sexta-feira, 30 de novembro de 2012

"Escutar o silêncio"

    A primavera está arredia, um dia mostra a cara e nos encanta, nos tira a roupa grossa, parece que liberta algo dentro de nós, e no outro esconde aquele precioso sol atrás de nuvens e rajadas de vento gelado... Ninguém está entendendo nada! Eu sei que a nossa primavera é feito  menininha, cheia de vontades, volúvel e caprichosa, adora nos atormentar com as suas mudancas de humor e o suspense pela definitiva chegada do calor, mas faz tanto tempo que nao a desfruto que nao fico brava com ela e prefiro ser paciente porque quando ela chega de vez a gente vê que a espera e a indecisao valeram a pena. Assim, quando acordo cada manha, a primeira coisa que faco é olhar pela janela, ainda na cama, para conferir se há nuvens no céu, mas mesmo que tenha algumas flutuando por ali, fico com a esperanca de que mais tarde irao embora e poderemos curtir a luz do sol e as cores com que ela pinta este cenário esplêndido. Hoje amenheceu bem nublado, depois abriu e agora fechou de novo. Tomara que o vento leve embora estas nuvens para que assim amanha tenhamos um dia daqueles de tirar o fôlego... Até porque vou visitar a minha irma na pré-cordilheira e espero poder tomar muitas fotos. A paisagem lá em cima é simplesmente deslumbrante! As fotos ficariam lindas em meu facebook.
    E é com esta esperanca e os acordes meio desafinados do meu vizinho que tenta tirar "Noite feliz" em seu saxofone, que vai a crônica desta semana.


    Buzinas, motores, sinos, sirenes, telefones, telesoes, rádios, cachorros, criancas, grúas, bem-te-vi... Fecho os olhos e escuto tudo isto -e muito mais- ao meu redor,às vezes harmonioso, outras desafinado e estridente... Sao as inúmeras vozes da cidade, a sua gama quase infinita de expressoes, os sons da sua existência, que as vezes podem confundir-nos, asustar-nos, irritar-nos, desconcertar-nos, e outras podem alegrar-nos, guiar-nos, identificar-nos, pois nos reconhecemos neles. Altos e baixos, próximos ou distantes, novos ou velhos, esta identidade auditiva nos acompanha o tempo todo... O que nos dizem os cascos dos cavalos, os latidos dos cachorros, as chamadas dos vendedores ambulantes, os sinos da igreja? O que murmura o zunido do metrô, o arrulho das pombas? Cada som tem seu significado, seu apelo em nossa alma, e nos provoca algum tipo de reacao, pois às vezes este barulho externo encontra eco dentro de nós, juntando-se ao universo acústico que ferve em nossa mente e nosso coracao.
    Lembro quando levava meus alunos ao parque, ao saguao do teatro, à praca ou para alguma outra área da fundacao e lhes pedia que dancassem ou expressassem de alguma forma corporal os sons que escutavam: o vento, os regadores jogando água, os motores, os pardais, as vozes dos outros alunos, os instrurmentos ecoando nas outras salas, a serra do marceneiro que construia os nossos cenários... Tudo era possível de ser transformado em algum tipo de movimentacao, pois havia una conexao, uma reacao, uma emocao envolvida... Performances belíssimas resultavam destas experiências.
    No entanto, aquilo era somente o comeco. Depois os levava de volta à nossa sala e, fechando portas e janelas, os expunha, agora, ao silêncio absoluto para que tentassem repetir a experiência do movimento. Dura prova para eles! Abandonar-se docilmente a esta espécie de "nada", a este tabú opressivo que é o silêncio, a este vazio de morte com que ele é quase sempre associado!... A maioria sofria angústias terríveis, pois se sentiam abandonados, indefesos, em perigo, perdidos, apavorados, e apenas conseguiam executar um ou outro movimento. Com tudo, após algum tempo, eu acabava com seu suplício e lhes pedia para que tentassem escutar os sons que seus próprios corpos emitiam: respiracao, as batidas do coracao, o farfalhar das roupas e do cabelo, pés mexendo-se, pequenos sons involuntários... Isto já era muito mais fácil e conseguiam até me dar uma boa devolucao no fim da aula. E para terminar, um dos meus exercícios favoritos: produzir os próprios sons e criar uma coreografia em cima deles. Entao eram estralos, suspiros, sussurros, palavras soltas, exclamacoes, frases ininteligiveis, músicas inêditas... Os acentos mais íntimos e peculiares que um ser humano pode emitir enchiam a sala silenciosa e os corpos executavam movimentos que pareciam rituais, preces, revelacoes. Alguns choravam, outros sorriam, extáticos, uns poucos ficavam parados, como que iluminados. Esta era la experiência completa, após a qual percebiam que o nosso corpo possui uma linguagem única e peculiar, que normalmente nao tem muito a ver com o que o cérebro lhe ordena emitir. Isto lhes ensinava a parar e prestar mais atencao ao que este corpo tinha a dizer e que às vezes podia ser muito mais coerente e sábio do que a lógica acadêmica que tinham nos ensinado.
    E hoje, rodeada por todo o barulho fascinante e inebriante desta imensa cidade, me pergunto se ainda conseguimos fazer silêncio, escutar o silêncio (porque sempre digo que o silêncio nao é tao só a ausência de ruído, mas também uma atitude interior) dancá-lo, vivenciá-lo. Me pergunto se temos a coragem de silenciar para escutar o que nosso corpo e nossa alma têm para dizer-nos. Será que temos medo dos nossos próprios e mais verdadeiros sonidos? O que poderíam revelar? Seriam um espelho da nossa  verdade, um reflexo da nossa essência? Será que Deus se  encontra ali? Mas, a divindade tem mesmo um som?...
    O primeiro que se ouve quando a vida comeca sao as batidas do coracao, rápido, feroz, cheio de urgência para botar-nos no mundo, e este compasso nos acompanha  até nosso último fôlego, dizendo-nos a todo instante que estamos vivos, conscientes, ativos, que podemos escolher, agir, decidir, criar, receber, amar e sermos amados... E quando esse som se apaga, a existência também termina, pois ambos estao indissoluvelmente ligados. Entao, por que nao aproveitamos para escutá-lo enquanto temos a chance?.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

"As verdadeiras boas vindas"

    Os dias continúam lindos e as árvores vestindo-se com esse verde novo e vigoroso que nos traz aquela velha e deliciosa sensacao de renascimento, de esperanca e pura felicidade, tanto assim que eu retomo as minhas inspiradoras caminhadas pelas ruas de manha cedo... Tem tanto para ver, tanta gente para descobrir, tantos cantos e paisagens dentro desta imensa paisagem urbana, que acho que mesmo que  caminhasse por aqui pelo resto da minha vida, sempre encontrarei novidades, surpresas, personagens e histórias. Até já conheco alguns: a tia que faz seu suco de laranja para os apressados que nao tiveram tempo de tomar café da manha, o senhor que passeia seus poodles brincalhoes, a menina que agua a grama no fim do passéio, o rapaz de mochila vermelha que, junto a sua bicicleta, senta na beira do canteiro esperando por alguém, o gordinho que chega em sua motoca azul assustando as pombas e estaciona junto a um poste, ao qual amarra seu veículo. O senhor e a sua mesinha de ervas e o fiel cao que senta na grama, sobre um cobertor velho, encostando nas costas do seu dono... E assim, tantos rostos e gestos, tantas vozes que vao entrando em meu próprio mundo e dos quais, com certeza, vocês vao ler mais adiante. Aqui tudo me inspira, mesmo quando nao é um bom dia (sim, porque também tenho dias meio chatos) tudo me da forcas, me enche de uma felicidade inexplicável e verdadeira que me deixa com vontade de mais... Me sinto feito uma crianca numa loja de doces!
    E assim escrevo hoje, confortavelmente instalada no sofá da sala, escuchando a Tribuna FM - a minha rádio favorita no Brasil- enquanto o macarrao cozinha no fogao... Querem algo mais caseiro e confortável?.
    Preciso explicar, no entanto, que na  verdade estas sao duas crônicas, porém quando as reli percebi que tinha de publicá-las juntas. Afinal, nao se pode separar uma família, nao é mesmo?...



    Ela nao é muito alta, de pele branca um pouco queimada pelo sol do campo, olhos claros, de olhar direto e inteligente,  cabelos completamente brancos, curtos, sempre meio despenteados. Tem uma voz firme e um pouco rouca, que expressa as suas opinioes com muita clareza e autoridade, porém com um quê de benevolência e compreensao. É magra e ereta, de movimentos certeiros e seguros -a nao ser por um pequeno tremor na mao direita, ao qual ela nao da a menor importância- está sempre bem vestida, mas com modéstia. Dona da sua cozinha e do seu jardim, capita orgulhosa da sua prole -filhos, netos, genros, noras, sobrinhos- e da sua casa acogedoramente desordenada. Viúva valente, católica fiel, empresária empreendora, líder admirada em sua comunidade já nao mais tao pequena. Oitenta anos de experiência que nao parecem pesar-lhe nem no corpo nem na saúde, mas dar-lhe mais disposicao e energia para continuar com o que assumiu como a msisao da sua vida: educar, formar futuros cidadaos tao retos e empenhados quanto ela própria, fazer florescer no coracao e a mente dos jovens de hoje alguns conceitos rotulados de antiquados e severos, mas que no fim sao os que lhe dao propósito e dignidade a uma vida.
    Em sua grande casa se juntam e misturam todas as tribos, as histórias e as personagens sem conflito nem discriminacao, cada um em seu pequeno território, tudo com ordem e respeito, como ela gosta. É uma constante e fluente diversidade bem alimentada fisica e intelectualmente, sempre bem recebida e acollhida, porque em seu lar há sempre ouvidos para escutar, bracos para abracar, palavras para aconselhar, uma xícara de chá, uma fatia de bolo, uma taca de vinho para aquecer o papo... Pequenos e complexos universos orbitam em volta desta mulher exigente a quem nao agradam os queixumes nem as faltas de caráter, que é aberta porém severa, amiga e sempre mestra, diretora da sua própria existência.Mulher plena, casa plena, vida plena.
    Assim a observava eu desde a cadeira na qual tinha me ajeitado, sob a parreira que já mostrava suas primeiras folhas de um verde esplêndido, no meio do jardin cheiroso e todo enfeitado para a festa daquela tarde.O céu se mostrava levadico, uma hora carregado de nuvens escuras e ameacadoras, outra  com um sol cálido contra o azul glorioso.Dúzias de pipas aproveitavam para fazer piruetas ao sabor do vento, o pessegueiro florescido, perfumado, provocava a nossa inveja com a sua beleza. Mesas, cadeiras, o cachorro correndo para lá e para cá, alvorocado com o antecipo das coxas de frango, a costela e as linguicas pipocando sobre as grelhas. Convidados chegando, carvao, picanha, bexigas e guirlandas vermelhas, azuis e brancas, música típica enchendo o ar através das caixas de som. Cheiro de vinho, de chicha, de chá, de empadas, de favas e batatas assadas. Conhecidos e desconhecidos chegando para formar uma só família, o tempo e as vozes transcorrendo, entrelacando-se, envolvendo-me feito um cobertor quentinho e tao familiar...
    Inauguramos a "barraca da Taty"-como apelidam todos à dona da casa- entoamos o hino nacional, emocionados, se dancou com graca e coracao, de ponta e salto, lencos feito mariposas nas maos das mocas, esporas tilintando nas botas dos rapazes. Foi uma tarde plena, cheia de emocoes, de reencontros, de lembrancas, de lacos que se reatavam com mais forca do que nunca, apesar do tempo e a distância transcorridos... E era esta mulher admirável, dura feito rocha e tenra feito uma brisa, quem comandava toda esta comemoracao que, para mim, ia muito além de uma festa pátria: a tia Paty.
    E logo vinham, como partes indivisíveis dela,o Mando Xavier, a Pachi, o Cristian e o Alberto, seus filhos, meus primos, filhos do irmao da minha mae... Ah, abracar cada um deles foi como mergulhar no calor do sangue, na terra, numa docura apertada, longamente desejada. As suas vozes e seu jeito de falar permaneciam as mesmas da nossa infância, mas hoje com acentos adultos... E era curioso,maso quando olhava para eles eu nao conseguia ver os cabelos brancos, as rugas ou quaisquer outros indicios que o tempo pudesse ter deixado neles. Nao, eu continuava olhando para meus primos da fazenda, da vila rural, da casa barulhenta dos meus avós e a sua garagem mágica, onde inventávamos todo tipo de brincadeira e aventuras. E os seus sorrisos continuavam inocentes, seus risos e gestos generosos, simples, espontâneos, sem receios nem julgamentos. Para mim, eles tinham conservado intata aquela ingenuidade, aquele espírito sempre alegre, cálido, de gente boa, bem educada, trabalhadora, sem frescuras, reta e aberta... E nesse momento pensei, grata: "Já nao se faz mais gente assim, e eu tenho a sorte de pertencer a esta família". Na capital as pessoas também sao amáveis, educadas, acolhedoras e abertas, mas nao têm comigo estes lacos, esta intimidade, as histórias, o afeto puro e sincero, intocado, que temos com a família. Todos eles sao dignos descendentes de um sonhador e de uma guerreira, reúnem neles o melhor do tio Armando e da tia Paty e eu espero que eles consigam passar isto aos seus próprios filhos para que assim, este rio de carinho, alegria e calor se estenda por muchas y muchas geracoes. Isto seria o melhor legado que poderiam deixar para nós.
    E assim, foram seus abracos apertados e sinceros, suas vozes bem chilenas e seu carinho calido e sem reservas os que naquela tarde de festa me deram as verdadeiras boas vindas à minha pátria.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

    Bom, e como dizem por aí: quem espera sempre alcanza. Porque cá estou eu, comodamente instalada no sofá da sala enquanto a minha filha está no centro resolvendo as suas coisas e comprando outras, digitando pela primeira vez em nosso próprio, maravilhoso, veloz e silencioso notebook... Aaah, vocês nao imaginam -na verdade acho que sim, porque a maioria do mundo possui algum tipo de computador- a felicidade, a facilidade, a tranquilidade e a rapidez com que posso escrever agora! Esta coisinha branca, leve e silenciosa é quase mágica. Até posso escutar música (a minha estacao preferida de Brasil, a Tribuna FM) enquanto digito! Imaginem! Estou parecendo crianca em loja de doces! (como vêem, aqui nao existe o ce cedilha nem o til, entao, nao é que estou esquecendo o português) Nao mais computador jurássico, nao mais frio ou dor nas costas! É claro que agradeco imensamente o servico dos pré-históricos, sem os quais nao teria podido continuar a comunicar-me com meus seres queridos nem postar estas crônicas, mas já estava na hora de modernizar, nao é mesmo? Demorou um pouquinho, mas valeu a pena. Agora vou passar menos tempo diante da tevê comendo porcarias ou pensando besteira e vou comecar a botar em dia meu diário e a minha correspondência, fora desenvolver todo tipo de idéias que me vên na cabeca... Em fim, que vou estar ocupada e feliz, disso nao me cabe a menor dúvida!.
    E para fazer jus a esta pequena maravilha (a quem já apelidei de Branca de Neve porque é branquinho e fininho) aqui vai a crônica desta semana. E nao se preocupem, porque à partir de agora  nao vou atrasar nunca mais.


    O dia amanhecera glorioso, cálido, céu azul, cerejeiras e amendoeiras espiando a primavera com seus pequenos e ainda tímidos brotos, que já anseiam encher de cor e perfume as ruas, pracas e parques... Saí na rua para fazer algumas diligências e meus olhos se encheram de água diante desta selva de concreto, voraz y veloz, que também comecava a se transformar com a mudanca de estacao: bandeiras chilenas em todos os quiosques e vitrines, nos táxis e sacadas, os gerânios dos postes jogando seu verde novo ao vento, os chincoles, pardais e tordos alvorocando nos galhos ainda nus, como chamando à seiva para que se apressasse a encher de vida as árvores. Cachorros preguicosos deitados ao sol, roupas mais leves, coloridas,vozes animadas, camisetas regata, sandálias, sorvetes, janelas abertas, cortinas dancando, gatos espreguicando-se nos parapeitos...
    Caminhava sorrindo feito uma boba, sentindo o vento que brincava com meus cabelos e a minha roupa como se fosse a primeira vez, com o peito estourando desta felicidade gratuita que com tanta frequência toma conta de mim desde que regresamos... Como podia ser tao bom? Como podia ser tao lindo? Como podia me sentir tao bem?... Sonhava? Atuava? Enganava a mim mesma? Quanto tempo mais iria durar esta magia? Pois a mim parecia que nao iria acabar jamais. Estou convencida de que nunca  mais vou deixar de me sentir feliz, grata, cheia de expectativas pelas aventuras que ainda me aguardam, corajosa, otimista. Acho que nunca vou deixar de enxergar o belo, o bom, o especial, o milagre que Deus bota em meu caminho. Meus olhos nao cansarao desta cordilheira, destas ruas, desta gente. Tudo é feito um constante milagre, uma permanente descoberta para mim, e tentarei fazer tudo que puder para que continue desse jeito até meu último fôlego.
    E de pronto, ao chegar neste ponto das minhas reflexoes, tive um imenso sobressalto, porque me perguntei: "Mas, até quando serei capaz de curtir tudo isto?"... Pois a consciência de que estou ficando velha se fez presente, ameacadora, muito real e próxima. Quanto tempo desta saúde física e mental me resta? Será que algum tipo de incapacidade vai me impedir de continiuar vivendo assim? Vai alienar a minha percepcao, a minha capacidade de expressao, a minha produtividade e interacao? Vai me confinar numa cadeira de rodas, numa cama de hospital, no quarto de uma casa de repouso?... Me cuido e me vigio o melhor que posso, mas... Quem conhece o amanha?... Dúvidas angustiantes, opresivas, assustadoras, sem resposta... Quanto tempo vou poder curtir nosso apartamento? Por quanto tempo vou poder trabalhar e produzir ainda?... O futuro incerto, fora de controle, implacável, erguia-se diante de mim. Por um momento tudo pareceu parar, anuviar-se, perder o sentido. "Entao, para que tantos planos?", me perguntei, desanimada "Qual é a resposta, a reacao, a nao ser se resignar? Mas resignacao nao é vida, é vegetar aguardando a morte!".
    Cheguei no apartamento cansada e triste, meio desacorcoada e cheia de pessimismo, pois tinha percebido que nao se pode fugir da velhice, e muito menos da morte. Me joguei no sofá e liguei a televisao. Passei os canais uma e outra vez. Nada interessante ou diferente que pudesse me tirar da minha aflicao. De qualquer jeito, estava convencida de que, naquela hora, nem o mais entretido dos programas seria capaz de melhorar meu ânimo... Sim, aqui estava, finalmente tinha regressado à minha pátria. Mas, por quanto tempo? Foi ali que pensei que deveria ter vindo antes, mas já era tarde para arrependimentos.
    De repente, um cao galgo cinza, magro e de olhar fugidio, encheu a tela. Conduzido pelo "líder da manada", César Millán, que tem um bem sucedido programa de televisao no qual resgata e encontra novos lares para cachorros abandonados, se aproximou de um outro cachorro, este pequeno e peludo, de um branco imaculado, com uma coleira vermelha. O dono do cachorro branco, que estava recebendo o galgo enquanto procuravam outro lar para ele, disse que nao queria adotar mais nenhum outro cao, pois já tinha sofrido o suficiente com a morte dos outros que teve. Confessou que estava sempre vigiando seu animal, angustiando-se e preocupando-se ao perceber como ele envelhecia tan rapidamente, estressando-se diante de qualquer sintoma ou mudanca... Entao, César olhou para ele, sorrindo compreensivamente,e respondeu:
    -Olha, os cachorros vivem cada dia, um de cada vez, porque para eles nao existe o amanha. Na verdade, é o ser humano quem se preocupa e se aflige com o futuro e com a morte. Para o cao, basta o dia de hoje.- e rindo suavemente concluiu -Nós deveríamos aprender com eles, você nao acha?.
    Eu fiquei olhando para a tela, com o controle ainda suspenso numa mao. As imagens continuavam: outros animais, outros casos, outras solucoes... Mas eu tinha ficado com a visao do cachorrinho branco tranquilamente deitado no tapete, olhinhos fechados, respiracao calma, corpo relaxado. O retrato da felicidade, da paz e a despreocupacao. O quadro da confianca, da satisfacao e a gratidao por outro dia, outra comida, outro passéio, um novo amigo.
    Bom, se estava precisando de uma resposta para sossegar a minha angústia e  meu pessimismo, este cachorrinho branco tinha acabado de me dar.

sábado, 3 de novembro de 2012

"Janelas"

    Tem sido duas semanas de muita correria, porém todo o estresse e as noites sem dormir valeram a pena porque, finalmente, conseguimos juntar o dinheiro para dar a entrada do nosso apartamentinho... Ah, vocês nao imaginam -ou talvez sim- a felicidade e o alívio que tomou conta de nós quando entramos na sala da imobiliária segurando o comprovante do depósito na mao!... Agora fico o dia todo sonhando com cada quarto, cada móvel, cada enfeite, cada planta que vou botar ali... E de repente me apanho pensando: "Nesta idade e comprando meu primeiro apartamento!"... Eu lhes digo, esta senhora aqui ainda tem gas para muita coisa! Muitos desafios, muitas aventuras, muita felicidade e muita criatividade, muita realizaçao! Cada dia fico mais convencida de que algo magnífico me aguarda aqui, entao estou bem atenta e muito otimista, porque tenho certeza de que nao irá demorar.
    E antes que acabe congelando nesta sala, apesar de que lá fora está um sol radiante, aqui vai a crônica da semana, mais uma vez totalmente atrasada. Mas como agora poderemos comprar um notebook com parte da grana que nos sobrou, provavelmente nao tornarei a faltar, já que nao terei de descer até o hotel para poder escrever... Bom, mas também nao vou ser ingrata porque estes computadores jurássicos do hotel têm sido muito eficientes para que possamos comunicar-nos e fazer as nossas coisas, nao é mesmo?...


    Sento na beirada da cama, em frente à janela, e fico ali durante algum tempo... O quarto está escuro e silencioso. A minha filha assiste televisao na sala ao lado, e sei que ficará até bem tarde, mas para mim já é hora de ir para cama... Olho para a janela e está tudo em sombras. Apenas distingo meu próprio reflexo no vidro. Sei que estou rodeada por três blocos de prédios de apartamentos, mas neste negrume parece que tao só eu existo neste momento. Sinto-me numa espécie de cápsula cálida e vibrante enquanto o universo lá fora está como que suspenso no nada... O peso de uma solidao desconhecida cai sobre mim, pois mesmo sabendo que estou rodeada de prédios e pessoas, tenho a sensaçao de estar numa outra realidade, minha somente, na qual meu corpo e a minha mente sao únicos, densos, onde nao há espaço  para mais ninguém. A minha própria vida se torna pesada, tortuosa, isolada, como se nao formasse parte da história, como se nao tivesse nenhuma relevância. É como um elo perdido no meio da noite. As angústias e inseguranças desta nova vida estao à minha volta feito mariposas ao redor de uma lâmpada e me tocam com as suas asas frias e aveludadas. Como nao tenho para onde olhar, visoes da minha existência passam diante de mim e nao tenho com quem compartilhá-las. Desligada de tudo e de todos, de pronto ela me parece inútil e sem sentido...
   No entanto, eis aqui que, de repente, a janela do apartamento na frente acende. O retângulo de cortina marrom parece flutuar no frio noturno. Percebo silhuetas que se movimentam atràs dele e, como caindo em mim diante desta imagem, lembro que ali mora um casal de chineses jovens, e que faz um par de dias compraram uma cama nova... Estou lembrando a cena do colchao e a armaçao de madeira entrando aos empurroes pela pequena porta, quando acendem outras duas janelas, quase que ao mesmo tempo. A da cortina verde é do apartamento do dono da padaria onde compramos o pao e o presunto e aqueles abacates deliciosos. Seu Fernando anda com um dedo enfaixado por causa de um acidente domêstico... A cortina vermelha esconde um casal com uma criança pequena que adora andar pela sala empurrando a sua cadeirinha...
    Em seguida, outras tres janelas iluminam-se... "Todo mundo está retornando para casa", digo a mim mesma, começando a sorrir ."É, os chilenos realmente trabalham até tarde"... O poodle lá embaixo corre em direçao à porta que se abre, latindo e saltitando, e alguém entra e se abaixa para afagá-lo. A mulher loira abre a porta do terraço e pendura uma toalha no varal improvisado. O vizinho ao lado sai com a sua xícara de cafe e seu cigarro e fica parado ali, observando lânguidamente a fumaça que se eleva da sua boca. O gordinho de cima aparece na janela falando ao celular. A senhora a minha esquerda aparece no balcao com uma jarra de água e rega generosa e  delicadamente suas samambaias, cravos e violetas...
    Ainda sentada na beira da cama, contemplo cada um destes quadros ao meu redor, e nao posso conter um sorriso. Quanta gente conheço! E que perto estao de mim!... E começo a fazer as contas: a moça da academia -Madalena- o conserje -seu Arturo- as zeladoras -Joana e Maria- o senhor da lan house na estaçao do metrô, a dona da floricultura, a senhora do mini marquet -dona Teresa- o cabelereiro -André- a sua cachorrinha -"Florencia"- e seu amigo -Mario- o faz de tudo do hotel -Carlos- a professora de canto da minha filha -Paulina- os empregados das lojas,  as caixas dos mercados, o vendedor do quiosque de frutas, a minha vendedora na feira... Pisco e solto um suspiro, endireitando-me, pois uma multidao de rostos, de vozes, anedotas e encontros, de momentos compartilhados desfila diante dos meus olhos, e cada um deles deixa a sua marca em minha vida, se entrelaça na minha história de uma ou outra forma, acrescenta uma experiência à minha vida, assim como eu mesma devo acrescentar alguma à vida deles.
    Deixo que as luzes acessas protejam a minha escuridao e vou até o banheiro escovar os dentes. Fico olhando a água correr, faladeira e poderosa, e percebo que nao estou sozinha como pensei, mas que faço parte de um todo, que tenho meu papel. E mais, percebo que todos devemos fazer parte, que precisamos viver o nosso papel, cumprir o nosso destino e deixar o nosso legado. Estamos rodeados por outros como nós, aqueles com quem cruzamos todo dia por alguma razao. Precisamos uns dos outros e mesmo que às vezes pareça que estamos sós ou que fomos abandonados, precisamos saber  e acreditar que, escondidos nas sombras -inclusive as mais escuras- há outros que, mais cedo ou mais tarde, acenderao suas janelas para iluminar nosso caminho.