sábado, 3 de novembro de 2012

"Janelas"

    Tem sido duas semanas de muita correria, porém todo o estresse e as noites sem dormir valeram a pena porque, finalmente, conseguimos juntar o dinheiro para dar a entrada do nosso apartamentinho... Ah, vocês nao imaginam -ou talvez sim- a felicidade e o alívio que tomou conta de nós quando entramos na sala da imobiliária segurando o comprovante do depósito na mao!... Agora fico o dia todo sonhando com cada quarto, cada móvel, cada enfeite, cada planta que vou botar ali... E de repente me apanho pensando: "Nesta idade e comprando meu primeiro apartamento!"... Eu lhes digo, esta senhora aqui ainda tem gas para muita coisa! Muitos desafios, muitas aventuras, muita felicidade e muita criatividade, muita realizaçao! Cada dia fico mais convencida de que algo magnífico me aguarda aqui, entao estou bem atenta e muito otimista, porque tenho certeza de que nao irá demorar.
    E antes que acabe congelando nesta sala, apesar de que lá fora está um sol radiante, aqui vai a crônica da semana, mais uma vez totalmente atrasada. Mas como agora poderemos comprar um notebook com parte da grana que nos sobrou, provavelmente nao tornarei a faltar, já que nao terei de descer até o hotel para poder escrever... Bom, mas também nao vou ser ingrata porque estes computadores jurássicos do hotel têm sido muito eficientes para que possamos comunicar-nos e fazer as nossas coisas, nao é mesmo?...


    Sento na beirada da cama, em frente à janela, e fico ali durante algum tempo... O quarto está escuro e silencioso. A minha filha assiste televisao na sala ao lado, e sei que ficará até bem tarde, mas para mim já é hora de ir para cama... Olho para a janela e está tudo em sombras. Apenas distingo meu próprio reflexo no vidro. Sei que estou rodeada por três blocos de prédios de apartamentos, mas neste negrume parece que tao só eu existo neste momento. Sinto-me numa espécie de cápsula cálida e vibrante enquanto o universo lá fora está como que suspenso no nada... O peso de uma solidao desconhecida cai sobre mim, pois mesmo sabendo que estou rodeada de prédios e pessoas, tenho a sensaçao de estar numa outra realidade, minha somente, na qual meu corpo e a minha mente sao únicos, densos, onde nao há espaço  para mais ninguém. A minha própria vida se torna pesada, tortuosa, isolada, como se nao formasse parte da história, como se nao tivesse nenhuma relevância. É como um elo perdido no meio da noite. As angústias e inseguranças desta nova vida estao à minha volta feito mariposas ao redor de uma lâmpada e me tocam com as suas asas frias e aveludadas. Como nao tenho para onde olhar, visoes da minha existência passam diante de mim e nao tenho com quem compartilhá-las. Desligada de tudo e de todos, de pronto ela me parece inútil e sem sentido...
   No entanto, eis aqui que, de repente, a janela do apartamento na frente acende. O retângulo de cortina marrom parece flutuar no frio noturno. Percebo silhuetas que se movimentam atràs dele e, como caindo em mim diante desta imagem, lembro que ali mora um casal de chineses jovens, e que faz um par de dias compraram uma cama nova... Estou lembrando a cena do colchao e a armaçao de madeira entrando aos empurroes pela pequena porta, quando acendem outras duas janelas, quase que ao mesmo tempo. A da cortina verde é do apartamento do dono da padaria onde compramos o pao e o presunto e aqueles abacates deliciosos. Seu Fernando anda com um dedo enfaixado por causa de um acidente domêstico... A cortina vermelha esconde um casal com uma criança pequena que adora andar pela sala empurrando a sua cadeirinha...
    Em seguida, outras tres janelas iluminam-se... "Todo mundo está retornando para casa", digo a mim mesma, começando a sorrir ."É, os chilenos realmente trabalham até tarde"... O poodle lá embaixo corre em direçao à porta que se abre, latindo e saltitando, e alguém entra e se abaixa para afagá-lo. A mulher loira abre a porta do terraço e pendura uma toalha no varal improvisado. O vizinho ao lado sai com a sua xícara de cafe e seu cigarro e fica parado ali, observando lânguidamente a fumaça que se eleva da sua boca. O gordinho de cima aparece na janela falando ao celular. A senhora a minha esquerda aparece no balcao com uma jarra de água e rega generosa e  delicadamente suas samambaias, cravos e violetas...
    Ainda sentada na beira da cama, contemplo cada um destes quadros ao meu redor, e nao posso conter um sorriso. Quanta gente conheço! E que perto estao de mim!... E começo a fazer as contas: a moça da academia -Madalena- o conserje -seu Arturo- as zeladoras -Joana e Maria- o senhor da lan house na estaçao do metrô, a dona da floricultura, a senhora do mini marquet -dona Teresa- o cabelereiro -André- a sua cachorrinha -"Florencia"- e seu amigo -Mario- o faz de tudo do hotel -Carlos- a professora de canto da minha filha -Paulina- os empregados das lojas,  as caixas dos mercados, o vendedor do quiosque de frutas, a minha vendedora na feira... Pisco e solto um suspiro, endireitando-me, pois uma multidao de rostos, de vozes, anedotas e encontros, de momentos compartilhados desfila diante dos meus olhos, e cada um deles deixa a sua marca em minha vida, se entrelaça na minha história de uma ou outra forma, acrescenta uma experiência à minha vida, assim como eu mesma devo acrescentar alguma à vida deles.
    Deixo que as luzes acessas protejam a minha escuridao e vou até o banheiro escovar os dentes. Fico olhando a água correr, faladeira e poderosa, e percebo que nao estou sozinha como pensei, mas que faço parte de um todo, que tenho meu papel. E mais, percebo que todos devemos fazer parte, que precisamos viver o nosso papel, cumprir o nosso destino e deixar o nosso legado. Estamos rodeados por outros como nós, aqueles com quem cruzamos todo dia por alguma razao. Precisamos uns dos outros e mesmo que às vezes pareça que estamos sós ou que fomos abandonados, precisamos saber  e acreditar que, escondidos nas sombras -inclusive as mais escuras- há outros que, mais cedo ou mais tarde, acenderao suas janelas para iluminar nosso caminho.

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