sábado, 27 de setembro de 2008

Escrever.

Escrever... É no mínimio fascinante o curso que esta minha vocação foi tomando ao longo dos anos, pois se houve alguma coisa à qual fui fiel durante a minha vida toda, é ao meu dom para escrever. É algo superior a qualquer conflito, a qualquer amor, a qualquer outra opção ou realização. É mais forte e perseverante, mais transformador, revelador e motivo de amadurecimento e descoberta do que todos meus outros dons, talvez porque nele sou capaz de resumir todos esses em algo que vai durar para sempre e que funciona como o resultado último de cada experiência que tive -ou estou tendo. É como o registro final de quem eu sou, além dos atos, das peças, músicas ou desenhos, e que pode chegar mais fielmente às pessoas e assim fazer com que a minha missão seja cumprida com maior sucesso.
Escrever... Ontem à noite, deitada na penumbra do meu quarto silencioso, embalada pelo som monótono e hipnótico do ventilador em cima da minha cabeça, fiz uma viagem até as minhas primeiras palavras, as primeiras frases, as balbuciantes construções de histórias e personagens que teimavam em sair da minha mente e desfilar em folhas de papel sem fim, mesmo sem saber por quê, ou para quê, para quem. Aquelas folhas brancas me chamavam, criavam em mim imagens, emoções, rostos, situações, paisagens que precisavam ser impressas ali, traduzidas em palavras, caso contrário iriam explodir dentro de mim... E assim, sem nem saber direito o que fazia, nem por quê, levada por uma espécice de ânsia incontrolável e deliciosa, fui desbravando, penetrando e conquistando aquele universo fascinante e ilimitado da palavra escrita, do poder da mente para transcrever em imagens completas -com sons, cores, rostos, cenários, emoções, épocas- o que nela nascia e precisava ser contado ao mundo, às pessoas... E percebi como esta vocação, aos poucos, com o passar das experiências, do amadurecimento, com a mudança de perspectivas e oportunidades, com o aprofundamento do auto-conhecimento e o desenvolvimento da observação e a reflexão foi mudando, crescendo, encontrando seu verdadeiro caminho, seu "estilo", a sua linha de expressão. É como se, havendo passado por muitas fases -contos, romances, peças, crônicas, cartas e diários- estivesse finalmente chegando à sua forma final e mais acabada. Sei que ainda falta muito, mas tenho a sensação quase certeira de que encontrei o caminho definitivo por onde devo seguir para atingir meu objetivo: o coração das pessoas. Nâo sei se isto se deve ao fato das minhas crônicas estarem sendo publicadas na Folha e terem ótimas críticas de quem as lê, ou se é porque, mesmo que não as publicassem,
é a criação destes textos o trabalho que me faz sentir mais realizada e feliz. Nâo sei se vou continuar escrevendo dó este tipo de coisa ou se vou me aventurar novamemnte pelos romances e contos, mas se o fizer, com certeza eles não serão do jeito que eram, pois o próprio ato de escrever tornou-se algo que vai muito além de diversão, divulgação ou mero trabalho. Ontem à noite me dei conta de que escrever é agora, de verdade, algo sem o qual não poderia passar, uma forma de expressão pessoal capaz de atingir outros e dar-lhes algo de positivo, uma maneira de partilhar as minhas experiências e torná-las úteis para quem precisar. Também, pela primeira vez, estou me sentindo "escutada", valorizada, incentivada nesta área, o que significa que o tempo certo é agora, tal como eu suspeitava. Estou pronta para começar a mostrar, a ser interpretada, divulgada, desfrutada... E não é fim, mas um novo começo, talvez o último e melhor, que durará até o fim dos meus dias...
O tempo é sábio, porque está nas mãos de Deus, que nos coloca nos caminhos que precisamos percorrer para crescer e assim poder mostrar-nos em nossa plenitude quando o momento chegar. Cada um tem seu próprio tempo e dinâmica para fazer este percorrido e eu acho que agora eu cheguei ao instante de mais uma floração. Estou tranqüila, inspirada, segura, experiente, paciente, reflexiva e perceptiva, contemplativa o bastante como para abrir esta última porta, adentrar neste novo período da minha vida e aprender tudo que me falta, ou pelo menos, o máximo que puder antes de ir embora, deixando um legado que valha a pena atrás de mim.
Escrever...

sábado, 13 de setembro de 2008

Lembranças

Do que vivemos, à medida que o tempo passa, senão de lembranças? Isso não é coisa de velho, como poderia se crer, mas coisa de história, de experiência, de valorização e avaliação. Quanto mais tempo vivemos maior é o nosso acervo de recordações para guardar e transmitir aos que virão depois de nós e para levar conosco quando partirmos. Porque, para falar a verdade, elas são realmente o único tesouro que possuimos no fim, algo que nada nem ninguém pode nos tirar, a riqueza imaterial que não apodrecerá junto com o corpo... E é assombrosa a variedade, a fidelidade e o prazer que estas lembranças podem nos trazer!... Relembrar pessoas e fatos do nosso passado nos provoca uma sensação na qual se misturam a nostalgia, a alegria, a análise e a perspectiva; às vezes o perdão, outras a revelação e a paz, umas poucas o remorso e quase sempre a certeza do crescimento, do conhecimento, da consciência das nossas raízes e aspirações, tenham elas sido realizadas ou não.
Lembro-me do mestre sapateiro, do qual sempre só tive a visão da metade do seu pequeno e obeso corpo, pois as pernas e pés estavam sempre escondidos atrás do avental de couro e da pequena e entulhada mesa de madeira na qual trabalhava. Lembro do cheiro peculiar da sua pequena oficina, coberta de parede a parede por prateleiras nas quais se amontoavam centenas de sapatos, botas, sandálias, tamancos, chinelos, pedaços de couro, de sola, sacolas plásticas, vidros com pregos e cola: era um cheiro onde se misturavam a cola, o suor, o couro, a graxa, o plástico e às vezes bife, arroz, batata ou macarrão, dependendo da marmita do dia... Lembro-me da enorme cúpula de metal que coroava um dos corredores do parque João XXIII, na qual crescia, enleada aos ferros, aquela trepadeira de flor da pluma, que na primavera se enchia de pequenas, delicadas e docemente perfumadas flores cor lilás, que embalsamavam todo o espaço. Eu adorava sentar em seu tronco -que com o passar dos anos tinha-se tornado uma espécie de berço-trono grosso, cheio de nervuras e lustroso feito mármore, flexível e convidativo- e desde ali olhar para a cúpula, semeada de folhas verdes e flores lilás, e além, para as nuvens, os pássaros, o sol. Mil histórias passavam pela minha cabeça enquanto balançava de leve nos braços da trepadeira... Lembro-me da bruma densa que, nas geladas manhãs de inverno, cobria aquele enorme campo ermo que eu devia atravessar logo cedo para chegar à escola. Adentrar nela era como sair da realidade e submergir-se em alguma dimensão sem tempo nem espaço, numa perturbadora incerteza, numa espécie de sonho que quase beirava no perigoso. Havia dias -dependendo de quão sonolenta eu estivesse- em que eu era tomada por aquela sensação alucinante de não ter realmente acordado, de ter errado o dia, a hora, o planeta, e só quando começava a divisar ao longe outras silhuetas indo na mesma direção e a massa cinzenta e branca dos prédios da escola, finalmente voltava a respirar tranquila e a me sentir de novo no mundo que conhecia e do qual fazia parte... Lembro-me da casa branca com persianas e sacada de madeira vermelha de Quinteros, seu terraço de pedras e cadeiras de lona e aqueles canteiros de hortênsias escandalosamente grandes e coloridas enfeitando a cerca de troncos e as paredes laterais; lembro da violenta ventania que se levantava todo dia ao entardecer -e que era a marca registrada da cidade- Ao vê-la chegar eu e a minha irmã corríamos para sentar nas cadeiras de praia do terraço, embrulhadas em cobertores até as orelhas, e ficávamos ali, deixando que o vento e a areia nos açoitassem e penetrasssem por todos nossos poros -apesar dos cobertores- dando risada e vendo quem agüentava mais tempo antes de fugir para o conforto e a proteção da casa... Lembro dos caminhos e das fazendas de Cholqui, das ruas interioranas de Melipilla, lembro da Praça Ñuñoa e seu coreto de pedra, de seus bancos de madeira verde, do pátio da igreja de tijolos vermelhos, da gruta de Lourdes e as suas santas mil vezes repintadas... Lembro da escolinha onde comecei a desenvolver meu talento para o desenho, e onde tive aulas de ballet. Havia uma sala com o nome da minha avó, Sofia del Campo, famosa cantora de ópera, o que significava que, sendo as suas ilustres netas, não pagávamos mensalidade... Lembro da Casa de Cultura e seus jardins tranqüilos e sombreados e suas estátuas brancas. Lembro especialmente daquela que retratava uma mendiga com uma criança, a mão estendida a pedir esmola enquanto tentava se proteger do vento, um vento cruel que desarrumava seus cabelos e brincava com as suas roupas velhas e rasgadas e congelava seus pés descalços. A criança, encolhida e de angustiada expressão, tentava se proteger sob os farrapos do seu manto... Era menor que as outras esculturas e não estava num lugar de destaque, porém, era a que mais chamava a minha atenção, justamente pelo fato de ser tão diferente das outras, tão cheia de vigor e veracidade, ao contrário dos pretensiosos deuses, efebos e virgens que a rodeavam com seus corpos perfeitos e as suas expressões vazias... Avenida Irarrázaval, Pedro de Valdívia, Vicuña Mackenna, convento de São Francisco e seus mil pássaros em constante concerto no meio das árvores perfumadas e frondosas, o claustro das Carmelitas de Pedro de Valdivia e seu poço de pedra, as salas de visita silenciosas, sempre em penumbra, guardadas pelos quadros dos santos da ordem e as grades quadriculadas que separavam as freiras do mundo exterior... A casa da madrinha -a "Minina", como a chamávamos, apesar dela ser, na verdade, a madrinha da nossa mãe- com seu pequeno saguão e suas cortinas de renda branca, o corredor de lajotas vermelhas, o minúsculo pátio de luz onde brincávamos de selva no meio dos vasos de plantas e os varais de roupa estendida, a banheira de porcelana com seus pés de leão, a cozinha verde e seu fogão de ferro preto, a sala de jantar com aquela janelinha pequena lá em cima e aqueles quadros horríveis de bichos mortos em meio a alfaces, tomates, cachos de uva ou cerejas e espingardas.... Ruas de pedra-ovo, pombas na torre da igreja dos padres escolápios, a padaria e seus mini-brinquedos na esquina, a loja de cereais e óleo em tambores na outra, o convento das freiras agustinas e seu ar escuro e misterioso, aquelas santas mulheres feito meras sombras atrás das grades da capela, enlevando os nossos corações com as suas vozes celestiais... O quiosque de metal, minúsculo e entulhado com todo tipo de refrigerantes, bolachas, chocolates, pirulitos, latas de conserva, sabonetes, chicletes, balas, vassouras, pães embalados, cigarros, fósforos e outros artigos "de emergência" como papel higiênico e pilhas, onde íamos religiosamente toda manhã comprar a água mineral para o dia...
É muita coisa, é a minha vida toda, e poderia passar o que ainda me resta dela escrevendo sobre tudo aquilo, e isto deixando de lado as lembranças que irão se acumular a cada dia que transcorrer!... O acervo do ser humano nunca está completo, pois a história pode ser contada e recontada infinitas vezes e, seja pelas falhas da nossa memória ou pela constante revisitação, ela sempre terá novos ângulos, novos detalhes, palavras, olhares e gestos que passaram despercebidos no momento em que as coisas aconteceram.
As memórias são tão ricas e proveitosas quanto a observação do presente e a meditação sobre ele, pois todas elas -as memórias e a observação- sempre nos trazem alguma mensagem, alguma lição, algum tipo de crescimento necessário para seguir adiante e lutar apelo nosso aperfeiçoamento.

sábado, 6 de setembro de 2008

Contemplação

Finalmente a correria do festival de teatro da cidade terminou e estou com um pouco mais de tempo para voltar às minhas observações e reflexões, que são a matéria prima destas crônicas. Não vou estar mais pendente de cenários, figurinos, dicção, maquiagem ou interpretação, mas das pessoas na rua, dos cachorros, as crianças, as árvores, as roupas nos varais e os pássaros no céu. Vou poder voltar a ficar parada observando a vida ao meu redor, aprender com ela e contar sobre isto para vocês... Nâo que não gostei de ser jurado do festival, pelo contrário, foram duas semanas emocionantes -apesar de extremamemnte cansativas- e espero que o trabalho não pare, pois adoro estar ocupada produzindo, ensinando, despertando potenciais, abrindo portas, recebendo alunos e vendo-os crescer e se tornar seres humanos melhores como conseqüência do seu contato com a arte. Isso é muito bom, e como temos uma chefa que possibilita tudo isso, eu não poderia estar mais feliz por ter taaaanto trabalho. É realmente gratificante trabalhar assim, mesmo numa sala esburacada, com ventiladores que não funcionam e um banheiro lá do outro lado do prédio... O fato de ver a transformação, a união e a generosidade destes alunos faz tudo isso valer a pena, acreditem.
Bom, e aqui vai a crônica de hoje:
Não sei por quê gosto tanto de ficar observando as pessoas e os lugares onde moram. Há um quê de revelação, de fala, de símbolos e sinais em tudo isso que me deixa totalmente fascicnada e me leva a profundas reflexões sobre a existência, a história que construímos, o legado que deixamos, sobre quem somos e o que procuramos e sobre os meios dos quais nos utilizamos para consegui-lo. A humanidade está em constante movimento; ela busca, se transforma, transforma o entorno, luta, vive e sobrevive, ganha e perde, é sublime, é abjeta, se comunica, se esconde... E tudo isso se reflete não só no lugar onde mora, mas também na roupa que veste, na comida que leva à boca, nas palavras e gestos que utiliza ao se expressar, no local onde trabalha, no tipo de trabalho que desenvolve, nos olhares e fisionomias. E é justamente este reflexo o que me fascina e me faz permanecer quase que em constante contemplação e meditação, analisando e chegando à conclusõses às vezes surpreendentes, porém sempre claras e fortes, que me ajudam em minha própria existência, mesmo se nem sempre são muito positivas.
Adoro quintais, varais de roupa que enchem o ar com seu perfume, vasos de avencas, áreas com cadeiras e mesas, grama com estátuas de sapos e anões, casinhas de cachorros, canários na janela, jardins confusos e hortas no corredor. Me encanto com o cheiro do feijão cozinhando, o som da panela de pressão, a novela da noite, o churrasco de domingo e as cadeiras e garrafas espalhadas pela área, a lavagem sagrada da calçada que deixa aquele cheirinho de detergente floral no ar. Que visão agradável a dos vizinhos reunidos numa ciranda de cadeiras na calçada, aproveitando a brisa do começo da noite! Que sensação gostosa a de encontrar o sorveteiro rodeado de crianças, as duas evangélicas dando um tempo na sua missão para comer salgado e beber refrigerante de saquinho, os cachorros deitados preguiçosamente na sombra, a velhinha aguando seus vasos de pneu e latas de tinta... É tão bom ver os pedreiros voltando para casa, banho tomado e sacola no ombro, deixando para atrás as construções silenciosas e imóveis, à caminho de seu prato de arroz com feijão e bife -quando há bife...
Não consigo explicar esta sensação que toma conta de mim toda vez que paro e fico por alguns minutos observando alguém, uma casa, uma sala com a sua mobília e seus quadros e enfeites pela janela aberta, um jardim de canteiros demarcados por pedras pintadas de branco, um catador de papelão empurrando seu carrinho mal-ajambrado, lotado além das bordas, rua acima, seguido pelo seu fiel companheiro, o vira-latas... E o que dizer do pessoal que espera em frente à igreja a chegada do ônibus especial que os levará de volta à periferia, de onde saíram pela manhã bem cedo, trajando suas melhores roupas e bijuterias, para descer até a cidade fazer as compras do mês, passear, conhecer as novidades, comer um cachorro-quente na praça e encontrar seus companheiros de aventura?... Aguardam em animados grupos, apesar do cansaço evidente em seus rostos, cheios de sacolas, pacotes e caixas, bebês chorões em seus carrinhos, restos de lanches e refrigerante que passam de mão em mão, crianças despenteadas e suadas, com as roupas já sujas e amarfanhadas, sapatos numa mão e o brinquedo de 1,99 na outra, que correm e gritam sem parar, cheios ainda de uma energia invejável; mães de sombrinhas, bolsas e sapatos coloridos e empoeirados, disputando aos brados e gargalhadas a chance de contar tudo que viram e ouviram, feito crianças maravilhadas e invejosas, suas vozes rudes ecoando pelo quarteirão e invadindo a escura e silenciosa igreja atrás delas. Os homens mais quietos, fumando e comentando as novidades em grupos separados, carteira vazia, rostos desconfiados ou ávidos, barba feita, cabelo com gel, um leve cheiro de colônia exalando das suas roupas domingueiras...
É muita coisa, muita gente, muitas situações, uma mais fascinante do que a outra, impossível de passarem despercebidas para mim. É como dar um passo dentro das vidas alheias para interpretá-las, para senti-las ou escutá-las, para aprender sobre humanidade, sobre sonhos, sobre lutas, diversidade e igualdade. É para pensar, para crescer e compreender, para aceitar, para não esquecer o milagre da vida, que acontece a cada segundo em todo lugar.
Com certeza este dom de contemplação e reflexão que me foi dado, esta capacidade de penetrar e sentir o outro como se fosse eu mesma é para isto, para não esquecer da humanidade que me rodeia e da qual faço parte.