sábado, 25 de outubro de 2008

Paciência

Um día de tremendo calor, mas aqui em meu quarto, com a música do rádio no fundo e meu silencioso ventilador ligado, está suficientemente fresco como para postar mais uma crônica sem derreter diante do computador... Perdi um bom tempo e uma grande dose de paciência arrumando os erros de uma encadernação -que vou ter de refazer-, mas não o bastante como para acabar com a minha inspiração ou a vontade de escrever... Bom, acho que nada poderia tirá-la de mim, para ser sincera. Acho que é a coisa mais importante e gratificante em minha vida e não pretendo que nada me impeça de continuar fazendo-a... Nem sequer o trabalho desastrado de uma balconista de papelaria que não sabe fazer seu serviço!...
Então, aqui vai a de hoje:
Há uma coisa que, sem dúvida, deve ser aprendida e exercitada antes de todas as outras: a paciência. Sem entendê-la ou cultivá-la se torna realmente muito difícil atingir satisfatóriamente qualquer meta. Sem paciência não se produz, não se aprende, não se aprimora, se perde o momento certo para cada ação. Sem paciência não se percebe, não se assimila nem se chega à conclusões reais e muito menos à perfeição (isto dentro do possível, é claro). Não sei por quê as pessoas têm tanta pressa para tudo! O que esperam? Pular etapas para chegar antes? Ganhar tempo? Aproveitar mais a vida? Mas, e o que seria "aproveitar a vida"? Terminar antes que os outros?... Tem quem começa já querendo acabar, que inicia um trabalho pensando no próximo sem perceber que desse jeito está deixando passar a alegria e o aprendizado da experiência presente. Assim, nenhuma conquista é realmente desfrutada, assimilada, incorporada à existência, pois passa tão velozmente que mal conseguimos percebê-la no afã de seguir para o próximo desafio. Estas pessoas não estão nunca aqui, agora, mas sempre ali adiante, correndo para chegar primeiro na seguinte parada que, às vezes, nem sabem qual é ou se vai realmente acrescentar alguma coisa ao seu crescimento. Mas, eu me pergunto: Por que a pressa? A criação não tem tempo limite, não é uma corrida, não está com uma espada sobre as nossas cabeças ameaçando despencar se não cumprimos os prazos!... Por que as pessoas de hoje desprezam a perseverança, a dedicação, a reflexão, o processo de aprendizado e as pequenas experiências que, no fim, são as que conformam o grande resultado, o sucesso, a lição? Em troca do quê? Uma sensação ilusória e efêmera de mais tempo? Mas que tipo de tempo é esse que ganham? Qual a sua qualidade? Engolido às pressas nem o seu sabor consegue-se sentir. Num piscar de olhos já foi e só restou um vazio, um estado de perpétua inconsciência, de ausência... As pessoas estão sem paciência para viver, para ser, para estar, esta é a minha conclusão. Têm tanto medo de perder o tempo das suas existências -que a cada dia parecem mais breves e sem sentido- de deixar alguma coisa importante para atrás, de não ganhar o que quer que seja o prêmio no fim desta corrida, que em seu empenho por abranger o máximo de atividades durante a sua passagem pela terra, acabam por perder a maioria das lições que deveriam aprender com elas ou, então, as vivenciam infimamente, pois não têm paciência suficiente para chegar até o fim delas, sempre preocupados com o que vem a seguir.
É por isso que a primeira coisa que sempre digo a todos meus alunos -independentemente da disciplina em que estejam trabalhando- é que, antes de mais nada, precisam desenvolver dentro deles a arte da paciência, aquela necessária para observar uma árvore crescer, pois sem ela não chegarão a lugar algum. Falo para eles que o cultivo desta virtude nos leva automaticamente à prática de outros conceitos vitais como a percepção, a compreensão a serenidade, o diálogo e a compaixão. Temos que aprender e aceitar que as coisas terminam somente quando seu ciclo está completo -e tudo tem um ciclo- e que não adianta empurrar o rio, porque ele corre sozinho, como diz o grande psicólogo Karl Jung. Isso inclui as nossas existências também e é um fato que não pode ser alterado não importa o quanto nos incomode, nos irrite ou nos amedronte. Todo processo precisa ser vivenciado em sua totalidade para que dele se obtenha alguma conclusão válida e duradoura, que acrescente mais um tijolo à construção de nós mesmos.

sábado, 18 de outubro de 2008

Cachorros

Conversando com a minha filha outro dia, contava-lhe os meus encontros e peripécias com os cachorros da vizinhança, ou que fazem parte da minha caminhada matinal, e de repente ela me perguntou se eu tinha alguma coisa escrita em meu diário -que é de onde saem estas crônicas- sobre eles. Respondi que sim, já que meu encontro diário com eles passou a ser uma das partes mais legais desta caminhada, e ela me sugiriu então colocar estes relatos no blog, pois com certeza não devo ser a única a conversar com animais, salvar filhotinhos abandonados, comprar carne ou biscoitos para cachorros de rua e me tornar amiga íntima de quem tem algum animal em casa. Às vezes, na minha empolgação e alegria ao encontrar estes meus amigos peludos, até me esqueço de comprimentar os donos e vou direto acariciar e conversar com os animais, deixando os coitados com cara de tacho e um sorrisinho amarelo... Mas até agora ninguém reclamou, pois sabem que sou tão louca por animais quanto eles, então qualquer falta de educação em prol de um carinho pra o bichinho, fica desculpada.... Assim, a minha filha insistiu para que postasse algo sobre meus "amigos" e, no fim da conversa, eu já estava revirando os cadernos para encontrar os textos que falavam sobre eles. Não são muitos, mas acho que vale a pena publicá-los pois, com certeza, muitos de vocês se sentirão identificados.
Então, aqui vai o primeiro:
Estou apaixonada pelo "Buck", o "João Pires" e o "Robert Taylor", os três cachorros mais feios da cidade!... O "Buck" é um filhote ainda, bulldog, branco e totalmente maluco, uma das criaturas mais simpáticas e cheirosas que já encontrei (vai uma vez por semana no petschop tomar banho e se perfumar). O "Jõao Pires" -não conseguia parar de rir quando a dona me disse seu nome, fruto da criatividade dos filhos- é uma mistura de pitbull com vira-latas, de olhos verdes e um corpo forte e atarracado que me lembra um toco de árvore. Pode parecer feroz à primeira vista, mas é brincalhão e adora uma coçada no peito. E o "Robert Taylor" (desse não sei o nome ainda, mas num desplante de engenhosidade e ironía, decidi batizá-lo como "Robert Taylor", um galã de cinema dos anos 30) é um bulldog puro, branco (mas que não toma banho há séculos) de focinho totalmente torto e olhos esbugalhados.. Às vezes quando passo diante da sua casa o encontro deitado na entrada, apoiado na grade com ar lânguido e reflexivo, olhando serenamente a paisagem e os transeuntes, a língua pendurada entre os dentes e a bocarra aberta, pois parece que algum defeito de nascença ou um acidente lhe impedem de fechá-la completamente... Assim que me vê ou escuta a minha voz, é repentinamente tomado por uma espécie de corrente elétrica e começa uma desajeitada dança de boas-vindas, agitando alegremente seu toco de rabo e resfolegando feito um touro. Apóia suas curtas patas tortas na grade e parece brindar-me com seu mais encantador sorriso, todo língua, dentes e baba, e fica ali, olhos fixos em mim, aguardando seu biscoito (É, continuo com o costume de dar biscoito a cachorros alheios)... E quem diz que eu resisto a todo esse charme?... É verdade que demorei um pouco para reunir coragem suficiente para passar a minha mão pelos barrotes da grade e acariciar a sua cabeça, pois a visão daqueles caninos enormes e aguçados não era nada convidativa, mas acabei descobrindo que o "Robert" é feito criança e se derrete por uma coçada na cabeça. Quando lhe ofereço o biscoito, ele o apanha com uma mordida meio desengonçada (acho que morde a própria língua toda vez que o faz) e me olha com a mais profunda gratidão, acena com seu rabo e deita ruidosamemnte no chão, dedicando toda sua atenção ao petisco, porém, não sem antes dar-me uma última olhadela e um sorrisinho desnivelado...
O "João Pires" -a quem eu chamava de "Demolidor"- me conquistou logo no primeiro dia em que o vi. Não é exatamente um filhote, mas adora brincar e destruir panos, sapatos, bolas, galhos e jornais. E foi assim que me apareceu a primeira vez: assassinando uma garrafa pet de dois litros. Estava escondido atrás da cerca viva de pingo d'ouro do jardim da frente, de modo que eu teria passado sem notá-lo, não fosse escutar aquele barulho que já conheço tão bem -a minha cadela adora morder garrafas pet- Não resisti e atravessei a rua para descobrir quem era que estava deliciando-se com a garrafa. Cheguei devagar junto à grade e espiei dentro, empinando-me um pouco.. E ali estava ele: um toco marrom e branco com quatro patas curtas e tortas e um par de olhos inesperadamente verdes e faiscantes, atacando e arrastando a garrafa, já toda deformada e esburacada pelos seus enormes caninos. A sua concentração era tanta que não me notou junto à grade observando-o, mas quando soltei uma risada virou-se velozmemnte e me encarou, ofegante e babando, e ficou totalmente imóvel.
-O que você está fazendo aí, "Demolidor"- perguntei, dando-lhe desde já aquele nome ao ver a quantidade de estrago que já tinha feito com um tênis, o jornal, uma toalha e uma caixa de papelão -A garrafa está gostosa?...- acrescentei, e não pude evitar rir de novo diante da sua expressão de desconcerto, o que deve ter-lhe parecido bastante idiota da minha parte, já que nunca havíamos sido apresentados.
Naquele dia não ousei ainda enfiar a mão pelas barras da grade ou chamá-lo para mais perto; me conformei com seu olhar meio desconfiado e com o fato dele não ter avançado latindo e rosnando na hora em que me viu parada diante da sua casa. Isso indicava que, apesar do aspecto, não era um cão agressivo, o que me proporcionava uma boa chance de tornar-me a sua amiga... Hoje é ele quem se aproxima até a grade e encosta nela a parte que quer que eu coce, recebendo em seguida seu biscoito com os olhinhos verdes brilhantes e as orelhas em pé. Antes de ir para seu pano -já em farrapos- estraçalhar o biscoito, sempre se vira e me olha uma última vez, mexendo o rabo (também um toquinho) e ensaiando uma pequena dança de agradecimento.
Vi o "Buck" (ou "Bubú", como eu o chamo) pela primeira vez no jardim da frente da sua casa, correndo e saltitando feito um louco entre a grama e os canteiros e enredando-se nas pernas da sua dona que, em vão, tentava segurá-lo para poder abrir o portão e assim permitir que o esposo pudesse tirar o carro para ir trabalhar. De longe escutei seus latidos e imadiatamente reduzi o ritmo da minha caminhada, pois adivinhei tratar-se de um filhote e eu não resisto a nenhum. Comecei a prestar atenção em ambos lados da calçada para descobrir onde estava o animal, e eis que de repente vejo, na casa vizinha a uma outra velha e cheia de galinhas e densas trepadeiras no quintal, uma pequena bola de pêlo branca rodopiando, pulando e latindo atrás das grades, aparecendo e desaparecendo entre as folhagens dos canteiros e os vasos da área numa velocidade estonteante, e uma desesperada mulher segurando uma coleira vermelha e chamando o filhote com voz ora severa, ora contendo o riso. É claro, parei e fiquei a observar a cena, tentando adivinhar de que lugar a bola de pêlos iria pular para assaltar as pernas da sua dona e tentar pegar a coleira, que parecia um artigo altamente apetitoso para seus pequenos dentes de agulha... Inesperadamente, o cãozinho surgiu das sombras do canteiro mais próximo à grade, latindo e arrastando um redemoinho de folhas e poeira junto com ele, desta vez disposto a pular e ficar com a coleira vermelha como troféu, quando de repente, me viu parada ali, rindo e, tão rápido quanto havia iniciado seu ataque, deteve-se, encarando-me com seus enormes olhos pretos e úmidos... Parado ali, em meio às lajotas escuras, parecia um brinquedo de pelúcia, ofegante e elétrico, aguardando a que lhe dessem um pouco mais de corda. Era a coisinha mais féia e deliciosa que eu já tinha visto!... A dona aproveitou a sua distração e correu até eles, passando-lhe prestamente a coleira pelo pescoço e o peito, e o ergueu em seu colo, sorrindo e murmurando frases de reconvenção que não intimidariam ninguém. Ao parecer, estava tão caída de amores quanto eu... Finalmente, ela conseguiu abrir o portão e o carro do esposo saiu para a rua, de onde se despediu efusivamente, jogando beijinhos e recomendações para o cão nos braços da esposa... Sem conseguir me segurar por mais tempo, me aproximei até a mulher e me derreti em elogios para o filhote, que de imediato começou a fazer uma conscienciosa lavagem em meu rosto e mãos, ao tempo que lutava feito uma mola para livrar-se dos braços da dona e retornar ao chão. Aí soube que seu nome era "Buck", mas vendo-o tão pequeno e cheio de energia, pareceu-me um nome sério demais, então passei a chamá-lo de "Bubú" e, claro, incluí-lo na minha lista de "biscoitáveis", só que para isso ser efetivo, a dona me explicou que eu teria de esperar a que ele completasse a dentição (ao ver os destroços de chinelos, bolas e tapetes me perguntei, não sem receio, como seria o estrago quando tivesse todos os dentes)... Pena que como é tão pequeno e alucinado, a dona não o deixa ficar muito no quintal da frente, pois estão fazendo algumas reformas na casa e há muito entulho e objetos perigosos misturados com os vasos e folhagens do jardim, mas também o mantém lá atrás com medo que alguém o leve embora, então os nossos encontros são pouco frequentes. Mas cada vez que torno a vê-lo levo um susto, pois parece estar crescendo à velocidade da luz!... Porém, a despeito disso, sempre que o vejo ele está correndo, rolando e pulando no meio dos canteiros, tropeçando nas pedras e vasos de avenca, latindo ou brigando com o jornal ou o tapete da porta. É só aparecer no portão e chamá-lo que ele larga na hora o que quer que esteja destruindo e vem em desabalada corrida até a grade -usualmente chocando-se estrondosamente contra ela- e fica pulando, babando e latindo alegremente, reclamando seus dez segundos de carinho (porque não consegue ficar mais tempo sossegado) e seu biscoito (a sua dentição já está completa agora) que assim que recebe, vai morder e chupar na protetora sombra dos arbustos do canteiro... Da rua, eu só enxergo seus enormes olhos brilhantes que, entre uma mordida e outra, me fitam a modo de agradecimento.
A parada na casa do "Bubú", do "João Pires " e do "Robert Taylor" sempre torna a minha caminhada -meu dia, para ser mais precisa- mais leve e alegre, pois toda vez sou recebida com a mesma efusão e espontaneidade, entusiastas meneios de rabo e olhos cintilantes, mais aquele impagável olhar de reconhecimento e afeto que tem a virtude de transformar o mundo à minha volta, deixando-o mais cálido e cheio de otimismo, fazendo com que me sinta especialmente querida e aguardada... É o biscito que opera este pequeno milagre diário? Talvez no início sim. Tem gente que afirma que as demonstrações de felicidade e alegria são puro interesse, mas eu já experimentei me aproximar sem ele, só para fazer um carinho ou conversar, e até agora não recebi nenhuma desfeita nem escutei nenhum rosnido de reclamação; nenhum deles virou as costas para mim ou deixou cair o rabo e as orelhas em sinal de mágoa...
Os animais, ao contrário do ser humano, amam você por você mesmo e não porque você tem um biscoito no bolso.
Bom, a coisa ficou meio comprida, mas tenho que ser justa, e se falo de um, tenho que falar dos outros também, porque todos -e mais alguns que andei conhecendo ultimamente- moram em meu coração e merecem idêntica atenção... Agora, pode parecer maluquice, mas eu recomendo um ou dois encontros com cachorros durante a semana para melhorar o humor e reduzir o estresse, para sair do nosso pequeno e denso mundinho de competição e receio e entrar um pouco no deles, que só querem um afago e umas palavras para encher-nos do mais puro e verdadeiro afeto.

sábado, 11 de outubro de 2008

O sobrevivente

Mais um sábado, hoje de chuva, e mais uma história. Hoje estou contente porque finalmente publicaram o endereço do blog na crônica desta quarta-feira na Folha de Londrina. Espero que a coisa funcione e mais pessoas possam ler meus textos... O único chato deste esquema é que você nunca sabe quantas pessoas realmente abrem o blog e lêem as crônicas, pois nem todo mundo posta um comentário ao respeito, então acho que devo supor que tem gente lendo e gostando, fora as que lêem as crônicas no jornal. Gostaria que eles publicasse pelo menos uma por mês, como fazia a antiga editora, mas sei que tem muita gente enviando trabalhos e também têm direito de vê-los publicados. No entanto, posso me sentir feliz porque, realmente, as minhas crônicas são as que aparecem com maior freqüência -provavelmente porque estou constantemente enviando novos textos- e recebem boas críticas. Acho que, no fim, tudo se resume a não desistir, não é mesmo?... Alguma hora algo tem que acontecer...
Bom, e aqui vai a de hoje:
Aquela imagem mais parecia saída de um quadro de Goya, de um concurso de fotografia no qual tivesse ganho o primeiro prêmio pela dramaticidade, ou de um cartaz de denúncia ou concientização sobre os velhos e as suas necessidades e penúrias: na pequena casa branca, construída com os mais diversos tipos de material, na área com teto de zinco e pilares de madeira, entulhada de latas com avencas e cebolinha, uma mesa velha coberta com uma toalha de plástico gasta e rodeada por cadeiras tão tortas e tristes quanto ela, o velho apoiava as costas vergadas na parede onde batia o sol da manhã, sentado num banquinho feito com os restos de uma cadeira metálica. Segurava um pote de sorvete do qual ia pegando vagarosamente, com mão trêmula, colheradas de algum tipo de mingau branco e fumegante, que levava à boca desdentada com todo cuidado para não derramar nada sobre o guardanapo que pendia da sua camisa. Atrás dele, no interior da cozinha sombreada, percebia-se grande atividade, vozes, barulho de pratos e panelas, silhuetas passavam pra cá e pra lá apressadas e cheias de animação, porém, para o velho sentado na banqueta ao sol, nada parecia importar a não ser terminar a sua refeição, silenciosa e metodicamente, encolhido naquela roupa grande demais para ele, calçado com chinelos velhos e de uma cor indefinida, os cabelos ralos despenteados, os pequenos olhos ausentes e opacos... Parecia que, uma vez que deram a ele seu pote de mingau, todos ali dentro haviam se esquecido dele e ele por sua vez, tampouco se mostrava interessado no que acontecia lá. Era como se estivesse numa outra dimensão, uma figura única e solitária, emprestada para compor aquele quadro do qual não parecia realmente fazer parte...
Passei lentamente diante da casa e uma rajada de angústia me apertou o coração ao perceber como ele se destacava sentado ali, apesar de tão miúdo e frágil, como parecia o reflexo fiel daquele tipo de terrível e devastadora miséria que invariavelmente afasta os velhos deste mundo; fiquei impressionada com a poderosa eloqüência da sua imagem de sobrevivente, de decadência, de solidão, de descaso por parte daquelas silhuetas que riam e conversavam lá dentro. Fiquei dolorosamente comovida e revoltada diante da sua evidente impotência, daquela resignação sem esperança e sem raiva, daquele pote de sorvete surrado no qual comia -por que não lhe deram um prato?- e da colher torta e opaca que levava à boca. Me perguntei que sabor teria aquele mingau, qual seria a sua consistência, se havia sido feito naquela manhã ou requentado do dia anterior, mas com certeza aquilo não era mais importante para ele; bastava poder comer... Me perguntei então como seria para este homem ter de se submeter à boa vontade dos outros, não ter mais o comando da própria vida, não ter um outro lugar no mundo e na história da família a não ser aquele espaço junto da parede, naquele pedaço da área de chão vermelho, ou embaixo da árvore na calçada em frente ao bar, para onde arrastava todo dia aquele mesmo banquinho e ficava sentado por horas a fio, fumando seus cigarros tortos e contemplando a azáfama do mundo ao seu redor com absoluta indiferêncça, talvez com um lampejo de desprezo em sua face enrugada.
Mas naquela manhã em que passei diante da sua casa, não me pareceu indiferente ou mostrando algum desprezo, porém abandonado, vencido, semelhante a uma vela que se apaga devagar, silenciosamente, sem nenhuma dignidade ou alívio, sem ninguém perceber... A sua imagem era tão pungente e sem esperança, que realmente poderia ser utilizada para nos conscientizar sobre o que nos aguarda se não começarmos agora a educar as novas gerações sobre o respeito, o carinho, a consideração e a compaixão que os idosos precisam e merecem para chegar ao fim da sua caminhada com o coração cheio de gratidão e satisfação pela existência que levaram e os feitos que realizaram, ao invés de transbordante de amargura e humilhação pelo nosso esquecimento e egoismo.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Vocação

Estava sentada no sofá do consultório, aguardando a minha vez enquanto folhava uma daquelas revistas de fofocas e considerando a pobreza daqueles textos cheios de gírias estrangeiras e indiscretos números delatando idades e medidas dos famosos, quando uma mulher entrou na recepção, levando um menino de uns quatro anos pela mão e com uma sacola de plástico colorida pendurada no ombro. Ficou um momento no balcão de atendimmento, verificando seu horário, enquanto o menino foi sentar numa das poltronas de vime que tinha ali perto. Acabada a sua indagação, a mulher -que devia ter uns 25 anos e muitos quilos a mais- foi sentar na poltrona vizinha à do menino, falou alguma coisa para ele, que sorriu animadamente em resposta, e em seguida pôs a sacola no colo, a abriu e tirou de dentro um livro de capas coloridas e formato irregular. A esta altura, eu já havia abandonado a leitura de fofocas e desfile de vaidades e estava observando a mulher e perguntando-me como iria manter a criança quieta enquanto esperava a sua vez, pois ela parecia cheia de energia e o consultório cheio de possibilidades para correr, bagunçar e fazer estragos... No entanto, assim que ela tirou da sacola o livro, o menino se ajeitou rápida e ansiosamente nas almofadas macias da poltrona e esperou, olhinhos fixos e brilhantes de expectativa na mãe, a que ela se acomodasse também e abrisse a primeira página do livro. Antes disso, a mulher ainda tirou da sacola um pacotinho de bolachas e um copinho com um canudo, que entregou para o menino com um sorriso no rosto. Em seguida, finalmente -até eu estava começando a ficar ansiosa!- recostou-se na poltrona, abriu o livro e começou a ler a história para o filho... Eu fiquei como que hipnotizada olhando para aquele quadro: a mãe lendo em voz baixa, dramatizando cada frase, seu rosto passando pelas mais variadas expressões, e o filho imóvel, coma bolacha numa mão e o copinho na outra, totalmente absorto em suas palavras e gestos... Percebi então que estava diante de um instante único entre mãe e filho, uma experiência de total intimidade e união, de cumplicidade sem receios ou preconceitos. E percebi também que o responsável por tal feito precioso e verdadeiro era o autor daquele livro de capas coloridas e irregulares. Aquilo era magia, pura magia...
Sorri, tomada por uma curiosa emoção, pois naquele momento lembrei que a minha mãe nunca me contou histórias...
Não me lembro dela sentada na beira da minha cama ou no sofá da sala, ou à sombra de uma árvore no quintal, descrevendo para mim as peripécias de alguma princesa injustiçada por madrastas ou irmãs invejosas, ou os feitos de bravura do príncipe que desafiava dragões e bruxas para resgatar a sua amada de uma torre inatingível. Não a vejo mostrando para mim os desenhos mágicos da lebre veloz ou da tartaruga persistente, do ratinho da cidade e do seu primo do campo, das fadinhas do bosque, do lobo e os porquinhos... Não, a minha mãe não lia histórias para mim, muito menos as inventava, como eu fazia para a minha filha. Ela comprava os livros, as revistas e nos levava ao cinema para assistirmos essas coisas, porém, nada mais acrescentava da sua parte a estas experiências, então eu tive que utilizar meus próprios recursos para aprender a imaginar, a viajar, a me envolver e acreditar nas palavras e imagens que apareciam diante de mim naquelas folhas coloridas ou na enorme tela do cinema.
Eu achava curiosa esta situação, pois sempre me lembrava do que a minha mãe contava sobre a sua infância e adolescência, do quanto ela gostava de ir ao teatro, à ópera, ao cinema, e de como, quando voltava para casa, encenava para os outros tudo que havia visto com todos os detalhes... Infelizmente, com o passar do tempo e as frustrações que se viu obrigada a suportar, parece que toda essa veia teatral, festiva e cheia de imaginação foi sendo sepultada, amordaçada, relegada àquele quarto escuro onde ficaram todos os encantos que ela sonhou desfrutar e que lhe foram tirados em prol da vontade dos pais e do irmão predileto e de um casamento no qual tudo deu errado... Eu entendia escuramente suas razões e não reclamava, pois ao menos ela nos proporcionava o material para que pudéssemos iniciar algum tipo de viagem, de aprendizado sobre imaginação, criatividade e magia, sobre sonhos e esperanças. Ainda me lembro das pilhas de revistas em quadrinhos de todos os tipos que se amontoavam em nossos armários: histórias de santos, de heróis, de fábulas, de romance, de príncipes, de desenhos, de mitologia... Havia épocas em que eram tantas, que podíamos pôr uma banquinha na porta de casa e vender algumas centenas sem detrimento do nosso estoque, pois ela continuava a trazer mais a cada semana, acontecimento que a minha irmã e eu aguardávamos ansiosas.
Foi com essas revistas que aprendi a desenhar, a construir uma história, a criar personagens e paisagens, diálogos, descrições, a procurar caminhos para a minha expressão. E foi nos livros da nossa pequena e entulhada biblioteca -que a minha mãe instalou naquele estreito corredor de casa- onde descobri o fascínio pela escrita, o milagre que aquelas letrinhas miúdas juntas podiam operar no coração de quem as lia, o poder que elas tinham para penetrar e transformar nosso pensamento, as nossas atitudes e objetivos; as portas que iam se abrindo à medida que se avançava na leitura, como o texto podia envolver, transportar para outras dimensões, fazer rir ou chorar mesmo sem ter nenhuma imagem como referência. Não era preciso, pois as palavras por si só, reunidas daquela maneira peculiar, eram capazes de despertar todas as emoções, reflexões e revelações que o autor desejasse, tal era seu poder, a sua intimidade com o leitor. Era como se, ao abrir o livro e começar a percorrer as suas linhas, se fechasse algum tipo de muro dentro do qual só ficassem o autor e o leitor partilhando aquele universo tão especial, tão único, porque -descobri depois- cada pessoa que pegasse um livro e lesse, faria um contato completamente pessoal e intransferível com o que estava em suas páginas, consigo mesmo e com o autor, mesmo que jamais chegasse a ter algum contato com ele... Era algo completamente extraordinário! A chance de poder dizer algo sem impor imagens ou sons, de contar uma história permitindo a quem lia fazer seu próprio quadro escolhendo os rostos, as vozes e os cenários era algo totalmente fascinante e desafiador, pois existia a certeza da infinita diversidade de interpretações e conclusões, todas baseadas na unicidade de cada pessoa que pegasse o texto nas mãos... Havia em tudo isto uma tal concepção de liberdade -tanto para o autor quanto para o leitor- que foi impossível não escolher esta vocação para mim. Ela preenchia todos os requisitos que eu procurava para atingir a minha realização!...
Não há regras para a arte, sei disso, porém, a escrita me pareceu a mais abençoada neste sentido, pois tudo fica numa dimensão na qual a liberdade de escolha é absoluta, tanto para quem escreve quanto para quem lê.
É, a minha mãe nunca me contou histórias, como aquela outra fazia com seu filho, mas, com certeza, ela me deu tudo que era preciso para que eu encontrasse a minha vocação e começasse a escrever as minhas.