lugar cheio de significado, que conta as suas histórias e é testemunha dos seus fracassos e conquistas, das suas penas e alegrias, e que elas realmente acontecem, por mais insignificantes que possam parecer para nós, que as observamos apenas durante alguns segundos desde nossos automóveis. Pode haver cegueira, ignorância e falta de tudo (pois se encontram numa espécie de limbo onde não podem ser chamados de cidade, pois só preenchem o espaço entre elas, feito satélites desprezados e esquecidos) porém, é o lugar onde moram, onde semeiam, onde casam, têm filhos, envelhecem e morrem. A simplicidade deles não é um pecado, mas seu jeito de ser, a chance que a vida lhes deu... Então me pergunto: tudo que existe está em seu lugar, é justo, necessário? Cada um se encontra onde pertence, fazendo o que lhe corresponde? O que nos rodeia é miséria, opulência ou, simplesmente, diversidade? É esta mistura, às vezes cruel ou exagerada, o que lhe dá sabor à vida, expectativa, força, persistência, poesia, esperança?... Porque, definitivamente, é de tudo isto que o universo é feito: vivos, mortos, pobres, ricos, velhos e jovens, alegrias e tristezas, ganhos e perdas, verdades e aparências; e cada coisa e pessoa, cada acontecimento, está em seu lugar no momento presente, executando a sua parte no plano divino, acordando cada dia para continuar adiante... Seca e inundação, ignorância e sabedoria, chuva e sol, guerra e paz, noite e dia, vida e morte... Os opostos equilibram os ciclos vitais e nos ensinam sobre as opções e as suas conseqüências e, assim como nós podemos aprender das vilas, personagens e quadros através da janela do carro, alguém pode aprender dos nossos carros, nossas cidades e nosso progresso.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Esperar pelo vento

Bom, finalmente acabei todos os textos para a minha colega e as suas turmas de teatro, então suponho que vou ter um pouco mais de sossego para me dedicar a outras coisas. Espero que ela goste tanto quanto eu, pois me diverti -e até me emocionei!- muito redigindo-os; foi um desafio, porque a minha linha de criação passa longe de textos para pré-adolescentes ou crianças, mas acho que ficaram bem legais. Com um toque profundo e algo dramático, como não podia deixar de ser, mas totalmente "montáveis" por grupos desta faixa etária... Adoraria poder dirigi-las também, mas aí acho que seria interferência demais no trabalho da minha colega, pois afinal de contas, as turmas são dela e não minhas. Vou morrer de ciúme, mas fazer o quê?... É claro que vou dar meus pitacos, mas definitivamente não pretendo arcar com mais esta responsabilidade. Adoraria, mas não é eticamente viável...
E, mais uma vez atrasada, mas cumprindo com a minha obrigação, aqui vai a crônica da semana passada.
Espero pacientemente o vento chegar, enquanto o suor escorre pelo meu corpo, tentando me mexer o menos possível. Não há como se esconder deste calor calcinante, por isso sou tão grata quando o vento sopra, nem que seja só por alguns instantes, e alivia a agonia deste verão que parece não ter clemência de nós... Alguns segundos do seu hálito bastam para me fazer sentir renovada, salva de um sufocamento iminente. A esperança de seu repentino e delicioso frescor é o que me faz suportar o ar abafado, o sol escaldante, a roupa molhada, as paredes quentes, o asfalto derretendo. Há sempre a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, o vento virá me acariciar, sussurrando em meus ouvidos o segredo da paciência e da persistência. Às vezes este ar parado e tão quente que me assusta, parece que vai me esmagar, me roubar o ar; estou prestes a sucumbir ao seu insano castigo e então, de repente, uma brisa breve e sutil anuncia que o vento já vem: estou salva!... E tenho certeza de que o que me ajudou a suportar a espera foi a esperança, a fé de que, em algum momento, as coisas mudariam para melhor e eu poderia ir um pouco mais adiante, dar mais um passo, fazer mais um gesto, dizer mais uma palavra, ter um outro pensamento, avistar melhor a paisagem diante de mim. O próprio suor que me ensopa fará com que o sopro do vento seja ainda mais gostoso, então paro de amaldiçoá-lo e aguardo, quieta e expectante, até ele vir e me abraçar.
Quando o vento se va e torno a sentir os raios do sol incendiando o mundo à minha volta, penso que a mesma coisa acontece quando nos deparamos com algum problema, com uma perda, um fracasso, quando cometemos um erro. No início parece que seremos esmagados, dilacerados, sufocados, que não conseguiremos suportar a pressão, a cobrança, a dor, o desânimo; porém, se mantemos em nossa mente e em nosso coração a esperança, aquela certeza de que em algum momento a situação mudará e algo de positivo poderemos tirar dela, a nossa noite escura terá um ponto de luz que nos sustentará e nos guiará para que possamos atravesá-la com coragem e otimismo. O vento sempre vem -mesmo que seja uma brisa quase intangível ou um furacão que arranca árvores e destelha casas- e transforma o céu e a terra com a sua presença. Assim também, as situações negativas pelas quais passamos terminam, mudam, se transformam e nos trazem novas lições que nos tornam mais sábios e compassivos. Por isso, quando nos encontramos no meio de algo que parece não ter saída, devemos ser os primeiro a acreditar que uma melhora vai acontecer, já que é uma das leis do universo que nunca falha; devemos estar prontos e abertos ás mudanças e não nos deixar abater ou desistir de lutar e esperar, mesmo que passemos por momentos de intensa angústia e decepção.
"Quem espera sempre alcança", reza o ditado, e é verdade; e se somos capazes de esperar pelo vento num dia de verão, como podemos não esperar pela ação da misericordia divina, que zela por nós o tempo todo, mesmo que estejamos despencando no mais profundo dos abismos?...

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Doentes terminais

Mais um final de semana atarefadíssimo -e até com recompensa financeira!- pois tinha que terminar uma peça para hoje à tarde, então passei boa parte dele sentada aqui e, entre varridas, arrumações de cama, preparação de saladas e alguns programas de televisão imperdíveis, ensaios e assessorias coreográficas, consegui dar cabo da minha encomenda. Acho que ficou uma história bem legal e que a minha colega vai gostar, mesmo não tendo muito a ver com os apontamentos que ela me passou. (bom, isso é típico meu: me dê um apontamento que eu faço a maior viagem!). Ficou uma peça bem mais séria e longa, mais complexa, mas se ela precisar de alguma ajuda na montagem, estou pronta para cooperar... E com certeza vou adorar!...
Então, é por isso que só estou postando as crônicas hoje à tarde, antes de sair para o trabalho, mas como já disse: "mais vale tarde do que nunca"! Ainda tenho mais duas peças para escrever, para as turmas infantis desta colega, mas não tem tanta pressa para esta encomenda, então as coisas vão ficar um pouco mais folgadas... espero. Porque acho que vou ter de meter o meu bedelinho nas coreografias do musical, já que a moça encarregada não fez nada ainda e não parece muito a fim de fazê-lo, o que está me deixando bastante preocupada, porque já deveria ter montado, pelo menos, umas duas. O cd está com ela já faz um mês e ainda nada, então agora à tarde vou ter uma reuniãozinha com ela para solucionar este impasse... Já estou vendo que esta tarefa também vai ficar na minha mão, mesmo se não devia, mas como não pretendo levar bronca de chefe, lá vou eu incursionar novamente no terreno da dança. Ainda bem que adoro!...
E antes que alguém me ligue para me pedir mais alguma coisa, aqui vá a crônica desta semana (da passada, na verdade, de novo!)
Sempre chamou a minha atenção o fato de alguns doentes terminais, apesar de fisicamente exauridos e desfigurados, presos a uma cama e cheios de aparelhos, ou entrevados numa cadeira de rodas, sem poder fazer quase nada sem o auxílio de alguém e sem mais serem capazes de levar a vida à qual estavam acostumados, têm um quê de misteriosa força, uma aura de glória que brilha sobre a sua própria agonia feito um farol no meio de uma tempestade. De alguma forma, eles desenvolvem uma energia desesperada, ávida e ousada que toma conta deles por completo, transformando-os em verdadeiros leões, em heróis a serem imitados nesta batalha que, no fim, perderão honrosamente. Parece um paradoxo: o nascimento de uma nova existência num ser que sucumbe ao câncer, à aids, à tuberculose, à paralisia, à degeneração física e mental -mas não espiritual. Forças estranhas e poderosas parecem comandar seus corpos e mentes consumidos. De repente, encarando um futuro que não existirá para eles, aprendem o que é compaixão, alegria, coragem, consciência, paciência, serenidade. Descobrem o que é o tempo e como ele tem de ser aproveitado; o que é a vida e o que realmente importa nela. Ironicamente, compreendem o milagre da existência enquanto ela lhes foge inexoravelmente, numa uma velocidade assustadora... Estes doentes terminais se permitem, então, ações, pensamentos e sentimentos absolutos, plenos, sem medos ou preconceitos; derrubam ousadamente tudo que impedia a realização da sua felicidade, da sua humanidade, do seu destino. Face a face com a morte decidem abraçá-la sem receio, conversar com ela, lutar com ela feito dois velhos conhecidos inimigos que, finalmente, travam seu derradeiro combate. Da dor e do medo brotam aos poucos a sabedoria, a percepção, o perdão, o desejo verdadeiro de reconciliação e partilha; começa-se a construir o verdadeiro legado... Estão partindo, e têm cruel consciência disto, o tempo é precioso. Então, é chegada a hora de viver.
Penso que é assim que todos nós deveríamos viver, pois afinal de contas também somos doentes terminais, também estamos morrendo, mesmo sem dar-nos conta, mesmo que não saibamos a data da nossa morte nem apresentemos nenhum sintoma tão dramático, fora algumas rugas, cabelos brancos e achaques que conseguimos minimizar com remédios ou fisioterapia... Mas crescer é aproximar-se da morte, e envelhecer é um sintoma... Por que achamos que temos tanto tempo assim? Por que insistimos em viver a fantasia de que são os outros os que morrem e que isso jamais acontecerá conosco? Por que vamos deixando as coisas mais importantes para depois? E se esse "depois" for curto demais?... E neste sonho de pretensa eternidade vamos protelando, postergando, deixando de lado, esquecendo, renunciando a sonhos, afetos, atitudes, olhares, gestos e palavras, decisões, abraços e sorrisos, opções e momentos para os quais a morte não nos permitirá voltar... Não há desculpas para negligenciar a nossa felicidade, a nossa realização, nossos sonhos e amores verdadeiros. Por que esperar o câncer para acordar? Por que sentir o corpo martirizado e sem forças para decidir que é hora de agir, de realizar? Por que a face da morte em nosso espelho para obrigar-nos a viver? Por que a perspectiva do fim para tomar consciência e começar?... A força sobrenatural que nos impulsiona não jaze somente na doença incurável. A morte que nos espreita não é somente física nem está tão distante como queremos achar. Somos doentes terminais, mas nos recusamos a agir como tais. A vontade vem de conhecer a nossa brevidade e fragilidade, a nossa impotência diante do inevitável. A morte nos ronda a todo instante, disfarçada de mil maneiras; nós é que não a reconhecemos. A morte iminente desperta no doente a consciência e a garra para viver novamente... Mas, e nós, precisamos que ela seja iminente para acordar?...

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Um mundo dentro do mundo

Como diz o ditado: "Mais vale tarde do que nunca", não é mesmo?... Para variar, foi mais um fim de semana atribulado, com muito trabalho e ainda a comemoração do dia das mães com todo tipo de programação extraordinária e cheia de coisas gostosas para comer -tudo fora da dieta, é claro!- Então, somente hoje estou tendo uma folga para sentar e postar a crônica da semana (passada) e mais tarde, quem sabe, terminar de redigir o famoso conto que estou lhes prometendo já faz duas semanas...
Bom, como toda segunda-feira, hoje é dia de novos começos, de deixar para atrás -mais uma vez- os maus hábitos, os excessos, as fraquezas e a preguiça para começar uma vida saudável, organizada e cheia de otimismo (porque ontem, numa certa hora, entre um pacote de salgadinhos e as bolachas wafle de nozes, a rodada de pizza de abobrinha e o sanduíche de salame, me bateu uma onda de desânimo e desgosto tão grande -provavelmente porque estava fazendo tudo que é proibido para uma diabética- que cheguei a pensar que hoje não conseguiria sair da cama sorrindo, como sempre faço) e como a chuva foi embora e amanheceu um céu de brigadeiro e um frio totalmente revigorante, decidi sacrificar a minha caminhada para sentar aqui e retomar meu velho e bom hábito de escrever pela manhã... Para ser sincera, acho que ultimamente ando muito desleixada com as minhas rotinas, o que se traduz num estado de constante e quase imperceptível irritação comigo mesma, sensação que, definitivamente, me leva a comer tudo que não posso, só para compensar esse desconforto emocional que toma conta de mim por abandonar a minha rotina de trabalho e produção em casa... mas que coisa, né?... Realmente, a cada dia me convenço mais um pouco de que o ser humano é mesmo um quebra-cabeça dos mais complicados, daqueles que quando você acha que encontrou a peça certa e botou no seu lugar, todas as outras que pareciam estar certas desmontam e há que começar tudo de novo... Bom, mas suponho que é aí que está a graça da brincadeira: montar e desmontar, arrumar aqui e ali, trocar de lugar, descobrir o espaço daquela peça que achava impossível de ser encaixada. É verdade que talvez nunca cheguemos a ver o quadro inteiro e perfeitamente montado, mas com certeza ao longo de nossa existência teremos resolvido e desfrutado algumas partes dele. O resto será um mistério fascinante, cuja solução nos manterá alertas e empenhados, sempre à procura da resposta que complete o quebra-cabeça; e é através desta busca, que talvez nos leve a vida toda, que cresceremos e aprenderemos sobre nós mesmos e a vida, sobre a morte, sobre a compaixão e a paciência, sobre perdão e aceitação, sobre limites e fé...
E, novamente disposta e inspirada, aqui vai a crônica da semana (passada). Não vou prometer o tal conto de novo, mas tentarei terminá-lo e postá-lo o mais breve possível.
Lembro daquelas pequenas vilas perto da rodovia, que passavam velozmemnte pela janela do carro enquanto fazíamos a viagem de volta para casa, uma vez findadas as nossa férias: casinhas velhas, de telhas pardas e paredes de madeira descascadas, ruas de terra e pedra, uma única quitanda -misturada com um bar escuro onde reinava uma arruinada mesa de sinuca e algumas mesinhas com toalhas de plástico- que expunha as suas verduras e frutas murchas em caixotes ou cestas deformadas, rolos de fumo pendurados no teto, prateleiras com enlatados, refrigerantes e vidros com ovos cozidos e pimenta colorida em cima do balcão de tábuas pintadas de celeste. Nâo havia nenhum posto de saúde, nenhuma praça, parquinho ou farmácia, só uma igreja de madeira com uma cruz torta no topo da pequena torre e uma cerca de madeira como átrio, uns canteiros cheios de mato e alguns cachorros deitados à sombra do pórtico... E as pessoas que moravam ali, escuras e pequenas como a vila, silenciosas, de andar macilento e sem rumo, sem vaidades, sem futuro, sem noção dos lugares aos quais aquela rodovia poderia levá-los... Eu olhava para elas e me perguntava como seria a sua existência ali, se teriam sonhos, se esperavam alguma coisa diferente da vida, se passava-lhes pela cabeça sair dali e tentar a sorte em outro lugar; mas ao olhar para elas, a sensação que eu tinha era a de que a maioria havia nascido e crescido naquela vila, tinham casado, construído seu próprio lar -aquela casinha de madeira e tijolos, com a hortinha nos fundos e os vasos enfileirados na área cor de terra- tiveram filhos, netos e envelheceram dentro daqueles limites, olhando a mesma paisagem pela janela, aguando o mesmo jardim desordenado e selvagem, vendo o tronco do limoeiro engrossar e as margaridas se espalhar entre as azaléias cobertas pelo pó da estrada. Os mesmos vizinhos, o mesmo mercadinho, a padaria, a igreja, a barraca na beira da rodovia... E ali continuavam, sentados na varanda, contemplando a mesma rua fazia anos, fumando seus cigarros de palha, gastando o tempo ao redor da mesa de sinuca, esfregando roupa no tanque, plantando e colhendo seu minguado sustento... As árvores ficaram frondosas, o pedaço que restava da calçada rachava um pouco mais a cada chuva, a grade se desfazia aos poucos pela falta de pintura e a ferrugem... Quantas gerações de gatos e cachorros, de canários e galinhas passaram por eles? O telhado já começava aparecer um outro jardim, pois as sementes que caíam lá em cima brotavam e se erguiam, se alastravam, deslizavam e pendiam sobre a varanda decrépita...
Sem dúvida existia muita história naquele lugar, mas também havia pobreza, descaso, ignorância, uma espécia de culto ou tradição que mantinha aquela gente sem horizontes, sem progresso, sem ambição... O que era aquilo? Legado, resignação, medo? Até quando permaneceriam estagnados naquele pedaço de chão, ignorando o mundo que os circundava e crescia velozmente, quase devorando-os?...
Quando deixamos a vila para atrás, eu deitei a cabeça no confortável espaldar da poltrona do carro e fiquei pensando, sem conseguir tirar da minha mente a imagem daquelas pessoas que pareciam estar vivendo numa realidade paralela... O que há neste espaço no qual habitamos que às vezes nos prende com tamanha força, impedindo-nos de progredir, de crescer, de descobrir? Será que uma parte de nós -a biológica talvez- com o passar do tempo acaba por se misturar com a madeira e as grades, as plantas, a calçada, as vigas, a paisagem da janela, de tal forma que não conseguimos mais nos separar disto?... Ou talvez acontece que o lugar onde moramos conte a nossa história, seja o nosso refúgio e parte da nossa expressão como seres humanos, pois sem dúvida estamos impressos nas luzes, na disposição dos móveis, nos cheiros da cozinha e dos armários, nos sons das nossas músicas, na lembrança das risadas, discussões, comemorações e choros. Temos as suas cores e as suas formas porque as raízes que nos prendem a este lugar nasceram das nossas vivências, cujas conceqüências se alastraram e infiltraram em tudo que nos rodeia. O homem tem a necessidade ancestral de construir seu mundo dentro do mundo, diferente dele, pois aqui somente ele habita e dita as regras, e é o único lugar no qual ele jamais será um estranho... E talvez esse é o motivo pelo qual aquelas pessoas serão enterradas por muitas gerações ainda no minúsculo e pobre cemitéro sem flores da vila à beira da rodovia.

sábado, 1 de maio de 2010

A dor da criação

Ainda bem que meu chefe mudou de idéia e decidiu cancelar os ensaios de sábado, senão, não sei quando iria ter tempo de redigir e postar as minhas crônicas!... Durante a semana tenho algum tempo livre, mas sempre surge algum imprevisto (tipo reunião de última hora, ensaio extra, texto novo, o jardim que precisa ser aguado antes que murche e amarele por completo, o que leva um tempo inacreditável; uma ligação infindável, uma conta para pagar ou uma compra fora dos planos... Bom, acho que vocês devem conhecer o esquema) e acabo não escrevendo tanto quanto desejaria, porque como sou tão metodica, se passo de uma certa hora sem conseguir sentar na frente do computador, a minha inspiração, simplesmente, não dá as caras e fico aí, olhando para a tela e soltando uns suspiros de agonia que me valeriam a entrada direta no céu, enquanto vou sendo tomada por um desânimo absolutamente mortal. Fora que, na verdade, a melhor hora para eu produzir algo que preste é pela manhã, então, se tenho que sair ou fazer outra coisa mais urgente, já posso dar a escrita como perdida porque sei que à tarde não será a mesma coisa. Se conseguir algo será na base de muito e perseverante esforço... Isto prova que, definitivamente, sou uma pessoa matutina, ao contrário de outros que produzem e se sentem mais inspirados e com energia à noite. Então, aproveitando esta gloriosa manhã livre, na qual estou me sentindo especialmente feliz -apesar dos desgostos e do estresse destes últimos dias por conta de gente mesquinha e vingativa- já vou postar a crônica desta semana e, quem sabe, acrescento mais um conto no outro blog, aquele que ainda estou lhes devendo...

Tenho dó de arrancar e jogar fora qualquer planta, por mais vulgar e féia que ela seja, por mais que destoe em meu jardim. Sinto-me tomada por uma dor e uma compaixão que chegam a me doer em algum lugar, lá no fundo, toda vez que passo por um cachorro de rua que, carcomido pela sarna e com as costelas aparecendo sob o pêlo imundo, tenta se aquecer e aliviar as suas dores deitado ao sol. O escrúpulo me consome ao jogar fora um talo que ainda tenha raiz, pois estou tirando-lhe -feito um deus impiedoso- a sua chance de viver, de ter seu momento, de cumprir seu papel. Meu coração se encolhe ao ver uma borboleta morrendo e sinto um nó na garganta quando encontro algum passarinho que caiu do ninho, morto na calçada, quando escuto o miado de abandono e medo de um gatinho, ao ver um cachorro atropelado na estrada... Os miseráveis revirando o lixão ou brigando por um punhado de arroz esperramado no chão de terra, uma criança ou um idoso sendo maltratados, os mendigos dormindo dentro de caixas de papelão, olhando com olhos fundos para os pratos dos fregueses da lanchonete, o cavalo velho e suado puxando mais peso do que suporta e ainda sendo açoitado, todos quadros que passam despercebidos para a maioria, e que me enchem de um silencioso e impotente desespero que parece cortar-me o peito... Parece que não há mais compaixão, vontade nem eficiência bastante para abraçar toda a dor da criação, para amenizá-la, para dar-lhe esperança, consolo, solidariedade!... Sei que o sofrimento e a morte fazem parte da dinâmica da existência e que, de alguma forma, eles contribuem para o equilíbrio, a harmonia e a transformação da humanidade, mas quando percebo que alguma atitude poderia ser tomada para evitar parte desse sofrimento -aquele que é desnecessário porque é ocasionado pelo nosso descaso- minha tristeza é absoluta, arrasadora, pois vejo a covardia, a negligência, a preguiça, o egoísmo e a crueldade tomando conta das nossas ações, dos nossos pensamentos e decisões, das nossas consciências, que adormecem no conforto do sofá da sala ou diante da mesa farta e as gavetas cheias de roupa. Cometemos um crime a cada segundo!... Na verdade, eles acontecem com a mesma prodigalidade que os milagres, não é espantoso?... Eu própria tenho consciência do meu descaso, da minha preguiça, do meu receio, e alegar que não possuo os meios não é uma desculpa decente, já que qualquer ação é válida, não importa quão pequena ou banal ela possa parecer. Desculpa muito pior é dizer que eu sozinha não vou salvar o mundo, porque sei que, salvando nem que seja uma parte microscópica dele, já terei ajudado a salvar a totalidade... Às vezes me espanta comprovar quanto amor somos capazes de desperdiçar por pura comodidade. Agir não é uma questão só de inspiração, de dinheiro, ou de patrocínio político ou empresarial, mas da determinação, da fé e do otimismo de cada um. Nos enganamos se achamos que a vontade ou a compaixão sozinhas são suficientes para promover alguma mudança. Para que elas aconteçam, estes sentimentos precisam vir acompanhados por alguma atitude concreta e imediata, porque além da mão de Deus, existe o que nós mesmos podemos realizar para que os milagres aconteçam.