segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Cenários

E depois de muitas aventuras e desventuras (as quais incluíram a morte do meu mais fiel companheiro de treze anos, "Arthur" -o cachorro mais lindo do mundo-, o céu da boca queimado por um pedaço de lasanha assassina fervendo e um baita vírus no pc, que agora está sem impressora) volto à rotina de cada semana, talvez um pouco triste (é muito estranho não ver o corpanzil do "Arthur" deitado aqui do meu lado enquanto escrevo), sofrendo para comer e com o orçamento mais apertado, mas ainda cheia de otimismo e inspiração. Só espero que meus leitores (todas as duas) não tenham achado que parei de postar as crônicas e voltem a ler meus textos. Bom, afinal, faz quase um mês que não escrevo nada!... Mas a vida continua e agora o "Arthur" me acompanha desde uma pequena moldura azul com sóis e estrelas, aqui na mesa do computador, e lá de cima, onde não posso vê-lo, juntinho de são Francisco e todos seus bichos de estimação... É um quadro bonito de se ver: ele lá latindo, fuçando no lixo celestial e mijando em tudo que é objeto que tenha um pé, esfregando-se nas nuvens fofas e babando em cima de qualquer coisa que pareça comestível!... Eta, cachorro danado!...
Bom, e deixando de lado a emoção, que já começa a encher meus olhos d'água (de novo!) aqui vai a crônica desta semana, meio atrasada, mas firme:

"Cenários.
Estava de pé junto ao fogão, enquanto coava o café para o desjejum de manhã bem cedinho, quando sem querer comecei a olhar em volta, para o cenário que me rodeava: os móveis, as prateleiras, os potes e copos, as gamelas com frutas e verduras, os vidros com biscoitos, as garrafas, os temperos, a mesa e seus banquinhos, a fruteira em cima dela, sobre a pequena toalha colorida, o relógio na parede com seus desenhos de vegetais, os imãs engraçados enfeitando a neve reluzente da geladeira... Tudo em seu lugar, fazendo parte da nossa rotina sem que percebéssemos. Me virei então e olhei para os enfeites de cerâmica, as fotografias em cima do balcão, os vasos com plantas. Aspirei fundo e me senti impregnada pelos mil aromas peculiares da nossa casa, que em nenhum outro lugar existem. Percebi a luz entrando pelas janelas e dando aos quartos uma coloração, um clima aconchegante e característico que parecia abraçar-me, dar-me as boas-vindas... Coloquei a garrafa de café na mesa e saí andando pela casa, bem devagar, observando cada detalhe com renovada atenção, e era como se algum tipo de magia fosse tomando conta de tudo. Saí ao jardim e continuei a observar. Tudo era tão especial e único, tão pessoal! Até alguma falta de ordem e manutenção (parede descascando, chão trincado, roupa no varal, grama comprida demais) parecia em harmonia com o conceito que se firmava dentro de mim: lar.
Quando era pequena morei em muitas casas, em muitos bairros diferentes, passei por inúmeros colégios e paróquias, e de alguns ainda guardo esse tipo de lembrança: cheiros, sons, cores, cantos, luzes, jardins; uma agradável e aconchegante desordem, um carisma único e insubstituível, imposto por todos nós, como a família que morava ali ou simplesmente passava algum tempo naqueles locais. Assim me lembro da minha infância, da minha adolescência, de pessoas e acontecimentos, de sensações e lições que posso reviver com absoluta fidelidade graças a estas referências permeadas de significados, de riqueza e originalidade, de experiência. Os cenários das nossas vidas são uma parte viva e vital do nosso crescimento e amadurecimento como seres humanos. Elas não existem sem eles. Podemos ir embora e nunca mais retornar, mas estes lugares com suas características permanecrão para sempre em nós.
Olhando hoje para esta casa e as suas peculiaridades, esculpidas pelo uso, os costumes, as rotinas, os carismas, as necessidades e projetos de cada um dos que nela habita -e que podem ser consideradas tanto defeitos quanto qualidades- não posso evitar me perguntar se daqui a vinte, trinta anos, meus próprios filhos terão lembranças parecidas com as que eu tenho hoje dos lugares em que morei, se conservarão no coração as sensações, as cores, os cheiros, os sons e, de alguma forma, irão se sentir seguros e acolhidos toda vez que eles vierem às suas mentes. Me pergunto se serão para eles sinônimo de lar, de aconchego, de proteção, de amor incondicional, de porto seguro. Porque cada cenário no qual se desenvolve uma parte da nossa vida é um lembrete de que somos amados, de que temos um lugar entre os homens, de que conquistamos a nossa participação na história da humanidade, mas principalmente, de que somos reis de castelos que nenhuma maré poderá jamais desfazer."

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

A prece

Final de semana de espetáculo é fogo, né?... É por isso que só hoje estou postando esta crônica... Ainda bem que correu tudo bem e a nossa peça de encerramento foi um sucesso. O público curtiu, riu, entendeu a história e, no fim, aplaudiu em pé... Isso é ótimo para o ego de todos, sobretudo porque estávamos com medo de que a platéia não entendesse as piadas e nem sequer esboçasse um sorrisinho amarelo, mas, graças a Deus, não fomos só nós que achamos o texto engraçado... Ufa, que medão!. Mas mesmo atrasada, aqui vai a crônica de sábado:
Todos de mãos dadas, cabeças bem abaixadas, olhos fechados, vozes de adultos e crianças misturadas nas palavras da fervorosa prece recitada no início desta manhã ensolarada e ainda fresca. O calor virá mais tarde, opressivo e desgastante, a tirar-nos as forças e a inspiração...
-Pai nosso, que estais no céu...
Professores e alunos elevam as suas vozes, umas confiantes e animadas, outras apagadas e discretas, buscando neste instante de comunicação com o divino o ânimo e a alegria para o trabalho que os aguarda e que, aqui, é exaustivo, cheio de empecilhos e, às vezes, tão frustrante e infrutífero.
Eu ergo a cabeça e abro dissimuladamente os olhos para observar discretamente as pessoas no círculo ao meu redor... E esbarro com o Domício bem na minha frente, olhos fortemente fechados, cabeça abaixada mostrando seu cocuruto de cabelos pretos e ouriçados, meio ladeada, corpo não muito equilibrado por conta da paralisia, roupa surrada, botinas gastas e cheias de pó de serra -trabalha na marcenaria da escola- e dedos crispados e algo deformados segurando com força os dois colegas de cada lado. Reza junto com os outros, cheio de fervor e concentração, a sua voz um pouco mais alta, as palavras meio enroladas... Porém, a sua devoção é tal, seu tom tem uma convicção, uma fé tão verdadeira, que me comove sinceramente... E me envergonha. Porque olho de repente para mim mesma, rezando de qualquer jeito, a mente perdida em mil pensamentos fúteis, perguntando-me o que terá no almoço, ou onde a professora ao meu lado comprou esses sapatos, se aquele aluno problemático faltará hoje -dando-me um pouco de sossego- e se irão pagar as poucas horas extra que aceitei fazer este mês... Estou apenas cumprindo um ritual, distraída, ralaxada; as minhas palavras nada significam, nenhuma energia passa pelas minhas mãos ou sai do meu coração para abraçar estas pessoas tão carentes, esforçadas e cheias de problemas (porque eles sim têm problemas!)... Ao perceber a tremenda heresia que estou cometendo, um rubor quente e úmido me sobe às faces e meus olhos pousam de novo na cabeça hirsuta de Domício, como se quisesse me agarrar à sua fé para poder olhar no rosto de Deus. Porque sinto que ele realmente espera a proteção, a ajuda, o consolo, a salvação, o milagre que a prece pede. A sua é uma oração otimista, poderosa, à qual se entrega com a mais absoluta inocência e fé, como só alguém feito ele faria. Seus lábios tortos esboçam o secreto sorriso de quem está diante do melhor amigo, iluminando seu rosto moreno e assimétrico. Ele crê. Ele espera. Ele aceita. Neste instante a sua cruel limitação nada significa, não possui peso algum. Por um segundo consigo enxergar uma espécie de perfeição inexplicável em sua figura, em sua atitude de sereno e alegre recolhimento interior... Nada interfere em sua comunicação com Deus... E eu ali, parada na sua frente, corpo mole e coração pesado, cheia de preocupações e receios, de frustrações, preguiça e má vontade, sinto-me de repente indigna de fazer parte da mesma roda...
Respiro fundo e abaixo a cabeça novamente, tentando encontrar o caminho, a luz, a certeza que me guie até onde Domício se encontra, diante do seu Pai, e num arranco de rara humildade, tenho o impulso de ir até ele e pedir-lhe que me ensine a rezar de novo, a confiar e me abandonar nos braços de Deus como ele faz... Mas acho que isto é tão natural para ele que não saberia dar-me a "receita", pois não se trata do jeito como reza e sim do jeito como vive e, nesse segundo, juro que sinto inveja deste deficiente que mal consegue pronunciar meu nome ou levar uma colher à boca.