segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Cenários

E depois de muitas aventuras e desventuras (as quais incluíram a morte do meu mais fiel companheiro de treze anos, "Arthur" -o cachorro mais lindo do mundo-, o céu da boca queimado por um pedaço de lasanha assassina fervendo e um baita vírus no pc, que agora está sem impressora) volto à rotina de cada semana, talvez um pouco triste (é muito estranho não ver o corpanzil do "Arthur" deitado aqui do meu lado enquanto escrevo), sofrendo para comer e com o orçamento mais apertado, mas ainda cheia de otimismo e inspiração. Só espero que meus leitores (todas as duas) não tenham achado que parei de postar as crônicas e voltem a ler meus textos. Bom, afinal, faz quase um mês que não escrevo nada!... Mas a vida continua e agora o "Arthur" me acompanha desde uma pequena moldura azul com sóis e estrelas, aqui na mesa do computador, e lá de cima, onde não posso vê-lo, juntinho de são Francisco e todos seus bichos de estimação... É um quadro bonito de se ver: ele lá latindo, fuçando no lixo celestial e mijando em tudo que é objeto que tenha um pé, esfregando-se nas nuvens fofas e babando em cima de qualquer coisa que pareça comestível!... Eta, cachorro danado!...
Bom, e deixando de lado a emoção, que já começa a encher meus olhos d'água (de novo!) aqui vai a crônica desta semana, meio atrasada, mas firme:

"Cenários.
Estava de pé junto ao fogão, enquanto coava o café para o desjejum de manhã bem cedinho, quando sem querer comecei a olhar em volta, para o cenário que me rodeava: os móveis, as prateleiras, os potes e copos, as gamelas com frutas e verduras, os vidros com biscoitos, as garrafas, os temperos, a mesa e seus banquinhos, a fruteira em cima dela, sobre a pequena toalha colorida, o relógio na parede com seus desenhos de vegetais, os imãs engraçados enfeitando a neve reluzente da geladeira... Tudo em seu lugar, fazendo parte da nossa rotina sem que percebéssemos. Me virei então e olhei para os enfeites de cerâmica, as fotografias em cima do balcão, os vasos com plantas. Aspirei fundo e me senti impregnada pelos mil aromas peculiares da nossa casa, que em nenhum outro lugar existem. Percebi a luz entrando pelas janelas e dando aos quartos uma coloração, um clima aconchegante e característico que parecia abraçar-me, dar-me as boas-vindas... Coloquei a garrafa de café na mesa e saí andando pela casa, bem devagar, observando cada detalhe com renovada atenção, e era como se algum tipo de magia fosse tomando conta de tudo. Saí ao jardim e continuei a observar. Tudo era tão especial e único, tão pessoal! Até alguma falta de ordem e manutenção (parede descascando, chão trincado, roupa no varal, grama comprida demais) parecia em harmonia com o conceito que se firmava dentro de mim: lar.
Quando era pequena morei em muitas casas, em muitos bairros diferentes, passei por inúmeros colégios e paróquias, e de alguns ainda guardo esse tipo de lembrança: cheiros, sons, cores, cantos, luzes, jardins; uma agradável e aconchegante desordem, um carisma único e insubstituível, imposto por todos nós, como a família que morava ali ou simplesmente passava algum tempo naqueles locais. Assim me lembro da minha infância, da minha adolescência, de pessoas e acontecimentos, de sensações e lições que posso reviver com absoluta fidelidade graças a estas referências permeadas de significados, de riqueza e originalidade, de experiência. Os cenários das nossas vidas são uma parte viva e vital do nosso crescimento e amadurecimento como seres humanos. Elas não existem sem eles. Podemos ir embora e nunca mais retornar, mas estes lugares com suas características permanecrão para sempre em nós.
Olhando hoje para esta casa e as suas peculiaridades, esculpidas pelo uso, os costumes, as rotinas, os carismas, as necessidades e projetos de cada um dos que nela habita -e que podem ser consideradas tanto defeitos quanto qualidades- não posso evitar me perguntar se daqui a vinte, trinta anos, meus próprios filhos terão lembranças parecidas com as que eu tenho hoje dos lugares em que morei, se conservarão no coração as sensações, as cores, os cheiros, os sons e, de alguma forma, irão se sentir seguros e acolhidos toda vez que eles vierem às suas mentes. Me pergunto se serão para eles sinônimo de lar, de aconchego, de proteção, de amor incondicional, de porto seguro. Porque cada cenário no qual se desenvolve uma parte da nossa vida é um lembrete de que somos amados, de que temos um lugar entre os homens, de que conquistamos a nossa participação na história da humanidade, mas principalmente, de que somos reis de castelos que nenhuma maré poderá jamais desfazer."

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A prece

Final de semana de espetáculo é fogo, né?... É por isso que só hoje estou postando esta crônica... Ainda bem que correu tudo bem e a nossa peça de encerramento foi um sucesso. O público curtiu, riu, entendeu a história e, no fim, aplaudiu em pé... Isso é ótimo para o ego de todos, sobretudo porque estávamos com medo de que a platéia não entendesse as piadas e nem sequer esboçasse um sorrisinho amarelo, mas, graças a Deus, não fomos só nós que achamos o texto engraçado... Ufa, que medão!. Mas mesmo atrasada, aqui vai a crônica de sábado:
Todos de mãos dadas, cabeças bem abaixadas, olhos fechados, vozes de adultos e crianças misturadas nas palavras da fervorosa prece recitada no início desta manhã ensolarada e ainda fresca. O calor virá mais tarde, opressivo e desgastante, a tirar-nos as forças e a inspiração...
-Pai nosso, que estais no céu...
Professores e alunos elevam as suas vozes, umas confiantes e animadas, outras apagadas e discretas, buscando neste instante de comunicação com o divino o ânimo e a alegria para o trabalho que os aguarda e que, aqui, é exaustivo, cheio de empecilhos e, às vezes, tão frustrante e infrutífero.
Eu ergo a cabeça e abro dissimuladamente os olhos para observar discretamente as pessoas no círculo ao meu redor... E esbarro com o Domício bem na minha frente, olhos fortemente fechados, cabeça abaixada mostrando seu cocuruto de cabelos pretos e ouriçados, meio ladeada, corpo não muito equilibrado por conta da paralisia, roupa surrada, botinas gastas e cheias de pó de serra -trabalha na marcenaria da escola- e dedos crispados e algo deformados segurando com força os dois colegas de cada lado. Reza junto com os outros, cheio de fervor e concentração, a sua voz um pouco mais alta, as palavras meio enroladas... Porém, a sua devoção é tal, seu tom tem uma convicção, uma fé tão verdadeira, que me comove sinceramente... E me envergonha. Porque olho de repente para mim mesma, rezando de qualquer jeito, a mente perdida em mil pensamentos fúteis, perguntando-me o que terá no almoço, ou onde a professora ao meu lado comprou esses sapatos, se aquele aluno problemático faltará hoje -dando-me um pouco de sossego- e se irão pagar as poucas horas extra que aceitei fazer este mês... Estou apenas cumprindo um ritual, distraída, ralaxada; as minhas palavras nada significam, nenhuma energia passa pelas minhas mãos ou sai do meu coração para abraçar estas pessoas tão carentes, esforçadas e cheias de problemas (porque eles sim têm problemas!)... Ao perceber a tremenda heresia que estou cometendo, um rubor quente e úmido me sobe às faces e meus olhos pousam de novo na cabeça hirsuta de Domício, como se quisesse me agarrar à sua fé para poder olhar no rosto de Deus. Porque sinto que ele realmente espera a proteção, a ajuda, o consolo, a salvação, o milagre que a prece pede. A sua é uma oração otimista, poderosa, à qual se entrega com a mais absoluta inocência e fé, como só alguém feito ele faria. Seus lábios tortos esboçam o secreto sorriso de quem está diante do melhor amigo, iluminando seu rosto moreno e assimétrico. Ele crê. Ele espera. Ele aceita. Neste instante a sua cruel limitação nada significa, não possui peso algum. Por um segundo consigo enxergar uma espécie de perfeição inexplicável em sua figura, em sua atitude de sereno e alegre recolhimento interior... Nada interfere em sua comunicação com Deus... E eu ali, parada na sua frente, corpo mole e coração pesado, cheia de preocupações e receios, de frustrações, preguiça e má vontade, sinto-me de repente indigna de fazer parte da mesma roda...
Respiro fundo e abaixo a cabeça novamente, tentando encontrar o caminho, a luz, a certeza que me guie até onde Domício se encontra, diante do seu Pai, e num arranco de rara humildade, tenho o impulso de ir até ele e pedir-lhe que me ensine a rezar de novo, a confiar e me abandonar nos braços de Deus como ele faz... Mas acho que isto é tão natural para ele que não saberia dar-me a "receita", pois não se trata do jeito como reza e sim do jeito como vive e, nesse segundo, juro que sinto inveja deste deficiente que mal consegue pronunciar meu nome ou levar uma colher à boca.

sábado, 22 de novembro de 2008

Ligações

Mais um sábado, porém menos cansada e com mais tempo, já que levantei mais cedo e não fiz a minha caminhada, pois ontem à noite acabei indo deitar quase às duas da manhã... Por quê? Fiquei assistindo -pela enêsima vez- "King Kong" e, como todas as outras vezes, chorei feito uma Madalena quando o gorilão despenca do Empire State e a mocinha fica lá em cima, desesperada, olhando ele se arrebentar na calçada lá embaixo... Já vi esta cena infinidade de vezes, em várias versões, e sempre acabo me emocionando. Coisas que têm a ver com animais são meu ponto fraco, definitivamente... E talvez agora estou mais sensível porque um dos meus cachorros, o "Arthur", que já está com 13 anos, está com um sério problema de displacia nas patas traseiras, então de repente não consegue se levantar e alguém -eu, claro- tem que correr para ajudá-lo passando-lhe uma toalha pela barriga e puxando-o para que assim possa ficar em pé... Ai, que dó!... Ele fica tão agradecido e envergonhado da sua incapacidade, me olha com uns olhos úmidos e brilhantes e vem se esfregando nas minhas pernas toda vez que consegue ficar em pé, que só não desando a chorar porque podem pensar que estou ficando maluca...Mas, caramba, o afeto que a gente desenvolve para com os nossos bichos de estimação é uma coisa realmente impressionante!... E uma vez que se tem um, não se pára mais. Quando este morre a gente diz: "Ah, nunca mais", porém, dali a alguns meses, já está levando pra casa um outro e dando-lhe igual ou mais amor do que ao anterior. O segredo é, eu acho, ter consciência de que os animais duram menos do que a gente e que, quando nos deixam, nosso coração deve ficar sossegado porque sabemos que eles foram amados, se divertiram, comeram, foram paparicados e acariciados, alimentados e cuidados da melhor forma possível, então... É o argumento que estou preparando para quando os meus se forem, e acho que vai funcionar, apesar da semana que vou passar chorando e olhando para seus pratos vazios e as suas almofadas e "cheirinhos"... Mas nós os amamos, não amamos? E é isso que conta no fim.
Bom, e a crônica de hoje ( a de cima foi de graça):
Vindo pela rua já dava para ver de longe aquela singular escultura vegetal no jardim da frente da pequena casa amarela. A gente até piscava um par de vezes, como para se certificar de que era isso mesmo e, inevitavelmente, terminava parando diante do portão para admirar aquela original obra de arte: um enorme galo esculpido à tesoura de podar num pinheiro que se erguia, majestoso, bem no meio da grama. O galo do seu Tuta, o jardineiro. Pelo menos duas vezes por mês podiamos ver o homem, de tesoura na mão, aparando com todo esmero e concentração os galinhos que haviam crescido, desfazendo assim os contornos da escultura. Às vezes, ele estava encarrapitado numa escada de madeira, às vezes deitado no chão, em cima de um jornal, outras ajoelhado embaixo da sombreada barriga do galo ou, então, de chapéu de palha para se proteger do sol, dando voltas e mais voltas ao redor da escultura para se cerciorar de que não restase nenhum galho rebelde. Seu Tuta mantinha a sua obra sempre verde a perfeitamente aparada; com chuva ou com sol, lá estava ele, podando-a, todo orgulhoso e recebendo modestamente os elogios de transeuntes e vizinhos (e algumas piadas também). O galo ficou conhecido em toda a cidade e virou uma espécie de ponto de referência para todos.
Algum tempo depois, e aparentemente não satisfeito com esta única escultura, seu Tuta decidiu plantar mais dois pinheiros para se tornarem as suas próximas criações. Uma seria a sagrada família e o burrico e a outra um cogumelo com uma centopéia em cima fumando um narguilé, personagem de "Alice no país das maravilhas". Quando o primeiro pinheiro atingiu o tamanho certo, seu Tuta deu início ao seu paciente trabalho. Esperava sem pressa até que os ramos crescessem para ir cortando-os segundo seu projeto e assim, a sagrada família foi se definindo e aparecendo um pouco mais a cada mês... Todos aguardávamos ansiosos pelo resultado final e estávamos sempre perguntando a ele quando a escultura ficaria pronta. E feito Michelangelo respondia ao Papa toda vez que este o interrogava sobre os afrescos da Capela Sixtina, seu Tuta dizia para nós, sorrindo marotamente: "Só quando ficar pronta"... E prosseguia cortando aqui e ali, olhando em cima e embaixo, arrancando delicadamente as folhinhas rebeldes que insistiam em ficar fora dos contornos da escultura, apreciando de longe, de perto, com olhar crítico e mãos nos lábios, o nascimento da sua criação. Seu Tuta não era um jardineiro muito bom, mas a sua paixão pelas esculturas vegetais e a perfeição com que as executava -para deleite de quem se deparava com elas em algum jardim- desculpava as suas deficiências em nossas gramas e canteiros.
Porém, o tempo foi passando e a escultura não ficava pronta. Inclusive começaram a surgir uns galhos compridos e desordenados no galo e algumas trepadeiras parasitas infiltraram-se sub-repticiamente no meio da sua folhagem, como se seu Tuta tivesse esquecido da apará-lo durante um bom tempo. Foi então que notei que ele não aparecia mais na rua para seu costumeiro passeio de fim de tarde até o bar do seu Pedrinho, onde sentava num banquinho e bebia a sua cerveja gelada jogando conversa fora com os amigos ou disputando algumas partidas de truco ou sinuca. No jardim da casa amarela, os pés do burrinho, já esculpidos, encheram-se de galhos e brotos, acabando por perder as formas, assim como as outras duas figuras e, finalmente, para nosso espanto, começaram a amarelar a secar... Curiosamente, o resto do pinheiro continuava verde, só a escultura escureceu e morreu, perdendo por completo as folhas... Uma tarde, passei em frente ao jardim e vi que tinham-na podado completamente. Foi uma sensação tão esquisita ver aquele espaço vazio!... Olhei então para o galo e percebi que alguns galhos altos escapavam da cauda bem modelada e que o buraco do olho começara a secar também. Tinha todo ele um estranho e lúgubre ar de abandono e mau agouro... Foi quando soube que seu Tuta estava doente. Mal de Parkinson. Logo ele, que precisava tanto das mãos para levar a cabo seus trabalhos!... Fiquei triste mesmo, imaginando a sua frustração e impotência.
O encontrei ainda algumas vezes na rua, andar inseguro, olhar embaçado, mãos trêmulas, pálido e extremamente magro. Eu passava por ele e o cumprimentava com meu mais alegre sorriso, mas ele não mais me respondia. Só murmurava algo ininteligivel e dava um sorriso vazio. Depois, eu passava diante da sua casa, onde o galo tinha perdido quase que totalmente a forma original e era tomado gradativamente por aquele tom marrom escuro e seco que prenunciava a sua morte, e um calafrio me percorria, sem saber por quê.
O tempo passou e eu comecei a ir para o trabalho de ônibus, assim, não encontrei seu Tuta nem vi o estado das suas esculturas durante um bom tempo. Mas um dia em que decidi voltar caminhando para casa percebi, já de longe, aquele terrível vazio no jardim da casa amarela. Cheguei perto e parei, sem acreditar no que via: o enorme pinheiro no qual fora esculpido o galo tinha sido cortado rente ao chão, e agora mostrava apenas um toco seco e endurecido... Foi como receber um tapa no rosto... Nesse momento divisei a nora do jardineiro saindo da casa e decidi me aproximar para perguntar-lhe sobre o que acontecera.
-Nossa, o que foi da escultura? Estava tão bonita!...
-Pois é, morreu.- me respondeu ela -O pinheiro queimou todinho, como se alguém tivesse botado fogo nele.
-Mas ,seu Tuta não vai plantar um outro?- inquiri.
Ela me olhou, surpresa, e perguntou:
-Então você não sabe?...- e acrescentou, triste: -Seu Tuta morreu.
Fiquei parada ali, pasma, tentando acreditar e lembrando dos maus augúrios que sentira no ar quando vi os primeiros sinais da morte do pinheiro. Podia ser tanta coincidência?... Dei os pêsames à moça e ela entro no seu carro, acenou para mim, deu partida e se afastou pela rua abaixo, deixando-me ali, atordoada... Olhei de novo para o pinheiro e de repente senti uma trememnda falta daquele galo verde e pomposo. E me perguntei, espantada: "Pode-se desenvolver uma ligação tão íntima com aquilo que se toca, que se ama, que se produz, ao ponto disto transformar-se no reflexo da própria vida?"... As plantas adoeceram e apodreceram junto com seu jardineiro criador e junto com ele morreram, feito passarinho que definha de tristeza pela falta do dono. Parece que ao faltar-lhe o contato amoroso e a alegria e inspiração de cada pequena poda, os pinheiros pressentiram a agonia e a morte do seu escultor e, sem futuro nem objetivo, abandonaram a vida no mesmo compasso das batidas do coração do homem.
Fui para casa em pesaroso silêncio, pensando nas infinitas ligações de todos os tipos que criamos ao longo da nossa existência e na pouca importância que damos à maioria delas. Mas o que me deixou mais impressionada foi perceber que, a despeito disto, estes elos que se criam parecem indestrutíveis e todas estas ligações acabam permanecendo muito mais próximas do que imaginamos, criando as suas conseqüências, suas lembranças, suas raízes e ensinando-nos as suas lições, e por mais subjetivas que algumas possam parecer, todas são absolutamente reais e têm um objetivo específico em nossas vidas. Num mundo de solitários cibernautas e acirrados combartes por poder e prestígio, o sentido da ligação com algo ou alguém sem nenhum interesse está quase perdido entre nós, mas devemos entender que ligar-se não é enfraquecer e sim tornar-se mais forte e sábio, pois é desta ligação com a diversidade que nos rodeia que nascerá a nossa sabedoria.

sábado, 15 de novembro de 2008

Sábios, reis, artistas, evangelizadores.

Toda vez que posto uma nova crônica gosto de começar contando algo sobre meu dia-a-dia, assim os leitores podem me conhecer mais um pouco e talvez até se identificar com as minhas peripécias e sentimentos. Hoje, porém, havia decidido não escrever nada e publicar só a crônica -não só porque o pc se dedicou a me sabotar a manhã inteira com um letreirinho de "depuração" que apagava tudo que tinha escrito- mas porque não estava lá aquelas coisas de animada. Ontem fui num aniversário e, ao invés de desfrutar da festa e da companhia de pessoas queridas e agradáveis, fiquei quieta e isolada num dos bancos de granito do jardim do prédio, sentindo raiva e frustração por uma situação que não tem solução, e pena de mim mesma -detesto quando sou assaltada por estas crises de auto-compaixão, mas ainda bem que duram pouco- por ter de passar por ela imune, coisa que já deveria ter aprendido, já que ela se alastra por três anos sem nenhum indício, nem sequer microscópico, de mudança ou melhora... Mas, como tudo na vida passa, hoje já acordei contente, dancei a música do radio despertador, conversei com meus velhos cachorros aleijados, respirei fundo o ar fresco e cheio de novos perfumes da manhã, liguei para a minha filha, dei uma boa olhada ao meu redor e me senti novamente disposta e confiante para continuar com as minhas batalhas -grandes e pequenas- para correr atrás de vitórias e não de derrotas ou lamúrias e persistir na paciência, o otimismo e a criatividade para lidar com aquelas situações que não têm saída, pois como bem dizem os árabes: "Se tem solução, para que se preocupar? E se não tem, para que se prpeocupar?"... E, claro, estão absolutamente certos. Nâo vou desperdiçar meu tempo, a minha energia e a minha inspiração neste tipo de coisa quando tem tanta coisa boa ao meu redor! Se olhar para a balança dos prós e dos contras, sem dúvida há uma coisa negativa enchendo um dos pratos, porém, em compensação, no outro as coisas positivas estão caindo pelas tabelas e não posso ser ingrata com Deus ao ponto de desprezar ou esquecer todas elas para me ocupar somente daquela outra que às vezes machuca meu pé, feito um pedregulho que se mexe para lá e para acá, segundo caminho... O negócio então, é continuar andando, sempre para a frente, sempre de olhos e coração bem abertos para não perder nenhum dos milagres que acontecem ao nosso lado para animar-nos, ensinar-nos e fazer-nos crescer.
E aqui vai a crônica de hoje:
A caminho do trabalho hoje de manhã, enquanto tentava fazer um planejamento das minhas atividades na Fundação, encontrei uma mendiga carregando um grande saco de juta cheio de latas vazias e garrafas plásticas -mulher negra, gorda, de cabelos pretos e andar desengonçado- que passou por mim cantarolando. Usava uma camiseta velha e esburacada enrolada na cabeça, vestido largo demais, mesmo para seu corpo rechonchudo, de um tecido mole e surrado, que já tivera estampa florida, todo remendado e sem sor definida, e chinelos gastos -um de cada cor- nos pés de calcanhares rachados e deformados... Primeiro, escutei a sua voz surpreendentemente melodiosa e afinada vindo por trás. Em seguida, senti a vibração poderosa do seu corpanzil se aproximando junto com a música, e logo ela passou por mim, batendo de leve em meu ombro e na minha sacola com seu saco de latinhas e garrafas. Caminhava animadamente, de cabeça erguida e olhos atentos, apesar da evidente dificuldade que o excesso de peso lhe ocasionava, e eu não pude evitar ficar observando-a enquanto se afastava de mim, admirada pelo seu bom humor apesar do seu aspecto miserável e da prpomessa de chuva e frio que pairava sobre nós... Me mantive a uma certa distância atrás dela, o que me permitiu perceber que mancava, fazendo com que as suas costas entortassem perigosamente para a esquerda a cada passada. No entanto, nada na sua atitude demonstrava dor ou aborrecimento, cansaço ou tristeza... De repente, no mei do quarteirão, encontramos uma mulher que vinha com seu saquinho de pão quente e cheiroso saindo da padaria da esquina. De longe, ela olhou para a mendiga e deimproviso abriu um sorriso largo e luminoso e veio tortreando cumprimentá-la como se se tratasse de uma velha amiga que não via fazia muito tempo. Mantendo aquele sorriso cálido e terno e sem se acanhar pelo aspecto da outra, perguntou-lhe pela família, pela saúde, pela vida, e a mendiga respondeu a tudo com a maior naturalidade e, por sua vez, perguntou à mulher pela vida dela, pelo esposo doente e a carreira dos filhos. A mulher fez um suscinto relatório e ambas se despediram com um beijo, continuando em seguida seu caminho sem que a mulher fizesse -para meu desconcerto- nem o esboço de lhe oferecer um ou dois pãezinhos dos que carregava e que despediam um aroma de dar água na boca. E a minha mendiga tampouco fez questão de pedir nem sequer indiretamente... Eu, espantada diante de tal cena, decidi ficar por perto para ver o final desta história, nem que por causa disto chegasse atrasada ao trabalho!.
Mais adiante -eu no encalço da mendiga fazendo de conta que lia calmamente alguma coisa muito importante em minha agenda e fazia anotações igualmente importantes- um senhor de botas e chapéu de feltro parou para cumprimentá-la também, e depois mais duas mulheres e ainda mais uma, que estava indo deixar a filhinha na escola... Minha surpresa e fascinação cresciam a cada um destes inesperados encontros, pois normalmente, todos prefeririam manter-se a distância de alguém como ela, no entanto. Esta mendiga -da qual eu me afastaria discretamemnte se cruzasse com ela na rua pelo seu aspecto sujo e meio grotesco- era conhecida de todo mundo!... Mas, quem diria? Como isso era possível? Afinal, quem era ela para ser tão popular assim?... Então, comecei a me perguntar qual seria a sua história, pois com certeza devia ser bem incomum. Nâo pude deixar de notar que a sua fala era até polida e muito clara, usava as palavras corretamente e a sua pronúncia era como a de alguém que cursou a escola. Seus modos eram afáveis e anacronicamente suaves para alguém com seu tamanho e aspecto. Porém, o mais desconcertante para mim era o fato de que ela parecia conhecer todo mundo intimamente e que isto era recíproco da parte dos que cruzavam com ela... Será que ela já fora vizinha deles? Da mesma igreja? Os filhos estudaram na mesma escola? Freqüentaram as mesmas lojas e mercados, trocaram receitas e confidências no portão ao entardecer ou enquanto esfregavam a calçada?... E qual foi a desgraça absurda e impiedosa que jogou esta mulher na rua para acabar recolhendo latas e garrafas no lixo? No lixo daqueles que, ao parecer, foram seus conhecidos... Mas que ironia cruel... No entanto, e por alguma razão que não cheguei a descobrir, ela não se mostrava infeliz, envergonhada ou revoltada com a sua sorte, pela sua atual posição diante deles, que tinham prosperado e criado família e raizes. Muito pelo contrário, sorria e conversava com todos com a maior naturalidade e sincera alegria, e eles -como se tivessem algum acordo tácito e inviolável- tampouco pareciam sentir-se incomodados ou com pena por causa da sua miséria... O que fez com que eu cogitasse, incrêdula: "Será, então, que foi uma escolha dela e não uma imposição do destino?" Mas, por quê? Qual seria seu propósito? Poderia alguém, sobretudo nestes tempos de ambição e egoismo, escolher por livre e espontánea vontade a rua, a pobreza, a necessidade, e sentir-se feliz com isso?... Instintivamente, veio à minha cabeça a imagem de Francisco de Assis e seus pripmeiros irmãos, que largaram fortouna e família para dedicar-se à probreza evangelizadora e à pacificação... Então, será que eu estava diante de alguém assim? Uma santa, talvez?...
Nesse instante, a mendiga virou a esquina e se afastou alegremente rua acima, balançando seu barulhento saco enquanto eu pensava no quanto ela teria para me ensinar se eu tivesse a coragem, o tempo e a disposição para desviar ou deter meu caminho por algúm tempo e escutá-la. E tive certeza de que seria muita coisa... Mas eu estava em cima d a hora para o trabalho e desta forma deixei passar meu encontro com ela, talvez marcado há muito tempo pelo sábio destino. Bater o cartão, naquela manhã, pesou mais do que aprender o que a vida me reservara para aquele dia.
Há um sábio dentro de cada um de nós, nas mais diferentes áreas, que está sempre pronto para nos ensinar, não importa onde nem quando, se com ações ou palavras, se bem vestido e culto ou em farrapos e usando os tempos verbais errado. Dentro de cada um há um sábio, um rei, um artista, um evangelizador, um professor, e, r esumo, um ser humano com todas as suas qualidades e que não podemos desprezar ou marginalizar pelo fato de não ser parecido conosco, de não ser do "nosso nivel", de não falar corretamemnte ou por ser simples e desajeitado. Nunca se deve perder a chance que o destino coloca diante de nós em cada um destes encontros -às vezes desconcertantes, às vezes surpreendentes, às vezes milagrosos- pois nada sabemos sobre o caminho que cada um percorreu até este encontro, sobre as suas opções, seus dilemas e reflexões, sobre as suas descobertas e conclusões, e tudo isto pode ser uma lição capaz de clarear nossos próprios caminhos. Assim como os outros nada sabem sobre nós e por isso mesmo não queremos que nos julguem só pelas aparências, assim nós tampouco podemos julgar ou descartar quem não conhecemos. Um ser humano é um universo e não podemos rotulá-lo até conhecê-lo por inteiro, fato que é quase impossível, já que ele está sempre em transformação, o que faz com que, na verdade, ninguém possa ser rotulado. Hà que estar sempre aberto aos encontros, aos olhares, aos gestos, às palavras que vêm dos outros, sem nos deixar impressionar pela forma, pois esta é a melhor forma de aprender e crescer.
Julgar e condenar por antecipação é uma tremenda falta de caridade e não faz mais do que pôr em evidência a nossa enorme vaidade e presunção.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Quatro vezes por dia

Com um par de dias de atraso e algumas dificuldades para conseguir que o pc escreva em arial - que é a letra que mais gosto- cá estou mais uma vez, após um fim de semana de muito trabalho e muita dor de estômago por conta das porcarías que andei comento só para compensar o cansaço (estou louca pra sair de férias!), porém animada para começar tudo de novo, incluindo a dieta... Bom... Quem não conhece esse papo de segunda?... E aqui vai a de hoje:
"-Se você visse um destes pobres comer, você entenderia por que alimentá-los é a razão da minha vida.- foram as palavras que tentaram explicar a cruzada de caridade de uma mulher de 83 anos para com as aproximadamente mil pessoas que diariamente vão fazer a sua única refeição do dia em sua casa, já faz mais de cinqüenta anos... Franzina, cabelos brancos encaracolados emoldurando a sua face serena, de olhos claros e brilhantes, pele sulcada por todas as rugas da experiência, voz tão pequena e firme quanto a sua estampa, mangas arregaçadas, avental xadrez, colher de pau na mão e um imenso sorriso, entre emocionado e orgulhoso, que parecia alastrar-se pelo recinto todo e dar-lhe outras cores, um outro calor, feito um abraço de mãe... Eu tirei o dedo do controle remoto e parei, encostando-me no sofá, tomada por uma repentina e fascinada curiosidade diante da declaração daquela velhinha que, me pareceu, podia muito bem estar sentada no sofá da sua sala tricotando, assistindo novela ou brincando com os netos ao invés de transitar -já com bastante dificuldade- em meio àquele oceano de panelões fervendo, bacias com frango e macarrão, fornos assando pão e todas aquelas jarras de café e suco, as montanhas de pratos e talheres, copos e guardanapos que entulhavam a pequena cozinha e a área da modesta casa... Abismada, me perguntei quem ainda podia, nestes tempos de total egoísmo e ambição, fazer tamanho sacrifício em prol de qualquer coisa e sem nenhum intuito de se auto-promover com alguma finalidade política ou religiosa. Uma mulher que abria todo dia -há cinqüenta anos!- as portas da sua própria casa para um bando de pessoas miseráveis e esquecidas, sem mostrar o menor receio ou cansaço, era, com certeza, digna de um momento da minha atenção naquele domingo sonolento em que tudo parecia parado e vazio...
A câmera então focalizou um velho, de barba e cabelos desgrenhados, mal vestido, mãos trêmulas a segurar uma terrina de arroz, feijão, macarrão e frango ensopado e a colher de latão, que enfiava, transbordante, na boca desdentada. Estava sentado num canto da área, num banco de madeira onde havia deixado polidamente seu chapéu surrado e desbotado, e olhava alternadamente para a lente e para a terrina fumegante -como se tivesse medo de que esta lhe desaparecesse das mãos- com uns olhos tristes e opacos, humilhados, que lembravam uma criança desapontada: Papai Noel não existe!... Percebi então que aquela era a sua vida, aquela e não outra, e que ele não formava parte do elenco de nenhum filme ou novela, de nenhuma campanha para nos comover e arrancar-nos alguma doação. A fome e o desamparo daquele homem eram reais, a miséria agarrando-se às suas carnes enrugadas feito infames carrapatos, corroendo seus ossos doloridos, seus sapatos esburacados... E ele comia. Levava à boca a colher como quem enfia a própria vida pela goela abaixo, meio envergonhado de ser visto assim, feito algum bicho numa exposição, olhando para nós com aqueles olhos mansos e resignados diante da nossa estupefação e curiosidade, que já devia conhecer muito bem.
-Este é meu cliente mais antigo- disse então a mulher, aproximando-se dele e acariciando-lhe o rosto magro e barbudo. E ele, meio que sorriu sem graça, e continuou a comer metodicamente, com a calada teimosia de quem só quer sobreviver mais um dia, embalado pelo ritmo da sua fome sem fim...
O que aquele velho esperava da vida?, me perguntei, com o coração começando a apertar em meu peito. E a resposta veio instantaneamente: pois era isso mesmo que eu estava vendo, tão somente aquela terrina de comida. Esta era a sua única certeza. A terrina, o pão e o copo de suco. Tâo simples, tão banal, tão sem luxo, sem exigêncas! Para que mais?...Mas, o que tinha acontecido com ele, afinal, como foi que a sua existência havia chegado a isto? Como um ser humano podia se reduzir ao mero ato de comer e mais nada?... Porém, enquanto tentava entender a situação e encontrar alguma resposta, reparei de repente no rosto da mulher junto ao mendigo... Onde eu já tinha visto aquela expressão de bondade absoluta?... Vi a sua mão frágil e de dedos deformados se apoiar, com a extrema delicadeza de quem conhece bem o sofrimento, no ombro do velho e, em seguida, brindar-lhe um dos sorrisos mais deslumbrantes, compassivos e acolhedores que já vi na minha vida... E mais uma vez disse para mim mesma: "Onde já vi esse sorriso?"... O homem então, deixando a colher cheia de macarrão no ar, virou-se para ela e lhe sorriu também, a boca toda lambuzada de molho, e me pareceu que ambos olhares fundiam-se num abraço, numa espécie de comunhão que nada poderia explicar ou descrever. Aquela era, com certeza, uma cena tremendamente conhecida, mais parecida com uma revelação... Pois naquele instante, olhando para aqueles dois na tela da televisão, tão distantes e tão próximos ao mesmo tempo, duas histórias unidas pelo mesmo amor, entendi que o que verdadeiramente importava e atraia o mendigo não era só a terrina de comida e o pão -que preenchiam a sua fome física, sim, o que é uma questão de sobrevivência- mas o carinho, o olhar, o abraço cálido e compreensivo desta mulher que não só abria as portas da sua pequena casa e despensa, mas as portas do seu coração para este exército ignorado de esquecidos, famintos, negligenciados, marginalizados de todas as idades, cores, lugares e credos, que traziam até ela as suas histórias de fracasso e decepção, de erros, perdas ou arrependimento e saudades... E a todos ela acolhia sem questionar, sem cobrar, sem dar sermão ou pedir mudanças. Simplesmente acolhia, e este me pareceu ser o ingrediente mais saboroso e atrativo, o tempero especial e diferente que fazia do seu cardápio algo vital para cada dia nas vidas de todos eles.
"Esta mulher", pensei, piscando uma e outra vez para não deixar as lágrimas caírem, "faz mesmo alguma diferença neste planeta".
E qual a recompensa dela por todo aquele esforço e sacrifício, pela ininterrupta dedicação e persistência, ao longo de cinqüenta anos, arrecadando alimentos e roupas para seus protegidos (seus "clientes", como ela os chamava, rindo)... Pois era, justamente, a visão que nós, telespectadores, estávamos tendo: a fome saciada, a certeza do alimento hoje e amanhã, a acolhida, o sorriso. O abraço à caridade, a partilha alegre desta pequena refeição quente e gostosa, preparada com carinho, somente para eles... O estômago cheio, o coração aquecido, a alma ressuscitada naquele gesto básico, primário, elementar e sagrado que, para a maioria de nós, passa despercebido quatro vezes por dia.

sábado, 1 de novembro de 2008

A estrela

Após o temporal, a calma ressurge, lenta e tímida; se espreguiça e sai do seu esconderijo, pois foi incapaz de enfrentar a fúria do vento e das águas e teve de se proteger ela mesma, abandonando-nos à nossa sorte. Por onde ando vejo casas destelhadas, com jardins cheios de entulho e sujeira, árvores humilhadas, depenadas, mutiladas; montanhas de folhas secas e galhos, ninhos desfeitos, ovos despedaçados e filhotes mortos... E é curioso como este cenário de catástrofe contrasta hoje com o sol que reina, indiferente à nossa desgraça, num céu cristalino, com as nuvens que parecem brincar preguiçosamente e o perfume das mangueiras que impregna o ar fresco e paradoxalmente cheio de promessas. O céu e o inferno, como sempre, se misturam, se confundem diante dos meus olhos, e acabam por encontrar seu equilíbrio para que nós, pobres mortais, não desistamos de continuar vivendo e lutando.
Bom, esta foi uma pequena crônica de brinde, porque a de hoje, na verdade, é outra. Mas é que fiquei verdadeiramente impressionada com este último temporal pois, pela primeira vez, pude enxergar a sua beleza violenta e desgovernada, destrutora, a sua passagem veloz e barulhenta, que deixou atrás de si este cenário apocalíptico sobre o qual o homem se levanta e reinventa, mais uma vez, a sua existência, reencontrando a paz e a força entre os destroços e o lixo.
E aqui vai a crônica de hoje:
Um dia no palco, vestida e maquiada feito uma pequena obra de arte, recitando com paixão um texto inspirado sob os holofotes coloridos, envolta pelo clima mágico da história, da música e das outras personagens e, no fim, calorosamente aplaudida pelo público... No outro, sentada num caixote de madeira atrás da pequena banca de metal e tábuas onde estão expostas cenouras, beterrabas, maços de salsinha, hortelã e cebolinha, alguns de couve e batatas. Gorro de lã, agasalho grande demais, tênis surrados, expresão de sono e fome no rostinho miúdo e moreno, de grandes olhos puxados e sonhadores, corpo franzino encolhido sob o frio da manhã. Deve ter chego na feira de madrugada, com somente um café no estômago, para ajudar o pai a montar a barraca e ajeitar as verduras em cima da lona amarela...
A vejo ao passar com meu carrinho de compras, e aceno para ela, que em resposta me sorri com aquela pincelada de tristeza distante que já lhe conheço, pois é uma das alunas do curso de teatro infantil da Fundação Cultural. Me afasto, esquivando a multidão que enche a feira naquela hora -todos vindo na direção contrária à minha, ao que parece!- mas a sua imagem permanece na minha mente, ainda mais nítida do que todo o resto que me rodeia... De novo, lembro dela na noite anterior, feito uma estrela num outro céu, uma borboleta num universo tão dramaticamente diferente deste de hoje, falando e se mexendo naquele cenário inventado, desfilando nas cenas da peça que, por algum tempo, a rouba do seu palco habitual, rude, tingido de sacrifício e provações, feito de terra e rua, de chão batido, de roupas herdadas, cara lavada e poucas palavras... Não sei por quê de alguma forma me surpreende encontrá-la aqui. Talvez seja porque não estou certa de aonde ela é mais real, se no teatro ou na feira. Talvez um pouco em cada um destes universos?... E então me pergunto: qual é o mundo real para cada um de nós? Onde nos sentimos melhor, mais amados, valorizados, admirados, acolhidos? E para esta menina, como funciona este jogo bizarro? Sente-se acanhada por me encontrar aqui, sabendo que sou um dos jurados que dará nota à sua performance e à sua peça? Ou lhe sou indiferente porque, afinal, em nenhum instante perde realmente a consciência de que tudo não passa de um sonho?... Me olha como se reconhecesse sem lugar a dúvidas quais são os nossos papéis nesta história e, para meu espanto, mostra-se conformada com o seu, apesar daquela nuvem no fundo dos seus olhos.
Na volta, paro diante da sua barraca e a parabenizo pelo desempenho da noite anterior, e compro um maço de cenouras e outro de hortelã. Ela agradece, enquanto sua carinha de olhos aveludados se ilumina brevemente, e se despede com um sorriso franco e cativante, quase o mesmo que exibia no momento em que cumprimentava o público desde o palco. Porém, hoje ele tem umas gotas de amargor, de resignação e pesar, de realidade, de decepção até. Recebe meu dinheiro e torna a sentar no caixote, encolhendo-se vagarosamente, como se voltasse para o lugar onde as suas lembranças permanecem intocadas, gloriosas e cheias de luz e calor, preciosas, perfeitas. Quase que um sonho que vai ser esquecido ao acordar, mas ela sabe que aquilo tudo foi verdade, que por uma noite foi a estrela mais brilhante do céu e que a sua luz penetrou e aqueceu o coração de uma platéia que só tinha olhos para ela... E penso que talvez seja esta certeza o que irá sustentá-la nos muitos momentos difícieis pelos quais sem dúvida passará.
A certeza do sonho realizado -não importa quão pequeno e breve- nos deixa marcas tão sólidas e duradouras quanto uma tatuagem, e se torna o alicerce sobre o qual podemos ser capazes de construír uma nova história, abrir a porta inesperada, encontrar a força que tudo vence e dar o primeiro passo em busca da felicidade.

sábado, 25 de outubro de 2008

Paciência

Um día de tremendo calor, mas aqui em meu quarto, com a música do rádio no fundo e meu silencioso ventilador ligado, está suficientemente fresco como para postar mais uma crônica sem derreter diante do computador... Perdi um bom tempo e uma grande dose de paciência arrumando os erros de uma encadernação -que vou ter de refazer-, mas não o bastante como para acabar com a minha inspiração ou a vontade de escrever... Bom, acho que nada poderia tirá-la de mim, para ser sincera. Acho que é a coisa mais importante e gratificante em minha vida e não pretendo que nada me impeça de continuar fazendo-a... Nem sequer o trabalho desastrado de uma balconista de papelaria que não sabe fazer seu serviço!...
Então, aqui vai a de hoje:
Há uma coisa que, sem dúvida, deve ser aprendida e exercitada antes de todas as outras: a paciência. Sem entendê-la ou cultivá-la se torna realmente muito difícil atingir satisfatóriamente qualquer meta. Sem paciência não se produz, não se aprende, não se aprimora, se perde o momento certo para cada ação. Sem paciência não se percebe, não se assimila nem se chega à conclusões reais e muito menos à perfeição (isto dentro do possível, é claro). Não sei por quê as pessoas têm tanta pressa para tudo! O que esperam? Pular etapas para chegar antes? Ganhar tempo? Aproveitar mais a vida? Mas, e o que seria "aproveitar a vida"? Terminar antes que os outros?... Tem quem começa já querendo acabar, que inicia um trabalho pensando no próximo sem perceber que desse jeito está deixando passar a alegria e o aprendizado da experiência presente. Assim, nenhuma conquista é realmente desfrutada, assimilada, incorporada à existência, pois passa tão velozmente que mal conseguimos percebê-la no afã de seguir para o próximo desafio. Estas pessoas não estão nunca aqui, agora, mas sempre ali adiante, correndo para chegar primeiro na seguinte parada que, às vezes, nem sabem qual é ou se vai realmente acrescentar alguma coisa ao seu crescimento. Mas, eu me pergunto: Por que a pressa? A criação não tem tempo limite, não é uma corrida, não está com uma espada sobre as nossas cabeças ameaçando despencar se não cumprimos os prazos!... Por que as pessoas de hoje desprezam a perseverança, a dedicação, a reflexão, o processo de aprendizado e as pequenas experiências que, no fim, são as que conformam o grande resultado, o sucesso, a lição? Em troca do quê? Uma sensação ilusória e efêmera de mais tempo? Mas que tipo de tempo é esse que ganham? Qual a sua qualidade? Engolido às pressas nem o seu sabor consegue-se sentir. Num piscar de olhos já foi e só restou um vazio, um estado de perpétua inconsciência, de ausência... As pessoas estão sem paciência para viver, para ser, para estar, esta é a minha conclusão. Têm tanto medo de perder o tempo das suas existências -que a cada dia parecem mais breves e sem sentido- de deixar alguma coisa importante para atrás, de não ganhar o que quer que seja o prêmio no fim desta corrida, que em seu empenho por abranger o máximo de atividades durante a sua passagem pela terra, acabam por perder a maioria das lições que deveriam aprender com elas ou, então, as vivenciam infimamente, pois não têm paciência suficiente para chegar até o fim delas, sempre preocupados com o que vem a seguir.
É por isso que a primeira coisa que sempre digo a todos meus alunos -independentemente da disciplina em que estejam trabalhando- é que, antes de mais nada, precisam desenvolver dentro deles a arte da paciência, aquela necessária para observar uma árvore crescer, pois sem ela não chegarão a lugar algum. Falo para eles que o cultivo desta virtude nos leva automaticamente à prática de outros conceitos vitais como a percepção, a compreensão a serenidade, o diálogo e a compaixão. Temos que aprender e aceitar que as coisas terminam somente quando seu ciclo está completo -e tudo tem um ciclo- e que não adianta empurrar o rio, porque ele corre sozinho, como diz o grande psicólogo Karl Jung. Isso inclui as nossas existências também e é um fato que não pode ser alterado não importa o quanto nos incomode, nos irrite ou nos amedronte. Todo processo precisa ser vivenciado em sua totalidade para que dele se obtenha alguma conclusão válida e duradoura, que acrescente mais um tijolo à construção de nós mesmos.

sábado, 18 de outubro de 2008

Cachorros

Conversando com a minha filha outro dia, contava-lhe os meus encontros e peripécias com os cachorros da vizinhança, ou que fazem parte da minha caminhada matinal, e de repente ela me perguntou se eu tinha alguma coisa escrita em meu diário -que é de onde saem estas crônicas- sobre eles. Respondi que sim, já que meu encontro diário com eles passou a ser uma das partes mais legais desta caminhada, e ela me sugiriu então colocar estes relatos no blog, pois com certeza não devo ser a única a conversar com animais, salvar filhotinhos abandonados, comprar carne ou biscoitos para cachorros de rua e me tornar amiga íntima de quem tem algum animal em casa. Às vezes, na minha empolgação e alegria ao encontrar estes meus amigos peludos, até me esqueço de comprimentar os donos e vou direto acariciar e conversar com os animais, deixando os coitados com cara de tacho e um sorrisinho amarelo... Mas até agora ninguém reclamou, pois sabem que sou tão louca por animais quanto eles, então qualquer falta de educação em prol de um carinho pra o bichinho, fica desculpada.... Assim, a minha filha insistiu para que postasse algo sobre meus "amigos" e, no fim da conversa, eu já estava revirando os cadernos para encontrar os textos que falavam sobre eles. Não são muitos, mas acho que vale a pena publicá-los pois, com certeza, muitos de vocês se sentirão identificados.
Então, aqui vai o primeiro:
Estou apaixonada pelo "Buck", o "João Pires" e o "Robert Taylor", os três cachorros mais feios da cidade!... O "Buck" é um filhote ainda, bulldog, branco e totalmente maluco, uma das criaturas mais simpáticas e cheirosas que já encontrei (vai uma vez por semana no petschop tomar banho e se perfumar). O "Jõao Pires" -não conseguia parar de rir quando a dona me disse seu nome, fruto da criatividade dos filhos- é uma mistura de pitbull com vira-latas, de olhos verdes e um corpo forte e atarracado que me lembra um toco de árvore. Pode parecer feroz à primeira vista, mas é brincalhão e adora uma coçada no peito. E o "Robert Taylor" (desse não sei o nome ainda, mas num desplante de engenhosidade e ironía, decidi batizá-lo como "Robert Taylor", um galã de cinema dos anos 30) é um bulldog puro, branco (mas que não toma banho há séculos) de focinho totalmente torto e olhos esbugalhados.. Às vezes quando passo diante da sua casa o encontro deitado na entrada, apoiado na grade com ar lânguido e reflexivo, olhando serenamente a paisagem e os transeuntes, a língua pendurada entre os dentes e a bocarra aberta, pois parece que algum defeito de nascença ou um acidente lhe impedem de fechá-la completamente... Assim que me vê ou escuta a minha voz, é repentinamente tomado por uma espécie de corrente elétrica e começa uma desajeitada dança de boas-vindas, agitando alegremente seu toco de rabo e resfolegando feito um touro. Apóia suas curtas patas tortas na grade e parece brindar-me com seu mais encantador sorriso, todo língua, dentes e baba, e fica ali, olhos fixos em mim, aguardando seu biscoito (É, continuo com o costume de dar biscoito a cachorros alheios)... E quem diz que eu resisto a todo esse charme?... É verdade que demorei um pouco para reunir coragem suficiente para passar a minha mão pelos barrotes da grade e acariciar a sua cabeça, pois a visão daqueles caninos enormes e aguçados não era nada convidativa, mas acabei descobrindo que o "Robert" é feito criança e se derrete por uma coçada na cabeça. Quando lhe ofereço o biscoito, ele o apanha com uma mordida meio desengonçada (acho que morde a própria língua toda vez que o faz) e me olha com a mais profunda gratidão, acena com seu rabo e deita ruidosamemnte no chão, dedicando toda sua atenção ao petisco, porém, não sem antes dar-me uma última olhadela e um sorrisinho desnivelado...
O "João Pires" -a quem eu chamava de "Demolidor"- me conquistou logo no primeiro dia em que o vi. Não é exatamente um filhote, mas adora brincar e destruir panos, sapatos, bolas, galhos e jornais. E foi assim que me apareceu a primeira vez: assassinando uma garrafa pet de dois litros. Estava escondido atrás da cerca viva de pingo d'ouro do jardim da frente, de modo que eu teria passado sem notá-lo, não fosse escutar aquele barulho que já conheço tão bem -a minha cadela adora morder garrafas pet- Não resisti e atravessei a rua para descobrir quem era que estava deliciando-se com a garrafa. Cheguei devagar junto à grade e espiei dentro, empinando-me um pouco.. E ali estava ele: um toco marrom e branco com quatro patas curtas e tortas e um par de olhos inesperadamente verdes e faiscantes, atacando e arrastando a garrafa, já toda deformada e esburacada pelos seus enormes caninos. A sua concentração era tanta que não me notou junto à grade observando-o, mas quando soltei uma risada virou-se velozmemnte e me encarou, ofegante e babando, e ficou totalmente imóvel.
-O que você está fazendo aí, "Demolidor"- perguntei, dando-lhe desde já aquele nome ao ver a quantidade de estrago que já tinha feito com um tênis, o jornal, uma toalha e uma caixa de papelão -A garrafa está gostosa?...- acrescentei, e não pude evitar rir de novo diante da sua expressão de desconcerto, o que deve ter-lhe parecido bastante idiota da minha parte, já que nunca havíamos sido apresentados.
Naquele dia não ousei ainda enfiar a mão pelas barras da grade ou chamá-lo para mais perto; me conformei com seu olhar meio desconfiado e com o fato dele não ter avançado latindo e rosnando na hora em que me viu parada diante da sua casa. Isso indicava que, apesar do aspecto, não era um cão agressivo, o que me proporcionava uma boa chance de tornar-me a sua amiga... Hoje é ele quem se aproxima até a grade e encosta nela a parte que quer que eu coce, recebendo em seguida seu biscoito com os olhinhos verdes brilhantes e as orelhas em pé. Antes de ir para seu pano -já em farrapos- estraçalhar o biscoito, sempre se vira e me olha uma última vez, mexendo o rabo (também um toquinho) e ensaiando uma pequena dança de agradecimento.
Vi o "Buck" (ou "Bubú", como eu o chamo) pela primeira vez no jardim da frente da sua casa, correndo e saltitando feito um louco entre a grama e os canteiros e enredando-se nas pernas da sua dona que, em vão, tentava segurá-lo para poder abrir o portão e assim permitir que o esposo pudesse tirar o carro para ir trabalhar. De longe escutei seus latidos e imadiatamente reduzi o ritmo da minha caminhada, pois adivinhei tratar-se de um filhote e eu não resisto a nenhum. Comecei a prestar atenção em ambos lados da calçada para descobrir onde estava o animal, e eis que de repente vejo, na casa vizinha a uma outra velha e cheia de galinhas e densas trepadeiras no quintal, uma pequena bola de pêlo branca rodopiando, pulando e latindo atrás das grades, aparecendo e desaparecendo entre as folhagens dos canteiros e os vasos da área numa velocidade estonteante, e uma desesperada mulher segurando uma coleira vermelha e chamando o filhote com voz ora severa, ora contendo o riso. É claro, parei e fiquei a observar a cena, tentando adivinhar de que lugar a bola de pêlos iria pular para assaltar as pernas da sua dona e tentar pegar a coleira, que parecia um artigo altamente apetitoso para seus pequenos dentes de agulha... Inesperadamente, o cãozinho surgiu das sombras do canteiro mais próximo à grade, latindo e arrastando um redemoinho de folhas e poeira junto com ele, desta vez disposto a pular e ficar com a coleira vermelha como troféu, quando de repente, me viu parada ali, rindo e, tão rápido quanto havia iniciado seu ataque, deteve-se, encarando-me com seus enormes olhos pretos e úmidos... Parado ali, em meio às lajotas escuras, parecia um brinquedo de pelúcia, ofegante e elétrico, aguardando a que lhe dessem um pouco mais de corda. Era a coisinha mais féia e deliciosa que eu já tinha visto!... A dona aproveitou a sua distração e correu até eles, passando-lhe prestamente a coleira pelo pescoço e o peito, e o ergueu em seu colo, sorrindo e murmurando frases de reconvenção que não intimidariam ninguém. Ao parecer, estava tão caída de amores quanto eu... Finalmente, ela conseguiu abrir o portão e o carro do esposo saiu para a rua, de onde se despediu efusivamente, jogando beijinhos e recomendações para o cão nos braços da esposa... Sem conseguir me segurar por mais tempo, me aproximei até a mulher e me derreti em elogios para o filhote, que de imediato começou a fazer uma conscienciosa lavagem em meu rosto e mãos, ao tempo que lutava feito uma mola para livrar-se dos braços da dona e retornar ao chão. Aí soube que seu nome era "Buck", mas vendo-o tão pequeno e cheio de energia, pareceu-me um nome sério demais, então passei a chamá-lo de "Bubú" e, claro, incluí-lo na minha lista de "biscoitáveis", só que para isso ser efetivo, a dona me explicou que eu teria de esperar a que ele completasse a dentição (ao ver os destroços de chinelos, bolas e tapetes me perguntei, não sem receio, como seria o estrago quando tivesse todos os dentes)... Pena que como é tão pequeno e alucinado, a dona não o deixa ficar muito no quintal da frente, pois estão fazendo algumas reformas na casa e há muito entulho e objetos perigosos misturados com os vasos e folhagens do jardim, mas também o mantém lá atrás com medo que alguém o leve embora, então os nossos encontros são pouco frequentes. Mas cada vez que torno a vê-lo levo um susto, pois parece estar crescendo à velocidade da luz!... Porém, a despeito disso, sempre que o vejo ele está correndo, rolando e pulando no meio dos canteiros, tropeçando nas pedras e vasos de avenca, latindo ou brigando com o jornal ou o tapete da porta. É só aparecer no portão e chamá-lo que ele larga na hora o que quer que esteja destruindo e vem em desabalada corrida até a grade -usualmente chocando-se estrondosamente contra ela- e fica pulando, babando e latindo alegremente, reclamando seus dez segundos de carinho (porque não consegue ficar mais tempo sossegado) e seu biscoito (a sua dentição já está completa agora) que assim que recebe, vai morder e chupar na protetora sombra dos arbustos do canteiro... Da rua, eu só enxergo seus enormes olhos brilhantes que, entre uma mordida e outra, me fitam a modo de agradecimento.
A parada na casa do "Bubú", do "João Pires " e do "Robert Taylor" sempre torna a minha caminhada -meu dia, para ser mais precisa- mais leve e alegre, pois toda vez sou recebida com a mesma efusão e espontaneidade, entusiastas meneios de rabo e olhos cintilantes, mais aquele impagável olhar de reconhecimento e afeto que tem a virtude de transformar o mundo à minha volta, deixando-o mais cálido e cheio de otimismo, fazendo com que me sinta especialmente querida e aguardada... É o biscito que opera este pequeno milagre diário? Talvez no início sim. Tem gente que afirma que as demonstrações de felicidade e alegria são puro interesse, mas eu já experimentei me aproximar sem ele, só para fazer um carinho ou conversar, e até agora não recebi nenhuma desfeita nem escutei nenhum rosnido de reclamação; nenhum deles virou as costas para mim ou deixou cair o rabo e as orelhas em sinal de mágoa...
Os animais, ao contrário do ser humano, amam você por você mesmo e não porque você tem um biscoito no bolso.
Bom, a coisa ficou meio comprida, mas tenho que ser justa, e se falo de um, tenho que falar dos outros também, porque todos -e mais alguns que andei conhecendo ultimamente- moram em meu coração e merecem idêntica atenção... Agora, pode parecer maluquice, mas eu recomendo um ou dois encontros com cachorros durante a semana para melhorar o humor e reduzir o estresse, para sair do nosso pequeno e denso mundinho de competição e receio e entrar um pouco no deles, que só querem um afago e umas palavras para encher-nos do mais puro e verdadeiro afeto.

sábado, 11 de outubro de 2008

O sobrevivente

Mais um sábado, hoje de chuva, e mais uma história. Hoje estou contente porque finalmente publicaram o endereço do blog na crônica desta quarta-feira na Folha de Londrina. Espero que a coisa funcione e mais pessoas possam ler meus textos... O único chato deste esquema é que você nunca sabe quantas pessoas realmente abrem o blog e lêem as crônicas, pois nem todo mundo posta um comentário ao respeito, então acho que devo supor que tem gente lendo e gostando, fora as que lêem as crônicas no jornal. Gostaria que eles publicasse pelo menos uma por mês, como fazia a antiga editora, mas sei que tem muita gente enviando trabalhos e também têm direito de vê-los publicados. No entanto, posso me sentir feliz porque, realmente, as minhas crônicas são as que aparecem com maior freqüência -provavelmente porque estou constantemente enviando novos textos- e recebem boas críticas. Acho que, no fim, tudo se resume a não desistir, não é mesmo?... Alguma hora algo tem que acontecer...
Bom, e aqui vai a de hoje:
Aquela imagem mais parecia saída de um quadro de Goya, de um concurso de fotografia no qual tivesse ganho o primeiro prêmio pela dramaticidade, ou de um cartaz de denúncia ou concientização sobre os velhos e as suas necessidades e penúrias: na pequena casa branca, construída com os mais diversos tipos de material, na área com teto de zinco e pilares de madeira, entulhada de latas com avencas e cebolinha, uma mesa velha coberta com uma toalha de plástico gasta e rodeada por cadeiras tão tortas e tristes quanto ela, o velho apoiava as costas vergadas na parede onde batia o sol da manhã, sentado num banquinho feito com os restos de uma cadeira metálica. Segurava um pote de sorvete do qual ia pegando vagarosamente, com mão trêmula, colheradas de algum tipo de mingau branco e fumegante, que levava à boca desdentada com todo cuidado para não derramar nada sobre o guardanapo que pendia da sua camisa. Atrás dele, no interior da cozinha sombreada, percebia-se grande atividade, vozes, barulho de pratos e panelas, silhuetas passavam pra cá e pra lá apressadas e cheias de animação, porém, para o velho sentado na banqueta ao sol, nada parecia importar a não ser terminar a sua refeição, silenciosa e metodicamente, encolhido naquela roupa grande demais para ele, calçado com chinelos velhos e de uma cor indefinida, os cabelos ralos despenteados, os pequenos olhos ausentes e opacos... Parecia que, uma vez que deram a ele seu pote de mingau, todos ali dentro haviam se esquecido dele e ele por sua vez, tampouco se mostrava interessado no que acontecia lá. Era como se estivesse numa outra dimensão, uma figura única e solitária, emprestada para compor aquele quadro do qual não parecia realmente fazer parte...
Passei lentamente diante da casa e uma rajada de angústia me apertou o coração ao perceber como ele se destacava sentado ali, apesar de tão miúdo e frágil, como parecia o reflexo fiel daquele tipo de terrível e devastadora miséria que invariavelmente afasta os velhos deste mundo; fiquei impressionada com a poderosa eloqüência da sua imagem de sobrevivente, de decadência, de solidão, de descaso por parte daquelas silhuetas que riam e conversavam lá dentro. Fiquei dolorosamente comovida e revoltada diante da sua evidente impotência, daquela resignação sem esperança e sem raiva, daquele pote de sorvete surrado no qual comia -por que não lhe deram um prato?- e da colher torta e opaca que levava à boca. Me perguntei que sabor teria aquele mingau, qual seria a sua consistência, se havia sido feito naquela manhã ou requentado do dia anterior, mas com certeza aquilo não era mais importante para ele; bastava poder comer... Me perguntei então como seria para este homem ter de se submeter à boa vontade dos outros, não ter mais o comando da própria vida, não ter um outro lugar no mundo e na história da família a não ser aquele espaço junto da parede, naquele pedaço da área de chão vermelho, ou embaixo da árvore na calçada em frente ao bar, para onde arrastava todo dia aquele mesmo banquinho e ficava sentado por horas a fio, fumando seus cigarros tortos e contemplando a azáfama do mundo ao seu redor com absoluta indiferêncça, talvez com um lampejo de desprezo em sua face enrugada.
Mas naquela manhã em que passei diante da sua casa, não me pareceu indiferente ou mostrando algum desprezo, porém abandonado, vencido, semelhante a uma vela que se apaga devagar, silenciosamente, sem nenhuma dignidade ou alívio, sem ninguém perceber... A sua imagem era tão pungente e sem esperança, que realmente poderia ser utilizada para nos conscientizar sobre o que nos aguarda se não começarmos agora a educar as novas gerações sobre o respeito, o carinho, a consideração e a compaixão que os idosos precisam e merecem para chegar ao fim da sua caminhada com o coração cheio de gratidão e satisfação pela existência que levaram e os feitos que realizaram, ao invés de transbordante de amargura e humilhação pelo nosso esquecimento e egoismo.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Vocação

Estava sentada no sofá do consultório, aguardando a minha vez enquanto folhava uma daquelas revistas de fofocas e considerando a pobreza daqueles textos cheios de gírias estrangeiras e indiscretos números delatando idades e medidas dos famosos, quando uma mulher entrou na recepção, levando um menino de uns quatro anos pela mão e com uma sacola de plástico colorida pendurada no ombro. Ficou um momento no balcão de atendimmento, verificando seu horário, enquanto o menino foi sentar numa das poltronas de vime que tinha ali perto. Acabada a sua indagação, a mulher -que devia ter uns 25 anos e muitos quilos a mais- foi sentar na poltrona vizinha à do menino, falou alguma coisa para ele, que sorriu animadamente em resposta, e em seguida pôs a sacola no colo, a abriu e tirou de dentro um livro de capas coloridas e formato irregular. A esta altura, eu já havia abandonado a leitura de fofocas e desfile de vaidades e estava observando a mulher e perguntando-me como iria manter a criança quieta enquanto esperava a sua vez, pois ela parecia cheia de energia e o consultório cheio de possibilidades para correr, bagunçar e fazer estragos... No entanto, assim que ela tirou da sacola o livro, o menino se ajeitou rápida e ansiosamente nas almofadas macias da poltrona e esperou, olhinhos fixos e brilhantes de expectativa na mãe, a que ela se acomodasse também e abrisse a primeira página do livro. Antes disso, a mulher ainda tirou da sacola um pacotinho de bolachas e um copinho com um canudo, que entregou para o menino com um sorriso no rosto. Em seguida, finalmente -até eu estava começando a ficar ansiosa!- recostou-se na poltrona, abriu o livro e começou a ler a história para o filho... Eu fiquei como que hipnotizada olhando para aquele quadro: a mãe lendo em voz baixa, dramatizando cada frase, seu rosto passando pelas mais variadas expressões, e o filho imóvel, coma bolacha numa mão e o copinho na outra, totalmente absorto em suas palavras e gestos... Percebi então que estava diante de um instante único entre mãe e filho, uma experiência de total intimidade e união, de cumplicidade sem receios ou preconceitos. E percebi também que o responsável por tal feito precioso e verdadeiro era o autor daquele livro de capas coloridas e irregulares. Aquilo era magia, pura magia...
Sorri, tomada por uma curiosa emoção, pois naquele momento lembrei que a minha mãe nunca me contou histórias...
Não me lembro dela sentada na beira da minha cama ou no sofá da sala, ou à sombra de uma árvore no quintal, descrevendo para mim as peripécias de alguma princesa injustiçada por madrastas ou irmãs invejosas, ou os feitos de bravura do príncipe que desafiava dragões e bruxas para resgatar a sua amada de uma torre inatingível. Não a vejo mostrando para mim os desenhos mágicos da lebre veloz ou da tartaruga persistente, do ratinho da cidade e do seu primo do campo, das fadinhas do bosque, do lobo e os porquinhos... Não, a minha mãe não lia histórias para mim, muito menos as inventava, como eu fazia para a minha filha. Ela comprava os livros, as revistas e nos levava ao cinema para assistirmos essas coisas, porém, nada mais acrescentava da sua parte a estas experiências, então eu tive que utilizar meus próprios recursos para aprender a imaginar, a viajar, a me envolver e acreditar nas palavras e imagens que apareciam diante de mim naquelas folhas coloridas ou na enorme tela do cinema.
Eu achava curiosa esta situação, pois sempre me lembrava do que a minha mãe contava sobre a sua infância e adolescência, do quanto ela gostava de ir ao teatro, à ópera, ao cinema, e de como, quando voltava para casa, encenava para os outros tudo que havia visto com todos os detalhes... Infelizmente, com o passar do tempo e as frustrações que se viu obrigada a suportar, parece que toda essa veia teatral, festiva e cheia de imaginação foi sendo sepultada, amordaçada, relegada àquele quarto escuro onde ficaram todos os encantos que ela sonhou desfrutar e que lhe foram tirados em prol da vontade dos pais e do irmão predileto e de um casamento no qual tudo deu errado... Eu entendia escuramente suas razões e não reclamava, pois ao menos ela nos proporcionava o material para que pudéssemos iniciar algum tipo de viagem, de aprendizado sobre imaginação, criatividade e magia, sobre sonhos e esperanças. Ainda me lembro das pilhas de revistas em quadrinhos de todos os tipos que se amontoavam em nossos armários: histórias de santos, de heróis, de fábulas, de romance, de príncipes, de desenhos, de mitologia... Havia épocas em que eram tantas, que podíamos pôr uma banquinha na porta de casa e vender algumas centenas sem detrimento do nosso estoque, pois ela continuava a trazer mais a cada semana, acontecimento que a minha irmã e eu aguardávamos ansiosas.
Foi com essas revistas que aprendi a desenhar, a construir uma história, a criar personagens e paisagens, diálogos, descrições, a procurar caminhos para a minha expressão. E foi nos livros da nossa pequena e entulhada biblioteca -que a minha mãe instalou naquele estreito corredor de casa- onde descobri o fascínio pela escrita, o milagre que aquelas letrinhas miúdas juntas podiam operar no coração de quem as lia, o poder que elas tinham para penetrar e transformar nosso pensamento, as nossas atitudes e objetivos; as portas que iam se abrindo à medida que se avançava na leitura, como o texto podia envolver, transportar para outras dimensões, fazer rir ou chorar mesmo sem ter nenhuma imagem como referência. Não era preciso, pois as palavras por si só, reunidas daquela maneira peculiar, eram capazes de despertar todas as emoções, reflexões e revelações que o autor desejasse, tal era seu poder, a sua intimidade com o leitor. Era como se, ao abrir o livro e começar a percorrer as suas linhas, se fechasse algum tipo de muro dentro do qual só ficassem o autor e o leitor partilhando aquele universo tão especial, tão único, porque -descobri depois- cada pessoa que pegasse um livro e lesse, faria um contato completamente pessoal e intransferível com o que estava em suas páginas, consigo mesmo e com o autor, mesmo que jamais chegasse a ter algum contato com ele... Era algo completamente extraordinário! A chance de poder dizer algo sem impor imagens ou sons, de contar uma história permitindo a quem lia fazer seu próprio quadro escolhendo os rostos, as vozes e os cenários era algo totalmente fascinante e desafiador, pois existia a certeza da infinita diversidade de interpretações e conclusões, todas baseadas na unicidade de cada pessoa que pegasse o texto nas mãos... Havia em tudo isto uma tal concepção de liberdade -tanto para o autor quanto para o leitor- que foi impossível não escolher esta vocação para mim. Ela preenchia todos os requisitos que eu procurava para atingir a minha realização!...
Não há regras para a arte, sei disso, porém, a escrita me pareceu a mais abençoada neste sentido, pois tudo fica numa dimensão na qual a liberdade de escolha é absoluta, tanto para quem escreve quanto para quem lê.
É, a minha mãe nunca me contou histórias, como aquela outra fazia com seu filho, mas, com certeza, ela me deu tudo que era preciso para que eu encontrasse a minha vocação e começasse a escrever as minhas.

sábado, 27 de setembro de 2008

Escrever.

Escrever... É no mínimio fascinante o curso que esta minha vocação foi tomando ao longo dos anos, pois se houve alguma coisa à qual fui fiel durante a minha vida toda, é ao meu dom para escrever. É algo superior a qualquer conflito, a qualquer amor, a qualquer outra opção ou realização. É mais forte e perseverante, mais transformador, revelador e motivo de amadurecimento e descoberta do que todos meus outros dons, talvez porque nele sou capaz de resumir todos esses em algo que vai durar para sempre e que funciona como o resultado último de cada experiência que tive -ou estou tendo. É como o registro final de quem eu sou, além dos atos, das peças, músicas ou desenhos, e que pode chegar mais fielmente às pessoas e assim fazer com que a minha missão seja cumprida com maior sucesso.
Escrever... Ontem à noite, deitada na penumbra do meu quarto silencioso, embalada pelo som monótono e hipnótico do ventilador em cima da minha cabeça, fiz uma viagem até as minhas primeiras palavras, as primeiras frases, as balbuciantes construções de histórias e personagens que teimavam em sair da minha mente e desfilar em folhas de papel sem fim, mesmo sem saber por quê, ou para quê, para quem. Aquelas folhas brancas me chamavam, criavam em mim imagens, emoções, rostos, situações, paisagens que precisavam ser impressas ali, traduzidas em palavras, caso contrário iriam explodir dentro de mim... E assim, sem nem saber direito o que fazia, nem por quê, levada por uma espécice de ânsia incontrolável e deliciosa, fui desbravando, penetrando e conquistando aquele universo fascinante e ilimitado da palavra escrita, do poder da mente para transcrever em imagens completas -com sons, cores, rostos, cenários, emoções, épocas- o que nela nascia e precisava ser contado ao mundo, às pessoas... E percebi como esta vocação, aos poucos, com o passar das experiências, do amadurecimento, com a mudança de perspectivas e oportunidades, com o aprofundamento do auto-conhecimento e o desenvolvimento da observação e a reflexão foi mudando, crescendo, encontrando seu verdadeiro caminho, seu "estilo", a sua linha de expressão. É como se, havendo passado por muitas fases -contos, romances, peças, crônicas, cartas e diários- estivesse finalmente chegando à sua forma final e mais acabada. Sei que ainda falta muito, mas tenho a sensação quase certeira de que encontrei o caminho definitivo por onde devo seguir para atingir meu objetivo: o coração das pessoas. Nâo sei se isto se deve ao fato das minhas crônicas estarem sendo publicadas na Folha e terem ótimas críticas de quem as lê, ou se é porque, mesmo que não as publicassem,
é a criação destes textos o trabalho que me faz sentir mais realizada e feliz. Nâo sei se vou continuar escrevendo dó este tipo de coisa ou se vou me aventurar novamemnte pelos romances e contos, mas se o fizer, com certeza eles não serão do jeito que eram, pois o próprio ato de escrever tornou-se algo que vai muito além de diversão, divulgação ou mero trabalho. Ontem à noite me dei conta de que escrever é agora, de verdade, algo sem o qual não poderia passar, uma forma de expressão pessoal capaz de atingir outros e dar-lhes algo de positivo, uma maneira de partilhar as minhas experiências e torná-las úteis para quem precisar. Também, pela primeira vez, estou me sentindo "escutada", valorizada, incentivada nesta área, o que significa que o tempo certo é agora, tal como eu suspeitava. Estou pronta para começar a mostrar, a ser interpretada, divulgada, desfrutada... E não é fim, mas um novo começo, talvez o último e melhor, que durará até o fim dos meus dias...
O tempo é sábio, porque está nas mãos de Deus, que nos coloca nos caminhos que precisamos percorrer para crescer e assim poder mostrar-nos em nossa plenitude quando o momento chegar. Cada um tem seu próprio tempo e dinâmica para fazer este percorrido e eu acho que agora eu cheguei ao instante de mais uma floração. Estou tranqüila, inspirada, segura, experiente, paciente, reflexiva e perceptiva, contemplativa o bastante como para abrir esta última porta, adentrar neste novo período da minha vida e aprender tudo que me falta, ou pelo menos, o máximo que puder antes de ir embora, deixando um legado que valha a pena atrás de mim.
Escrever...

sábado, 13 de setembro de 2008

Lembranças

Do que vivemos, à medida que o tempo passa, senão de lembranças? Isso não é coisa de velho, como poderia se crer, mas coisa de história, de experiência, de valorização e avaliação. Quanto mais tempo vivemos maior é o nosso acervo de recordações para guardar e transmitir aos que virão depois de nós e para levar conosco quando partirmos. Porque, para falar a verdade, elas são realmente o único tesouro que possuimos no fim, algo que nada nem ninguém pode nos tirar, a riqueza imaterial que não apodrecerá junto com o corpo... E é assombrosa a variedade, a fidelidade e o prazer que estas lembranças podem nos trazer!... Relembrar pessoas e fatos do nosso passado nos provoca uma sensação na qual se misturam a nostalgia, a alegria, a análise e a perspectiva; às vezes o perdão, outras a revelação e a paz, umas poucas o remorso e quase sempre a certeza do crescimento, do conhecimento, da consciência das nossas raízes e aspirações, tenham elas sido realizadas ou não.
Lembro-me do mestre sapateiro, do qual sempre só tive a visão da metade do seu pequeno e obeso corpo, pois as pernas e pés estavam sempre escondidos atrás do avental de couro e da pequena e entulhada mesa de madeira na qual trabalhava. Lembro do cheiro peculiar da sua pequena oficina, coberta de parede a parede por prateleiras nas quais se amontoavam centenas de sapatos, botas, sandálias, tamancos, chinelos, pedaços de couro, de sola, sacolas plásticas, vidros com pregos e cola: era um cheiro onde se misturavam a cola, o suor, o couro, a graxa, o plástico e às vezes bife, arroz, batata ou macarrão, dependendo da marmita do dia... Lembro-me da enorme cúpula de metal que coroava um dos corredores do parque João XXIII, na qual crescia, enleada aos ferros, aquela trepadeira de flor da pluma, que na primavera se enchia de pequenas, delicadas e docemente perfumadas flores cor lilás, que embalsamavam todo o espaço. Eu adorava sentar em seu tronco -que com o passar dos anos tinha-se tornado uma espécie de berço-trono grosso, cheio de nervuras e lustroso feito mármore, flexível e convidativo- e desde ali olhar para a cúpula, semeada de folhas verdes e flores lilás, e além, para as nuvens, os pássaros, o sol. Mil histórias passavam pela minha cabeça enquanto balançava de leve nos braços da trepadeira... Lembro-me da bruma densa que, nas geladas manhãs de inverno, cobria aquele enorme campo ermo que eu devia atravessar logo cedo para chegar à escola. Adentrar nela era como sair da realidade e submergir-se em alguma dimensão sem tempo nem espaço, numa perturbadora incerteza, numa espécie de sonho que quase beirava no perigoso. Havia dias -dependendo de quão sonolenta eu estivesse- em que eu era tomada por aquela sensação alucinante de não ter realmente acordado, de ter errado o dia, a hora, o planeta, e só quando começava a divisar ao longe outras silhuetas indo na mesma direção e a massa cinzenta e branca dos prédios da escola, finalmente voltava a respirar tranquila e a me sentir de novo no mundo que conhecia e do qual fazia parte... Lembro-me da casa branca com persianas e sacada de madeira vermelha de Quinteros, seu terraço de pedras e cadeiras de lona e aqueles canteiros de hortênsias escandalosamente grandes e coloridas enfeitando a cerca de troncos e as paredes laterais; lembro da violenta ventania que se levantava todo dia ao entardecer -e que era a marca registrada da cidade- Ao vê-la chegar eu e a minha irmã corríamos para sentar nas cadeiras de praia do terraço, embrulhadas em cobertores até as orelhas, e ficávamos ali, deixando que o vento e a areia nos açoitassem e penetrasssem por todos nossos poros -apesar dos cobertores- dando risada e vendo quem agüentava mais tempo antes de fugir para o conforto e a proteção da casa... Lembro dos caminhos e das fazendas de Cholqui, das ruas interioranas de Melipilla, lembro da Praça Ñuñoa e seu coreto de pedra, de seus bancos de madeira verde, do pátio da igreja de tijolos vermelhos, da gruta de Lourdes e as suas santas mil vezes repintadas... Lembro da escolinha onde comecei a desenvolver meu talento para o desenho, e onde tive aulas de ballet. Havia uma sala com o nome da minha avó, Sofia del Campo, famosa cantora de ópera, o que significava que, sendo as suas ilustres netas, não pagávamos mensalidade... Lembro da Casa de Cultura e seus jardins tranqüilos e sombreados e suas estátuas brancas. Lembro especialmente daquela que retratava uma mendiga com uma criança, a mão estendida a pedir esmola enquanto tentava se proteger do vento, um vento cruel que desarrumava seus cabelos e brincava com as suas roupas velhas e rasgadas e congelava seus pés descalços. A criança, encolhida e de angustiada expressão, tentava se proteger sob os farrapos do seu manto... Era menor que as outras esculturas e não estava num lugar de destaque, porém, era a que mais chamava a minha atenção, justamente pelo fato de ser tão diferente das outras, tão cheia de vigor e veracidade, ao contrário dos pretensiosos deuses, efebos e virgens que a rodeavam com seus corpos perfeitos e as suas expressões vazias... Avenida Irarrázaval, Pedro de Valdívia, Vicuña Mackenna, convento de São Francisco e seus mil pássaros em constante concerto no meio das árvores perfumadas e frondosas, o claustro das Carmelitas de Pedro de Valdivia e seu poço de pedra, as salas de visita silenciosas, sempre em penumbra, guardadas pelos quadros dos santos da ordem e as grades quadriculadas que separavam as freiras do mundo exterior... A casa da madrinha -a "Minina", como a chamávamos, apesar dela ser, na verdade, a madrinha da nossa mãe- com seu pequeno saguão e suas cortinas de renda branca, o corredor de lajotas vermelhas, o minúsculo pátio de luz onde brincávamos de selva no meio dos vasos de plantas e os varais de roupa estendida, a banheira de porcelana com seus pés de leão, a cozinha verde e seu fogão de ferro preto, a sala de jantar com aquela janelinha pequena lá em cima e aqueles quadros horríveis de bichos mortos em meio a alfaces, tomates, cachos de uva ou cerejas e espingardas.... Ruas de pedra-ovo, pombas na torre da igreja dos padres escolápios, a padaria e seus mini-brinquedos na esquina, a loja de cereais e óleo em tambores na outra, o convento das freiras agustinas e seu ar escuro e misterioso, aquelas santas mulheres feito meras sombras atrás das grades da capela, enlevando os nossos corações com as suas vozes celestiais... O quiosque de metal, minúsculo e entulhado com todo tipo de refrigerantes, bolachas, chocolates, pirulitos, latas de conserva, sabonetes, chicletes, balas, vassouras, pães embalados, cigarros, fósforos e outros artigos "de emergência" como papel higiênico e pilhas, onde íamos religiosamente toda manhã comprar a água mineral para o dia...
É muita coisa, é a minha vida toda, e poderia passar o que ainda me resta dela escrevendo sobre tudo aquilo, e isto deixando de lado as lembranças que irão se acumular a cada dia que transcorrer!... O acervo do ser humano nunca está completo, pois a história pode ser contada e recontada infinitas vezes e, seja pelas falhas da nossa memória ou pela constante revisitação, ela sempre terá novos ângulos, novos detalhes, palavras, olhares e gestos que passaram despercebidos no momento em que as coisas aconteceram.
As memórias são tão ricas e proveitosas quanto a observação do presente e a meditação sobre ele, pois todas elas -as memórias e a observação- sempre nos trazem alguma mensagem, alguma lição, algum tipo de crescimento necessário para seguir adiante e lutar apelo nosso aperfeiçoamento.

sábado, 6 de setembro de 2008

Contemplação

Finalmente a correria do festival de teatro da cidade terminou e estou com um pouco mais de tempo para voltar às minhas observações e reflexões, que são a matéria prima destas crônicas. Não vou estar mais pendente de cenários, figurinos, dicção, maquiagem ou interpretação, mas das pessoas na rua, dos cachorros, as crianças, as árvores, as roupas nos varais e os pássaros no céu. Vou poder voltar a ficar parada observando a vida ao meu redor, aprender com ela e contar sobre isto para vocês... Nâo que não gostei de ser jurado do festival, pelo contrário, foram duas semanas emocionantes -apesar de extremamemnte cansativas- e espero que o trabalho não pare, pois adoro estar ocupada produzindo, ensinando, despertando potenciais, abrindo portas, recebendo alunos e vendo-os crescer e se tornar seres humanos melhores como conseqüência do seu contato com a arte. Isso é muito bom, e como temos uma chefa que possibilita tudo isso, eu não poderia estar mais feliz por ter taaaanto trabalho. É realmente gratificante trabalhar assim, mesmo numa sala esburacada, com ventiladores que não funcionam e um banheiro lá do outro lado do prédio... O fato de ver a transformação, a união e a generosidade destes alunos faz tudo isso valer a pena, acreditem.
Bom, e aqui vai a crônica de hoje:
Não sei por quê gosto tanto de ficar observando as pessoas e os lugares onde moram. Há um quê de revelação, de fala, de símbolos e sinais em tudo isso que me deixa totalmente fascicnada e me leva a profundas reflexões sobre a existência, a história que construímos, o legado que deixamos, sobre quem somos e o que procuramos e sobre os meios dos quais nos utilizamos para consegui-lo. A humanidade está em constante movimento; ela busca, se transforma, transforma o entorno, luta, vive e sobrevive, ganha e perde, é sublime, é abjeta, se comunica, se esconde... E tudo isso se reflete não só no lugar onde mora, mas também na roupa que veste, na comida que leva à boca, nas palavras e gestos que utiliza ao se expressar, no local onde trabalha, no tipo de trabalho que desenvolve, nos olhares e fisionomias. E é justamente este reflexo o que me fascina e me faz permanecer quase que em constante contemplação e meditação, analisando e chegando à conclusõses às vezes surpreendentes, porém sempre claras e fortes, que me ajudam em minha própria existência, mesmo se nem sempre são muito positivas.
Adoro quintais, varais de roupa que enchem o ar com seu perfume, vasos de avencas, áreas com cadeiras e mesas, grama com estátuas de sapos e anões, casinhas de cachorros, canários na janela, jardins confusos e hortas no corredor. Me encanto com o cheiro do feijão cozinhando, o som da panela de pressão, a novela da noite, o churrasco de domingo e as cadeiras e garrafas espalhadas pela área, a lavagem sagrada da calçada que deixa aquele cheirinho de detergente floral no ar. Que visão agradável a dos vizinhos reunidos numa ciranda de cadeiras na calçada, aproveitando a brisa do começo da noite! Que sensação gostosa a de encontrar o sorveteiro rodeado de crianças, as duas evangélicas dando um tempo na sua missão para comer salgado e beber refrigerante de saquinho, os cachorros deitados preguiçosamente na sombra, a velhinha aguando seus vasos de pneu e latas de tinta... É tão bom ver os pedreiros voltando para casa, banho tomado e sacola no ombro, deixando para atrás as construções silenciosas e imóveis, à caminho de seu prato de arroz com feijão e bife -quando há bife...
Não consigo explicar esta sensação que toma conta de mim toda vez que paro e fico por alguns minutos observando alguém, uma casa, uma sala com a sua mobília e seus quadros e enfeites pela janela aberta, um jardim de canteiros demarcados por pedras pintadas de branco, um catador de papelão empurrando seu carrinho mal-ajambrado, lotado além das bordas, rua acima, seguido pelo seu fiel companheiro, o vira-latas... E o que dizer do pessoal que espera em frente à igreja a chegada do ônibus especial que os levará de volta à periferia, de onde saíram pela manhã bem cedo, trajando suas melhores roupas e bijuterias, para descer até a cidade fazer as compras do mês, passear, conhecer as novidades, comer um cachorro-quente na praça e encontrar seus companheiros de aventura?... Aguardam em animados grupos, apesar do cansaço evidente em seus rostos, cheios de sacolas, pacotes e caixas, bebês chorões em seus carrinhos, restos de lanches e refrigerante que passam de mão em mão, crianças despenteadas e suadas, com as roupas já sujas e amarfanhadas, sapatos numa mão e o brinquedo de 1,99 na outra, que correm e gritam sem parar, cheios ainda de uma energia invejável; mães de sombrinhas, bolsas e sapatos coloridos e empoeirados, disputando aos brados e gargalhadas a chance de contar tudo que viram e ouviram, feito crianças maravilhadas e invejosas, suas vozes rudes ecoando pelo quarteirão e invadindo a escura e silenciosa igreja atrás delas. Os homens mais quietos, fumando e comentando as novidades em grupos separados, carteira vazia, rostos desconfiados ou ávidos, barba feita, cabelo com gel, um leve cheiro de colônia exalando das suas roupas domingueiras...
É muita coisa, muita gente, muitas situações, uma mais fascinante do que a outra, impossível de passarem despercebidas para mim. É como dar um passo dentro das vidas alheias para interpretá-las, para senti-las ou escutá-las, para aprender sobre humanidade, sobre sonhos, sobre lutas, diversidade e igualdade. É para pensar, para crescer e compreender, para aceitar, para não esquecer o milagre da vida, que acontece a cada segundo em todo lugar.
Com certeza este dom de contemplação e reflexão que me foi dado, esta capacidade de penetrar e sentir o outro como se fosse eu mesma é para isto, para não esquecer da humanidade que me rodeia e da qual faço parte.

sábado, 30 de agosto de 2008

Casas

As casas, como nós, também vão adquirindo cicatrizes ao longo do tempo: enchem-se de ferrugem, rachaduras, manchas, descascados e remendos; o corredor lateral ou o quintal do fundo vão sendo tomados por caixas, móveis velhos, vasos quebrados, suportes de metal, restos de material de reforma, ferramentas e um monte de tralha que não sei por quê as pessoas têm dó de jogar fora. A construção nova e bem definida na qual fomos morar há dez anos foi se transformando, adquirindo novos contornos, cores e cheiros por causa da nossa estadia nela. Surgiram manchas, cantos, prateleiras, quartinhos, canteiros, grades, áreas, vasos e degraus que foram aos poucos mudando a sua fisionomia original. Uma plácida e condescendente desordem espalhou-se pelos cômodos, pois cada habitante foi arrumando as suas coisas de acordo com as suas necessidades ou estados de espírito. Assim, parece que cada parte da casa tem um pedaço da personalidade de seus moradores, o que lhe confere um ar eclético e por vezes caótico que é tremendamente íntimo e cheio de significados. A rotina doméstica impões rituais que vão ocupando serena e definitivamente os espaços, tornando-os por isso muito especiais e amados, como portos seguros em meio às mudanças e correrias do mundo lá fora... Entrar na cozinha e deparar-se com a fileira de potes de mantimentos, já gastos e medio descorados, ou chegar da rua no fim da tarde e encontrar na sala aqueles mesmos sofás de almofadas informes, com pequenas manchas nos braços e a mesinha de centro com os pés lascados pelas mordidas do cachorro, sentar à mesa e descobrir os mil arranhões e manchas na sua superfície e as marcas de velhos molhos de tomate ou bolo na toalha, ver-se rodeado pelos imãs da geladeira, os vidrinhos de condimentos, os panos de prato , a vasilha de água dos cachorros e as fotografias no balcão, cujos puxadores originais não existem mais, nos dá uma uma sensação de maravilhosa estabilidade e segurança, de certeza e aconchego que não sentimos em nenhum outro lugar. Todos os defeitos e marcas que a nossa casa foi adquirindo ao longo do tempo -seqüelas da nossa existência nela- contam a nossa história e mostram a nossa personalidade, unindo-nos a ela com laços de uma força que jamais imaginaríamos. Nem sempre são transformações planejadas ou acontecidas de maneira agradável, mas são, certamente, inevitáveis, pois a nossa casa -a construção de alvenaria, ferro, madeira e vidro- não é insensível ao nosso existir. Sempre deixamos marcas por onde passamos, o que será então do lugar no qual moramos anos e anos!...
Gosto de casas novas e cheirando a tinta e argamassa, com seus jardins planejados e cada móvel e enfeite em seu lugar, sem armários cheios de tralha nem manchas no chão da cozinha, tudo combinando, nada sobrando, arrumadas como para uma sessão de fotos de alguma revista de decoração... Mas, definitivamente, prefiro aquelas que têm história para contar, que se orgulham -ou não- de mostrar as suas manchas, seus remendos, suas rachaduras e bagunças, suas portas que rangem, suas áreas desordenadas, seus quartos cheios de persponalidade e significado, de objetos queridos... Sempre me lembro daquela sensação de ausência e falta de aconchego que tomava conta de mim cada vez que adentrava em nossa nova casa, ou quando levantava pela manhã e ia até a cozinha preparar o café. Estava tudo tão imaculado, tão perfeito, tão silencioso! Era uma virgindade perturbadora, fria, como se aquele prédio na verdade não tivesse dono. Éramos completos estranhos: eu, acanhada, e ele, silencioso e expectante. Mas era tão difícil travar intimidade com aquela perfeição!... Demorei um bom tempo para me sentir forte e capaz o suficiente como para impor meu carisma àqueles cômodos, àquele jardim, àquela área, ao meu próprio quarto; para que o ar começasse a ter nosso cheiro e as paredes nosso som e cor, para que o chão se acostumasse com os nossos passos e o tempo ali dentro tivesse o nosso ritmo.
Hoje caminho pela casa e sinto como se estivesse fazendo-o dentro de mim mesma. É meu território, meu refúgio, parte da minha identidade, e me orgulho de cada marca que nela deixei e vou deixar ainda, pois trata-se da minha vida, da minha história, que está transcorrendo entre estas paredes, transformando-as num fiel reflexo do que sou.
Casas novas estão mortas, até o dono impregnar-lhes a sua personalidade. Casas velhas estão vivas porque já existiram junto com seus habitantes e deles sabem tudo.

sábado, 23 de agosto de 2008

O palácio

Aos poucos o material foi chegando e se amontoando no quintal: telhas, sacos de cimento, areia, pedras, tijolos, madeira, carriolas, espátulas, enxadas e caixas de ferramentas. Pacotes de pregos, embalagens de lajotas e longos ferros ocuparam o lugar das cadeiras e vasos na pequena área da frente e avançaram pela grama bem cuidada -é a casa do seu João, o nosso antigo jardineiro- e por entre as roseiras e primaveras, as margaridas e orquídeas. Os cachorros perambulavam, perdidos por entre aquela confusão, e latiam furiosos para os operários que invadiam a casa às sete da manhã falando alto, transitando sem nenhum respeito ou cuidado pelos seus territórios, bebendo litros de café, jogando bitucas por todo lado e botando aquele radinho pigarrento no volume mais alto. Era um total caos, um quebre repentino e alarmante nas suas rotinas e, como seus protestos e ameaças não eram levados em conta -pelo contrário, para seu pasmo, sempre acabavam levando uma bronca por tentar avançar nos estranhos- terminaram por recuar para os fundos da casa à procura de um canto seguro desde onde pudessem observar, na mais absoluta impotência, aquele desastre que tinha-se abatido sobre seu lar, e ao qual seus donos não pareciam dar a menor importância.
Os homens botaram escadas e se encarrapitaram no telhado, fazendo uma corrente para arrancar as telhas de eternite e estender uma lona preta no forro, furaram o chão e as paredes, martelando sem descanso até parecer que um furacão tinha passado por ali. A poeira tomou conta de tudo, apesar da dona cobrir os móveis e objetos com toalhas e lençóis, e a data se encheu lentamente com todo tipo de lixo típico de uma construção: latas de verniz, jornal, sacos plásticos rasgados, rodinhos de espuma, garrafas de plástico, cubas de madeira, respingos de cimento e massa corrida por todo lugar, pedaços de mangueira e restos de estranhos artefatos de madeira usados para segurar os alicerces da construção... Porém, os donos da casa -a esposa do seu João, já falecido, o cunhado e a filha- contemplavam este aparente desastre com uma beatífica expressão de felicidade em seus rostos morenos e enrugados, e passavam horas a fio caminhando em meio àquele campo de batalha oferecendo água, café ou um lanchinho para os operários. Depois do almoço, todos sentavam nas cadeiras de plástico no que restara da pequena área, e batiam longos papos fumando e dando risada, para logo retornar à bagunça e à barulheira... Mas nada abalava a aparente e inexplicável felicidade dos donos, para horror dos cachorros, que mal se aproximavam para comer ou beber uns goles de água. Com tanto entra e sai, o portão da casa ficava permanentemente aberto, o que seria uma imperdível chance de escapar para brincar na rua, mas eles estavam tão amedrontados que não ousavam se aventurar além dos limites dentro dos quais ainda reinava algo de ordem e lógica... Mas, o que era tudo aquilo?
Eu virava a esquina e me deparava com aquela quase demolição todo dia, e enquanto passava em frente à casa, tentava adivinhar qual seria o resultado de tudo aquilo. Ao parecer, estavam trocando todas as telhas -que não eram muitas, pois a casa era diminuta- e pretendiam aumentar a sala ou acrescentar um outro quarto utilizando o único espaço vazio que restara após a construção de uma outra casinha no fundo para a filha do seu João, obra que começou do mesmo jeito que esta outra, feito um terremoto longamente aguardado. O resultado -dois quartinhos, uma cozinha que se misturava com a sala e um banheirinho- foram recebidos com imensa alegria e satisfação pela família, e a obra foi coroada com uma camada de tinta cor azul turquesa que feria os olhos de longe e uma ostentosa porta frontal de madeira grossa, toda trabalhada com detalhes geométricos. Cortinas nas janelas, vassos na área e tapete de boas-vindas na entrada, ficou parecendo uma casinha de contos de fada. Esta obra, o jardineiro teve tempo de ver, mas neste novo empreendimento já não estava mais entre nós, mas imagino que devia estar observando tudo desde o céu, sorrindo satisfeito e orgulhoso diante deste novo feito do seu clã.
Aos poucos, a coisa foi se definindo, tomando formas claras e mostrando as intenções da família com respeito àquele pedaço do quintal. Uma tarde, virei a esquina e me encontrei com a obra quase pronta: era uma nova área, com grossos pilares quadrados de cimento e cobertura de telhas, ao invés do eternite de antes; lajotas novas, uma mureta e um novo chão de cimento para a entrada do velho carro. De repente, a bagunça havia sumido. Os cachorros, agora relaxados e alegres, estavam novamente deitados na grama e no chão fresco, a esposa do seu João aguando as plantas e escolhendo quais vasos iria pendurar na nova área, e as cadeiras de plástico arrumadas em linha à sombra da cobertura, que cheirava a novo, a sucesso, a tranqüilidade, a esforço e persistência. Ainda não estava pintada -e espero que não escolham algo parecido com aquele azul turquesa!- mas mesmo assim dava à casa um ar sólido, de humilde prosperidade e presunção, de profunda realização. Olhando para aquela varanda novinha, um pouco anacrônica se comparada com a casa velha e desbotada, e para as telhas vermelhas reluzindo ao sol, quase que pesadas demais para a frágil estrutura da casinha popular, me perguntei quanto esforço teria lhes custado aquela pequena obra, aquela minúscula mudança que para a maioria de nós passaria despercebida. Quantos cálculos, barganhas, peregrinações por depósitos de material em busca de ofertas e liquidações, quantos meses de espera juntando cada centavo, privando-se quem sabe do quê para poder alcançar seu modesto sonho: esta área fresca na qual vão passar os finais de tarde ou dar uma cochilada após o almoço, como seu João fazia; onde vão receber os amigos, brincar com os netos, proteger o carro do relento, fazer tricô, estrear tapetes de retalho, assar uma carninha num feriado e beber umas cervejas...
Fiquei alguns minutos contemplando a casinha, agora com ares de palácio para os olhos dos donos, e pensei no que significa sucesso, satisfação, alegria e progresso para cada um de nós, no quanto somos capazes de trabalhar para obtê-los e de que maneira os desfrutamos ou se, uma vez obtidos -na forma de um carro, uma reforma, um negócio, uma roupa, um brinquedo, um aparelho de som ou um computador- deixamos de dar-lhes importância e passamos a almejar algo maior, algo melhor, que nos dê ainda mais status, mais poder, uma felicidade baseada somente na comparação, na competição; algo que todos percebam e admirem, bem diferente desta humilde e sacrificada cobertura na área da casa do seu João... Mas qual felicidade é maior, mais duradoura e profunda? Qual realização é mais apreciada e desfrutada? ...Quem tem as possibilidade encara todo resultado bem sucedido como algo natural, lógico, tranqüilo. Porém, quem não tem estas possibilidades encara o objetivo alcançado, por menor que este seja, como um verdadeiro milagre, um prêmio ao seu esforço e perseverança, fazendo-o sentir que todo seu sacrifício valeu mesmo a pena... E talvez esteja aí a principal diferença entre a reforma total que os meus novos vizinhos fizeram na casa antes de se mudarem e a pequena cobertura na área da casa do seu João. Olhando para ambas me pergunto se será a família vizinha a curtir mais o jardim planejado, a churrasqueira e a cobertura de sapé, o jogo de mesa e cadeiras de metal trabalhado, a pequena piscina e o aquecedor solar, ou se será a família do seu João, deixando transcorrer calmamente o entardecer a cada dia, sentada nas cadeiras de plástico na sua pequena área, fazendo tapete, cochilando com os cachorros placidamente estendidos aos pés ou brincando com os netos nos domingos à tarde...