sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"A cerejeira"

    Às vezes as coisas parecem caminhar tan devagar que dao a impressao de estar se arrastando. Outras, vao tao rápido que nao percebemos como acontecem e de repente, bam! já está tudo solucionado e a gente pode continuar com a vida feliz e despreocupado... Bom, para nós as coisas andam mais ou menos desse jeito: um dia insuportavelmente devagar, noutro alucinantemente rápido. É feito uma montanha russa - coisa nada favorável para a glicemia ou a pressao arterial- mas tenho certeza de que toda esta loucura e esta ansiedade vao acabar valendo a pena porque obteremos a nossa recompensa. Quer dizer: nosso tao sonhado apartamento próprio... Falta pouco, muito pouco, posso senti-lo nos ossos. Um suspiro de paciência e fé e já estaremos lá.
    E aproveitando esta onda veloz que vem de encontro a nós, trazendo bons presságios, um sol esplendoroso e uma brisa cheia de perfumes, sento aqui para postar a crônica da semana. Meio atrasada, para variar, mas...


    -Encadernaçao?...- perguntou a atendente do hotel e, após pensar por alguns momentos, sorriu e disse: -Tem um lugar aqui perto, na rua Paris, a um quarteirao daqui. Nós fazemos todas as encadernaçoes lá.
    Agradeci a informaçao com um sorriso, peguei a sacola com meus papéis e fui para a rua atrás da tal imprenta. O dia estava lindo, ensolarado, o ar cristalino, apesar das lufadas de vento frio que de repente varriam as esquinas  e os cantos, assobiando entre as paredes históricas e as suas fendas e  levantando redemoinhos de folhas secas  nas calçadas de paralelepípedos... Inverno com ameaça de primavera, típico de Santiago... Me enfronhei na parca e subi pela rua que a mulher tinha me indicado, olhando bem para nao me perder porque, como ela tinha me explicado, o local era pequeno e meio escondido. Eu observava os casaroes de pedra com as suas sacadas e terrazas de grades trabalhadas, as janelas caprichosamente esculpidas, as garagens imponentes, e nao imaginava onde poderia estar uma pequena imprenta pois tudo me parecia grande e majestoso.
    No entanto,  andando um pouco mais, divisei, ao longe, um letreiro verde e branco no qual dizia: "Imprenta. Ge Go fotocópias" apoiado na entrada do que parecia ser a garagem de um casarao. Me aproximei, percebendo que outros pequenos estabelecimentos de todo tipo tinham se instalado também nas garagens ou entradas das mansoes, até chegar ao lugar. Quando o vi, fiquei meio prepocupada, pois achei que a senhora do hotel tinha cometido um erro. Aquilo nao era mais do que um espaço minúsculo, sem balcao de atendimento, apenas com uma placa de compensado meio torta, sem pintar, separando os clientes dos funcionários. Uma escrivaninha arcáica, pesada e escura, um sofá de couro surrado, com certeza resgatado de alguma venda de garagem ou de uma mansao em decadência, uma estante mal feita, paredes amareladas, gastas, manchadas. Era um lugar sombrio e estreito, no qual quase nao tinha espaço para se mexer entre aquele móvel gigantesco e o armário na parede, onde se amontoavam pastas e folhas. No fundo, depois de um umbral meio coberto por uma cortina beige bastante suja, podia ver-se a máquina impressora, antiquada, preta e esquisita, parecendo mais um gigante encarcerado. Uma geladeira, um computador ultrapassado, papéis, máquinas menores, trapos, latas de tinta... Uma desordem respeitável e nada confiável... Um homem alto e desengonçado, com um avental manchado, óculos e quase careca, inclinava-se sobre a prensa, totalmente abstraido... Eu olhei em volta, meio desconcertada, sem saber se devia ir embora ou entao fazer  algum tipo de barulho para que o homem percebesse a minha presença. E bem quando estava prestes a dar meia volta e ir embora, apertando meus preciosos papéis contra o peito como quem salva o filho de uma morte certa e horrível, uma voz feminina veio de detrás de mim, desde algum canto longíquo, e me cumprimentou:
    -Bom dia, minha querida! Em que posso ajudá-la?
    E eu juro que era uma das vozes mais amáveis e alegres que tinha escutado em muito tempo, totalmente  fuera de contexto naquele ambiente lúgubre. Tanto que me fez parar como se tivesse me jogado um laço. Virei imediatamente, curiosa por ver o rosto dono daquela voz quase mágica.
    -Bom dia - repetiu ela - O que posso fazer por você?
    Eu fiquei olhando para ela durante alguns instantes antes de responder, totalmente surpresa. Porque a imagem realmente nao correspondia em absoluto àquele cenário: me encontrava diante de uma senhora de uns cinquenta e poucos anos, de cabelos loiros perfeitamente penteados, pele e olhos claros e brilhantes, maquiagem discreta, lábios rosados, uns brincos pequenos, colar de pérolas, unhas pintadas, um par de anéis sóbrios. Vestia com elegância e as suas botas brilhavam sob a saia lisa. Pequena e franzina, o que mais chamava a atençao -afora sua voz- era seu sorriso, que mostrava uns dentes brancos, algo irregulares. Quando seus lábios se entrabriam parecia que tudo ali dentro se iluminava, tornava-se calido, acolhedor. Tive a sensaçao de que a conhecia desde sempre, de que poderia confiar nela, de que iriamos nos dar muito bem...
   Sem duvidar um segundo, voltei atrás e lhe apresentei a minha sacola.
   -Preciso fazer fotocópias e encadernar estes papéis.- lhe expliquei, sorrindo também.
    -Pois nao!- respondeu, pegando as folhas com movimentos leves e experientes. Em seguida deu uma olhada neles, como para avaliá-los -Ficam prontos numa hora.- disse, e tornou a olhar para mim.
    E aqueles olhos eram tao sinceros, tao acolhedores, tao envolventes, que eu nao queria sair da frente deles. A sua voz melodiosa e animada, seus gestos claros e graciosos e aquela total disponibilidade para comigo e as minhas necessidades tinham me conquistado por completo, instantaneamente.
    Entao, me perguntei: Como será que se tornou assim? Quais foram as experiências que a transformaram nesta mulher cálida e positiva? O que a animava? Por que tinha aquele sorriso?... Será que tinham sido tan só vivências boas? Sorte? Uma vida feliz, saudável, financeiramente estável, próspera? Alguma crença religiosa? Algum amor?... Porém, também me ocorreu que talvez fosse o oposto: que o sofrimento tinha-a lapidado para que aprendesse a perceber e aproveitar cada momento positivo, cada encontro, cada gota de felicidade que encontrasse em seu caminho. Talvez tinha aprendido através da dor que o sorriso e a amabilidade sao feito sementes que, quando jogadas, se multiplicam e dao flores e frutos que retornam a quem as plantou. Talvez uma inabalável esperança nos homens, no destino, no bom combate, aninhava em seu coraçao e sustentava seu corpo, daquela esperança e gratidao que renascem cada manha e sao reforçadas ao longo do dia pela percepçao e a assimilaçao da beleza que nos rodéia, pela consciência de cada pequeno milagre que acontece durante nossa jornada. Talvez acreditava em anjos, no paraiso, na boa fé, na compaixao. Quiçá se sentia tao grata e afortunada que desejava compartilhar a sua felicidade conosco, queria que soubéssemos como era bom estar vivo, poder enxergar, escutar, sentir, se comunicar, ser amável, sorrir, estar disposto a acolher... A imprenta era pequena e féia, sim, mas naquele instante eu tinha a certeza absoluta de que a minha encomenda seria executada com total perfeiçao, pois seria feita com todo o amor e o brilho que esta mulher irradiava.
    "Pôxa!", pensei, enquanto me afastava "Esta mulher poderia fazer florescer um jardim em pleno inverno!"
    E quando ergui a cabeça vi, na calçada bem em frente à imprenta, uma cerejeira cheia de flores abertas que perfumavam o ar.

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