sexta-feira, 5 de junho de 2009

As peripécias de uma escritora de diários

Acho que esta vai ser a crônica mais longa que já postei, mas quando a encontrei, enquanto percorria as páginas dos meus diários para escolher a desta semana, me pareceu interessante o suficiente como para correr o risco de postá-la, mesmo sendo tão longa. Bom, vocês poderão lê-la por partes e, com certeza, terão leitura para o final de semana!... O que gostei nela foi que talvez tenha mais alguém por aí com uma aventura parecida e ao ler isto, pode ser que se sinta animado a deixar que outras pessoas conheçam seus dons e tirem proveito disso. Na verdade, é algo meio esquisito, sobretudo se tratando de textos privados, mas acho que sabendo escolher ou fazendo pequenas mudanças, dá para compartir as nossas experiências, revelações e conclusões com muita gente, com a perspectiva de todos nós sairmos ganhando... Você tem a estranha porém certa sensação de que o que você faz tem um destino especial, que seus dons poderiam servir para ajudar outros, que o mundo precisa conhecer quem você é e o que tem a oferecer? Então, siga esta intuição! Porém, não espere mudar o mundo ou salvar a raça humana, pois ninguém tem este papel na história, no entanto, cada um de nos possui a sua exclusiva parcela de ação no desenrolar desta história. Ela pode ser maior ou menor, ao nosso redor ou mais longe, isso não importa, o que é vital é que a façamos acontecer. Então, acredite em seu destino e mostre ao mundo seus tesouros!...
Bem então, aqui vai:

Estava me lembrando da época em que comecei a escrever diários, lá pela minha pré-adolescência, influenciada por alguns livros que lera, como "Daddy longlegs", "Papelucho", "O diário de Anne Frank", "Go ask Alice" e os cadernos que Teresinha do menino Jesus escreveu enquanto morou no convento de Lisieux... Não sei por quê saber da vida íntima, dos pensamentos e experiências de outras pessoas sempre me fascinou; era como se esses diários contivessem algum tipo de mensagem especial para aquele que os lesse, como se desde a primeira página tivessem estado destinados a serem conhecidos pelo mundo, comentados, usados como exemplo e inspiração para transformar vidas e ensinar novos caminhos, ou então, para prevenir atitudes que podiam levar à desgraça e até à morte. Com certeza, quem os escreveu não estava imaginando que algum dia alguém, além deles mesmos, poria os olhos neles e, no entanto, os acontecimentos se desenrolaram de tal forma que, por um acaso ou pelas mãos de terceiros, estes cadernos chegaram ao conhecimento público e ocasionaram, na maior parte das vezes, verdadeiras revoluções.
Agora, quando eu comecei a escrever os meus, tive desde o início aquela sensação indefinida de estar sendo levada por algo mais do que a vontade de desabafar em segredo ou algum tipo de intuito futuramente literário. Era uma coisa muito esquisita, uma espécie de imperiosidade, de obrigação, de dever não somente para comigo mesma e a minha sanidade mental e espiritual. Tinha algo a ver com pessoas, outras pessoas lendo meus textos... Eu lutava constantemente contra uma voz interior, por vezes doce e insistente, por vezes cheia de urgência e severidade, que me perseguia o tempo todo ora pedindo, ora mandando, ora obrigando, a escrever estes diários. Tudo bem, eu estava passando por alguns processos bastante interessantes, mas sinceramente, não achava que fossem dignos de serem registrados, e menos ainda para a posteridade... Mas parecia que o papel queria guardá-los, queria ser testemunha do meu amadurecimento, das etapas pelas quais ainda passaria, das minhas experiências e descobertas, das conclusões e infindáveis mudanças que deveria enfrentar... Obediente, mesmo sem compreender o por quê, comecei a escrever religiosamente, registrando tudo que vinha à minha cabeça e relendo-o depois para analisá-lo e tirar conclusões, mas na verdade, não eram textos lá muito interessantes. Mais parecia um treinamento do que algo definitivo que valeria a pena de ser guardado e aproveitado. Assim, escrevi dezenas, centenas de cadernos, a maioria dos quais acabei jogando fora pelos mais diversos motivos, inclusive o de descobrir que meu marido os estava lendo às escondidas para saber se o estava traindo (!). Bom, depois disso, perdi totalmente a vontade e a inspiração para continuar com este trabalho, pois me parecia inútil e até perigoso, dependendo da cabeça de quem inventasse fuçar no que não devia.
Assim, fiquei alguns anos sem escrever, até vir para o Brasil e assistir um filme de Nanni Moretti, um cineasta italiano que fez três filmes baseados em seus diários, o primeiro dos quais fala sobre o câncer que descobriu após centenas de consultas com os mais diversos diagnósticos e que finalmente conseguiu curar, o segundo sobre a chegada do seu primeiro filho e todas as peripécias da gravidez e da paternidade de primeira viagem, e o terceiro, que narra o drama de uma família que perde um filho, baseado na morte do seu próprio irmão... Nâo sei por quê, mas assistir aos filmes e saber que eles tinham sido realizados a partir de seus diários pessoais, mexeu de alguma forma comigo e logo comecei a sentir novamente aquela urgência, aquela sensação de dever não cumprido tomando conta de mim. Tinha vezes em que até sentia que estava traindo algum tipo de plano divino traçado especificamente para mim ao me recusar a levar um diário, mas ao mesmo tempo achava que era presunção demais acreditar que algo do que eu escrevesse poderia fazer alguma diferença na vida de alguém. Este excesso de humildade me paralisava, levando-me a pensar que estava começando a ter delírios sobre meu talento, então, para não ficar totalmente em dívida com este dom que tinha sido me dado de graça nem com esta voz que ecoava sem cessar em minha cabeça, comecei a produzir outro tipo de texto: contos, romances, peças de teatro, coisas que já havia experimentado antes e com as quais me dera bem. Quer dizer, ali também estava implícita uma mensagem, fantasiada, é verdade, mas estava ali; então, de alguma forma, eu estava cumprindo a minha parte do plano!...
Por outro lado, eu tinha perfeita consciência de que, de todos os talentos com que Deus me agraciara, a escrita era o mais forte e enraizado em minha alma e o que me acompanhava fazia mais tempo e com maior fidelidade. Era, sem dúvida, aquele com o qual eu mais me identificava e me sentia realizada e completa, apesar do sucesso que obtinha nas outras áreas nas quais trabalhava, todas relacionadas à arte cênica. Porém, nada se comparava à intimidade, espontaneidade, sinceridade e fluidez que existia entre mim e as palavras escritas. Era quase mágico, instintivo, tão natural e inspirado que às vezes eu própria duvidava que tivesse sido eu quem escrevera alguns dos textos (de fato, em alguns momentos eu tinha essa sensação esquisita e perturbadora de não ser eu quem segurava a caneta) pois mesmo sendo eles bastante imperfeitos e com excesso de lirismo, assim mesmo possuíam algo que meus outros trabalhos não tinham: um quê de verdade que era muito mais tocante do que histórias fictícias, maquiagens, figurinos, músicas ou falas e movimentos de extrema beleza estética.
Também, com o passar do tempo e da prática, acabei por descobrir, não sem desconceto e muita simpatia, que era através da escrita que Deus havia escolhido se comunicar comigo, através das palavras Ele me ensinava, escutava e respondia, guiando-me gentilmente em direção ao mundo e às pessoas para me fazer enxergar e refletir sobre eles e assim desenvolver a compreensão, a paciência e a compaixão pelos meus semelhantes, mas, principalmente, para que eu aprendesse a me colocar no lugar deles e deste modo me tornasse capaz de escrever sobre a vida e a sua infinita diversidade de uma forma que todos pudessem entender e se identificar, sentindo-se assim de alguma maneira consolados, compreendidos e estimulados a continuar lutando, ou a mudar, ou a recomeçar... O curioso era que, apesar da minha prolificidade e dos esforços e sucessos momentâneos como premiações em concursos de conto, a coisa não ia para frente, pois parecia faltar algo que eu não sabia definir, mas que atravancava as minhas ilusões de conseguir algo nessa área. Muitos textos eram bons, estavam bem escritos e eram bastante originais, no entanto, não conseguia fazer com que decolassem, atravessassem as portas de alguma editora e revelassem este talento meu tão caro e importante. Continuava levando os diários, claro, mas em nenhum momento me passou pela cabeça que eles tivessem alguma importância nas minhas ambições literário-humanitárias, por assim dizer. Mas, aos poucos, comecei a notar uma mudança no seu conteúdo, e isto aguçou ainda mais a minha curiosidade com respepito ao seu verdadeiro destino: de repente já não eram mais textos que falavam sobre mim e a minha vida doméstica, profissional ou sentimental. Lentamente, sem que eu percebesse, eles começaram a desenvolver pequenas histórias, a relatar experiências simples, mas de profundos significados. Eram lições escondidas em visões banais, em acontecimentos pequenos, de pessoas comuns com as quais eu encontrava todo dia à caminho do meu trabalho, ou quando ia para a academia. Lentamente, descortinou-se diante de mim um universo repleto de mensagens e lições, de personagens e situações reais que aconteciam bem diante dos meus olhos e das quais, de alguma forma -talvez devido à minha sensibilidade aguçada- eu participava intensamente, fato que me induzia à contemplação e à reflexão, que me levava à uma nova consciência sobre a vida e as pessoas que formavam parte do meu mundo -do mundo de todos- que podia ser compartilhada e que talvez poderia ser de algum proveito para a existência dos outros. O tom dos textos, então, passou a ser o de uma crônica (mas eu não sabia ainda) direcionada a "alguém", além de mim mesma, que teria a chance de aproveitar as lições nelas contidas... E enquanto eu me envolvia mais e mais nesta tarefa, distanciando-me dos meus outros projetos litarários, aquela estranha certeza que nunca me abandonara de que estas páginas tinham um destino já traçado, crescia dentro de mim, fazendo-me amadurecer e rever com novos olhos tudo que já tinha escrito nestes diários. Y durante esta reavaliação percebi, de repente, que eles tinham um imenso potencial humano, que seriam capazes de atingir um leitor e fazê-lo pensar, se identificar e, talvez, até mudar alguma coisa em sua vida... Foi quando tive a idéia de montar "Os textos da rede", uma compliação dos melhores textos numa espécie de livro que pretendia enviar a alguma editora ou então, levar à Fundação Cultural onde trabalho para estudar a sua publicação através da lei da cultura. Todos ficaram muito empolgados com esta possibilidade -até porque eles não faziam idéia de que eu escrevia este tipo de coisa- e prometeram ir atrás de patrocínio para conseguir a edição do livro. Eu não cabia em mim de felicidade, pois estava convencida de que, finalmente, tinha alcançado a minha meta, dando ao meu dom a finalidade desejada, aquele destino que, agora eu tinha certeza, era o objetivo desde o início. Todas as pessoas que conheci -a começar pelo meu professor de espanhol, Roberto Astudillo- e que de alguma forma me incentivaram ou me guiaram pelos caminhos certos até chegar a este resultado, desfilaram diante de mim, e agradeci a cada uma delas pelo papel, grande ou pequeno, que tinham desempenhado nesta história, este caso de amor entre eu e as letras, que parecia ter chego au seu auge...
Porém, mal sabia eu que aquilo era só uma prévia e que, como nas ocasiões anteriores, sairia decepcionada, pois as minhas ambições ainda eram grandes demais... As promessas da Fundação foram esvaecendo com o tempo -como todas as outras, diga-se de passagem- até virarem um esquálido: "Pois é, sinto muito, não deu", e eu voltar à estaca zero, me perguntando, mais uma vez, onde havia errado ou o que estava faltando ainda... Então, apesar da frustração, mas sem desanimar, continuei levando os diários, ainda convencida de que daquele mato sairia coelho e, para não ficar parada, um dia decidi pegar os cadernos mais velhos e corrigi-los, trabalhar os conceitos originais, a ortografia, o estilo, a clareza... Foi -e está sendo- uma experiência e tanto, pois a cada correção surgia um novo texto, claro e ágil, profundo, uma outra crônica amadurecida que me deixava realizada e tranqüila, pois cada vez estava mais certa de que este era o caminho do meu dom, de que estava cumprindo meu destino como escritora e de que estava partilhando com outros experiências que poderiam mudar as suas vidas, assim como a minha foi.
A publicação dos meus trabalhos no jornal é só um início, tenho certeza, mas não quero apressar os acontecimentos. O importante é que eles estão sendo lidos por muitas pessoas -como o blog, agora- e que elas estão sentindo-se identificadas, estimuladas e compreendidas através das minhas palavras. Sinto que chegou o momento, que agora estou pronta para começar o verdadeiro trabalho (aos 52!) Todas as peças se encaixam e consigo enxergar quase a totalidade do quebra-cabeças que foi esta longa e nem sempre fácil jornada, consigo entender muitas coisas que um dia me pareceram frustrantes e injustas, mas que jamais me levaram a desistir, consigo apreciar a sensibilidade -às vezes até meio dolorosa- que desenvolvi, o poder de observação e reflexão, a capacidade de me colocar no lugar dos outros para poder chegar até eles e descrevê-los com justiça e compaixão e dar-lhes esperança e motivação para desejarem ser felizes e continuarem lutando, pois através da minhas crônicas eles podem se dar conta de que alguém sabe que eles existem e de que as suas histórias são importantes e formam parte da história da humanidade, tornando-os de alguma forma imortais. E é por isso que eu estou aqui e faço o que faço, porque saber que existimos para alguém e que as nossas vidas têm algum significado para os outros é a melhor forma de imortalidade que podemos desejar.

Um comentário:

DANIELA BUZETI disse...

DONA PAZ, SAUDADES, MUITO LEGAL!