sábado, 25 de julho de 2009

A viela

Ontem foi um dia feliz, cheio de encontros, palavras, olhares e surpresas que só encheram meu coração de ânimo e fé, pois percebi que basta dizer "sim" e enfrentar o que nos toca com disposição e otimismo, para que todas as nuvens escuras, as mágoas e receios simplesmente evaporem. Fui de surpresa em surpresa -ou deveria dizer "milagre"?- sentindo-me cada vez mais leve e grata, mais animada e cheia de inspiração; estava, literalmente, nas nuvens!... Até que tive de dizer algumas coisas que não queria para alguém que amo demais, sabendo que a faria sofrer, mas sem poder esconder a verdade... E hoje estou assim, angustiada e arrependida -mesmo consciente de que não falar poderia causar uma dor maior a pessoa- lutando contra o sentimento de culpa e receio que paira sobre mim feito uma sombra. Tento me lembrar do dia de ontem, de todos os presentes que recebi, dos encontros que tive, das descobertas que fiz, do coração leve e sereno, mas está difícil. Parece que a tristeza é sempre mais pesada e poderosa do que todas as alegrías e nos faz esquecer num estralar todas as coisas positivas que nos acontecem... Então, chego à conclusão de que quando se tem um dia como aquele, pleno de pequenas felicidades que nos santificam e nos renovam, precisamos desfrutá-lo e guardar na mente e no coração cada detalhe dele para poder apoiar-nos na sua lembrança nos momentos difíceis. Precisamos estar atentos a estes episódios, pois são breves e raros, feito tesouros sem preço que nos sustentam nas horas negras. Eu espero que o milagre de ontem possa sobrepuxar a minha tristeza de hoje, porém, mesmo que isto não ocorra, sei que tudo que aconteceu e me encheu de felicidade está ainda dentro de mim, vivo e real, e que será certamente um farol nas minhas noites escuras.
E é lembrando um desses tantos capítulos tão especiais com que Deus vive enfeitando a minha vida que posto a crônica de hoje.

Viro a esquina, tomo um longo fôlego e começo a subir pela rua, travando uma luta de puro heroísmo contra o vento gelado que avança contra mim e se enfia cruelmente por cada fresta da minha roupa... É muito cedo e em meu caminho encontro estudantes rumando para a escola, carros apressados com motoristas de cabelo molhado e cheiro de loção pós-barba, catadores empurrando seus carrinhos e fazendo uma animada fila diante da usina de reciclagem, ainda fechada. Enquanto aguardam, contam as suas peripécias e compartilham uma garrafa de pinga e um saco de bolachas, das quais seus fiéis e imundos cachorros pegam também a sua parte... No fim da rua pela qual subo, encolhida e com o coração acelerado, vejo a rodovia e os galpões das pequenas empresas lá do outro lado, caminhões estacionados, um bolo de pessoas tão encolhidas quanto eu embaixo do mesquinho teto do arruinado ponto de ônibus, ciclistas e pedestres dirigindo-se aos seus trabalhos, mais crianças e adolescentes à caminho da escola, cachorros arriscando a vida entre pára-choques e pneus ameaçadores, conduções lotadas e um mar turbulento e ensurdecedor de veículos que parece não ter fim. De um lado e do outro voam, como enlouquecidos, buzinando, cantando pneus, costurando, ultrapassando, ameaçando os pedestres sem o menor escrúpulo desde seus monstros motorizados, sentindo-se deuses cujas prioridades são a coisa mais importante neste mundo.
Abismada diante do espetáculo, paro por alguns segundos e contemplo aquele caos tão perto de mim, perguntando-me fugazmente como é que conseguimos existir e dividir o espaço com toda esta poluição, esta agressão, esta pressa descabida... Porém, não tenho tempo nem disposição para procurar uma resposta. O mundo virou isso mesmo e o melhor que podemos fazer ao respeito é tentar manter o nosso pequeno espaço livre de tudo aquilo, cada um do seu jeito. De repente, se um dia juntarmos todos estes espaços talvez teremos um mundo perfeito, ou pelo menos um bem melhor... Solto um suspiro, perguntando-me quantos desses pequenos territórios seriam necessários para mudar a história da humanidade, e retomo a minha caminhada. Avanço mais alguns metros e finalmente viro na próxima rua. É uma viela estreita e surpreendentemente silenciosa, de um quarteirão só, flanqueada por pequenas casinhas populares de grades e muros antigos, jardins algo desorganizados e carros modestos enfiados quase que com uma calçadeira dentro das garagens cheias de samambaias, avencas e violetas. Alguns ostentam enormes sete-copas, que cobrem a casa quase por completo feito gigantes protetores. Na maioria deles há balançps feitos de corda e pneus, sinos de vento e aqueles bebedouros para beija-flores que parecem margaridas ou rosas. Cachorros velhos e muito limpos fugindo do frio deitados ao sol, que apenas anuncia seu calor, rádio ligado, cheiro de feijão, de bife -provavelmente alguma marmita sendo preparada- vozes animadas, o aroma do café e do pão acariciando a calçada, o motor da máquina de lavar competindo com a cantoria escandalosa dos bem-te-vi, cumprimentos de uma calçada para a outra... Naquele pequeno e modesto pedaço de paraiso todos se conhecem e parece que moram ali desde sempre. Não há crianças -fora os netos que aparecem nos finais de semana- então o ambiente é sereno e cheio de uma acolhedora rotina que enche os dias de paz e certeza. Vozes baixas, gestos mais lentos, conversas banais, partilha de pequenas novidades, às vezes a reza de um terço no fim da tarde, uma troca de receitas, a lavagem da calçada... Hà o casal de japoneses, já muito velhos, que mora na casa da esquina e coleciona tudo que é jornal e revista. Têm uma antena de televisão no telhado, mas ao que parece, ambos preferem sentar comodamente nos sofás gastos da minúscula e entulhada sala e, escolhendo minuciosamente entre seus tesouros, passar o tempo livre lendo. Há o executivo, já maduro, que mora na outra esquina e que toda manhã, após tirar seu pequeno carro da garagem -que é também a área de serviço- arruma cuidadosamente as cadeiras de metal, alinhando-as contra a parede, coloca a máquina de lavar na tomada e o tapete na porta de entrada para só depois entrar no carro e ir embora. Há a numerosa e algo desorganizada família na casa do fim da rua, onde sempre há alguém entrando ou saindo, bicicletas no portão e roupas no varal: muitas calças, lençóis e toalhas, tênis, meias e camisas, o que me diz que há uma maioria masculina morando ali, fato que explica a falta de ordem, de plantas e de cortinas nas janelas... Há a velha senhora e seu velho cãozinho, ambos de cabelos já brancos e andar lento e um pouco travado, que cultiva café no jardim da frente e o torra no pequeno forno de tijolo e metal nos fundos, impregnando a rua com o delicioso aroma dos grãos girando dentro do recipiente. Ela está sempre conversando com o cachorro, contando-lhe as novidades, pergutando-lhe coisas, comentando as notícias da televisão, segredando-lhe seus planos e sentimentos; e ele a escuta sem piscar nem tirar dela os olhinhos já embaçados pelas cataratas, abanando o rabo e seguindo-a por todo lugar, todo alegre e satisfeito por saber-se seu único e fiel confidente... E tem a casinha verde na qual, acabei de descobrir, mora o "Patinhas", um cachorro mistura de salsicha com vira-latas que, vira e mexe, está perambulando pela vizinhança, cheio de energia e bom humor, anunciando sempre a sua presença pelo barulho das suas patinhas no asfalto (por isso lhe dei esse nome, pois na verdade, nunca vi seus donos, então não sei como se chama) Na casa ao lado mora aquele senor alto e corpulento, já de idade, rosto afável e grossos óculos, que está sempre mexendo com o jardim, podando um galho aqui e cavando um canteiro lá, serrando a árvore da calçada da frente para que ninguém bata a cabeça ao passar, pendurando uma orquídea nova na área ou passando uma mão de tinta no muro manchado pela chuva. Logo cedo pega a tesoura de podar, a lata de tinta ou a enxada e já está lá fora, olhando com ar crítico a sua última obra, às vezes com um copo de água ou de café numa mão e o boné do Corinthians na outra...
É apenas uma rua, uma viela estreita e calada que quase ninguém deve conhecer, insignificante se comparada ao tamanho da cidade, com poucos moradores, todos velhos e aparentemente sem graça, sem nada para dizer ou ensinar a nós, que habitamos no mundo além desta ruazinha que parece tirada de algum livro, um mundo agitado e sempre cheio de novidades, de competição, de poder e lutas, barulhento, vertiginoso, feroz, insensível... Uma rua velha e anônima que me recebe toda manhã quando viro a esquina, ainda assustada pela visão quase infernal da estrada e seu movimento insano, e me abre seus braços tranqüilos e amigos, uma rua onde me sinto acolhida, segura, equilibrada, onde encontro pessoas verdadeiras e singelas levando as suas vidas pequenas e discretas, porém plenas. Este quarteirão me coloca novamente no que deveria ser o mundo real, a vida real, as pessoas reais, pois a sua experiência e a sua solidez, as escolhas de quem mora bela provêm de histórias ricas e simples que serão vividas até o último dia com a mesma honestidade e singeleza de hoje.
As casas, as árvores, as calçadas, os cheiros, os gestos e as vozes não significam somente companhia e solidariedade mútua entre estes vizinhos, mas um gole de renovação e lucidez no início de cada um dos meus dias.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O melhor amigo

Esta semana andei vendo algumas coisas que me deixaram tão revoltada que decidi escrevê-las aqui ao invés de sair por aí atirando pedras em alguns monstros... E acreditem, como tem destes monstros! Pois da mesma forma em que tenho meu altar de santinhos anônimos, também tenho um purgatório destas criaturas desprezíveis que mereceriam uma boa punição para ver se aprendem -ou voltam- a ser pessoas com um coração batendo no peito... Julguem vocês mesmos e pensem em quantas vezes já se depararam com o que vou descrever nesta crônica.

Se existe uma coisa que me revolta além de qualquer limite ou descrição, é o fato de ver um cachorro preso ou, pior ainda, quando está preso em condições miseráveis.. Corrente enferrujada de mais ou menos um metro de comprimento enroscada num poste do quintal pelado, sem nenhuma sombra para se proteger no calor escaldante do verão ou nenhum abrigo contra o frio e a chuva do inverno, sem bacia com água ou comida, só restos azedos e infestados de formigas esparramados no chão, e o cachorro ali, refém, sob o sol, na chuva, no frio, impossibilitado de se movimentar, de mudar, de escapar à tortura da intempérie, da sede e da fome, da ausência de uma voz amiga ou de um afago. Liberdade tolhida pelo capricho desumano daquele que se diz seu dono, seu melhor amigo...
Corrente presa num arame de aço rente ao muro áspero e quente que atravessa uma parte do quintal, já imunda pelas fezes e a urina do animal, e o cão resignado, deitado em cima da sua própria porcaria, ou então fazendo infinitas, desesperadas vezes aquele mesmo percurso, sem nenhuma outra opção, moendo a grama ou descascando a tinta ou o cimento do chão em seu interminável ir e vir sem perspectivas. E o dono ainda se acha bondoso e justo por deixar-lhe aquele mísero circuito para esticar as patas...
Cachorro que come restos estragados, frios, ossos pelados ou nacos de gordura, sopa de pão; que tem a pelagem infestada de carrapatos e pulgas, de barro e carrapichos e feridas no pescoço de tanto puxar a corrente, os pêlos grudentos por falta de um banho, que mostra as costelas e a barriga funda como testemunho acusador da falta de cuidado...
Correntes, grades, arames, postes, barro, lixo, fome, sede, exploração... e o cão ali, obediente e leal, resignado, ignorante da crueldade da qual é vítima -pois não conhece outra vida- submisso, ainda abanando o rabo para o monstro que tem a coragem de se auto-denominar seu dono e que só o liberta do seu jugo à noite, para que vigie o quintal e afaste qualquer ameaça que possa se aproximar da sua família e seus bens. Deixa-o à mingua de alimento e carinho para aumentar a sua ferocidade e ainda o maltrata de mil maneiras sutis para torná-lo agressivo e desconfiado, achando que assim terá um verdadeiro e eficiente cão de guarda...
Cachorros abandonados sem remorso em rodovias e ruas afastadas, em datas vazias, dentro de sacos plásticos de lixo amarrados para que não possam escapar e retornar para casa. Cães maltratados, castigados, esquecidos, afastados da noite para o dia das famílias que os adotaram porque cresceram demais, são bagunceiros ou têm muita vacina para tomar, porque precisam de um passeio e de um banho de vez em quando, porque foram provocados e deram uma boa mordida no agressor, porque ficaram feios ou doentes, sofreram algum acidente e precisam de cuidados para se recuperarem, porque estão velhos e achacosos, não brincam nem cuidam mais da casa direito, porque espalham pêlos, porque latem, cavam buracos ou comem as orquídeas... ou, a pior e mais cruel das razões: porque o dono, simplesmente, cansou dele e assinou a sua sentença de morte sem sequer piscar...
E mesmo assim, até o último instante, estes animais continuam fiéis e amorosos com seus algozes. É inacreditável como seu afeto vai além de todos os descasos, maus tratos, caprichos e privações absurdas às quais são submetidos, isto sem que seus donos tomem o menor conhecimento desta proeza...
E eu me pergunto: será que o nosso amor resistiria a tanto? Será que perseverariamos em nossa fidelidade, obediência, alegria ou cumplicidade desinteressada se recebéssemos tal tratamento? Poderiamos ter esse olhar de amor sincero e incondicional durante anos e anos ao encarar alguém que mais parece o nosso carcereiro? Poderiamos ser companheiros solidários do nosso inimigo, lamber a sua mão e abanar o rabo toda vez que ele aparecesse, mesmo que fosse para botar uma corrente em nosso pescoço ou acertar-nos com a vassoura ou o chinelo?... Acredito que isto seria impossível, não só porque temos o raciocínio e o bom senso suficientes como para nos afastar de pessoas assim, mas porque os humanos não maltratam tanto quem amam quanto maltratam um cachorro que os ama.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A porta

Definitivamente, decidir tomar uma atitude -qualquer atitude- com respeito a uma situação determinada, procurando saídas positivas e que de alguma forma irão enriquecer a nossa vida, é a coisa mais certa a se fazer. Não importa quão ruim algo possa nos parecer em algum momento, sempre poderemos fazer com que a experiência termine sendo proveitosa, mesmo tendo que aprender através da dor (que não dura para sempre). Sem dúvida -e eu o tenho comprovado- sempre, sempre existe um ponto positivo, um lado iluminado, uma vantagem, um detalhe pelo qual vale a pena continuar sorrindo e acreditando. Parece meio papo furado, mas acreditem, é a mais pura realidade. Na noite mais escura e fria ainda existe uma partícula de luz e um hálito de calor, mas precisamos acreditar nisto e procurá-lo de coração, alcançá-lo e desfrutá-lo com profunda gratidão e fé. Assim, por mais fundo e medonho que seja o buraco no qual nos encontramos aprisionados, seremos capazes de sobreviver e retornar à superfície, à felicidade, ao equilíbrio. A coisa é não desistir e, feito a menina Pollyanna, tentar encontrar sempre em tudo algo pelo qual ficar feliz.
Esta pregação toda não é de graça, acreditem, mas o resultado da minha própria vivência nestes últimos tempos tão difíceis e cheios de frustrações e humilhações profissionais, pois seguindo meu próprio conselho tenho conseguido ir em frente com otimismo e criatividade e continuar agradecendo cada amanhecer e cada pequeno presente que Deus põe em meu caminho... Porque nada acontece em vão. Nada, mesmo.
E agora, aqui vai a crônica desta semana, comprida, como sempre:

Todo dia eu cruzava com ela durante a minha caminhada matinal, mais ou menos no mesmo lugar, na área sombreada e barulhenta do posto de gasolina na avenida. De longe a avistava, enfronhada em seu casaco marrom, o cabelo preso num rabo meio despenteado, a bolsa no ombro e uma sacola na mão, os mesmos sapatos pretos, já meio deformados e sem brilho, e aquele seu andar que pendia para um lado, como se quisesse adivinhar de antemão o que havia na virada da próxima esquina. Passadas rápidas e automáticas, firmes apesar da aparente falta de equilíbrio, boca apertada num gesto de severidade que era complementado pelo seu olhar de cenho franzido e pupilas esquivas... Eu já a conhecia, era mãe de uma das alunas da escola de ballet da fundação e sempre passava por ela à caminho da minha sala de desenho, sentada sozinha na mureta do espelho d'água, aguardando a filha salir da aula. Ela e outras mães estavam sempre por ali tricotando, conversando, fazendo confidências domêsticas e comentando o último capítulo da novela, trocando receitas e comparando o progresso das filhas e a eficiência das professoras. Ao vê-las, dir-se-ia que eram velhas amigas tendo seu encontro semanal do clube da Luluzinha, tão animadas e alegres se mostravam. Mas ela, do outro lado do barulhento grupo, permanecia quieta e silenciosa, mexendo em alguma coisa dentro da sua velha e descascada bolsa, ou nos bolsos, cabeça baixa, joelhos juntos e pés para dentro... Aliás, toda ela parecia estar virada para algum lugar distante e muito bem protegido dentro dela: mãos enlaçadas ou ocupadas perto do corpo, costas vergadas para frente, ombros encolhidos, pescoço inclinado, rosto virado para o colo, braços colados ao tronco. Parecia que a sua figura franzina era grande demais para caber no espaço em que se encontrava, ou que alguma força invisível a obrigasse a permanecer toda encolhida, comprimindo-a como se tencionasse fazê-la desaparecer das nossas vistas... Porém, apesar deste seu gritante isolamento -que as outras mães entendiam como uma placa luminosa de "afaste-se, não quero papo" ,e respeitavam sem questionar- eu a apanhei algumas vezes espiando muito disfarçadamente aquele grupo risonho e falante que enchia o ar com as suas vozes e espaventos a poucos metros dela. Sem ela perceber, seu corpo inclinava-se na direção da roda de mulheres e o pescoço se esticava alguns milímetros na tentativa de escutar a conversa; as mãos cessavam seu interminável faz-de-conta e ficavam no colo feito antenas, dedos abertos e rígidos na tensão de descifrar as palavras que conseguia apanhar... Desde a janela da minha sala, protegida pela sombra do interior, eu observava a mulher, tentando entender por que não se levantava dali e se aproximava do grupo de mães, integrando-se à conversa, já que nada parecia impedi-la. Mas ela estava simplesmente petrificada, endurecida do mesmo jeito que caminhava pela rua em minha direção toda manhã, cara fechada e olhos cheios de receio, quase agressivos, como que avisando: "Não me encara não, porque te dou uma porrada!". É claro que, feito aquelas mães, nunca fiz sequer menção de cumprimentá-la, mesmo conhecendo-a, pois não queria invadir a sua fortaleza sem ser convidada nem saber as conseqüências que esta iniciativa me traria... Mas então, por que ela estava ali, esticando-se toda para participar, nem que fosse de longe, da animada reunião das outras mães? O que estava faltando para que saísse da mureta e fosse conversar com elas? Qual era o sinal que precisava? Será que ela enxergava uma outra fortaleza inviolável -fora a dela mesma- no grupo de mulheres à qual não se aproximaria sem ser convidada?... Olhei para elas, mas não me pareceram em absoluto ameaçadoras ou pouco acolhedoras. Totalmente intrigada pelo que acontecia, fui até a porta da sala para observar melhor. A mulher continuava na mesma postura, mas notei que havia mudado ligeiramente de lugar, deslizando alguns centímetros pela mureta em direção do grupo. Eu, simplesmente, não estava acreditando!...
Então, de repente, num estalo, entendi o que estava acontecendo: aquela mulher -por alguma razão que eu desconhecia, mas que devia ser muito forte- estava tão fechada dentro de si mesma, que se alguém não viesse abrir a porta para ela, seria capaz de ficar ali pelo resto da sua vida, mesmo com toda aquela vontade de sair que a cada segundo a delatava... Mas, como se abria a porta? Qual era a chave? E era para escancarar, ou tão só entreabrir para não assustá-la?... Mas no momento em que criava coragem para tomar alguma atitude, a porta da sala de ballet se abriu e um tropel de menininhas, todas de collant rosa e coque enfeitado de flores, saiu feito a cavalaria ao resgate, gritando e pulando, arrastando sacolas, agasalhos e roupas, subiu a rampa da garagem e correu em direção ao grupo de mães, A mulher, sobressaltada pelo barulho, empertigou-se como que pega num ato reprovável, e se virou rapidamente em direção da sua filha que, saltitante e de faces vermelhas, se aproximava rindo. A acolheu com um breve beijo, pegou a mochila dela, segurou na sua mão e, sem dizer nada nem olhar para ninguém, afastou-se apressadamente pela rua abaixo, sumindo da minha vista num piscar... Eu olhei em volta, para as mães e as suas filhas naquele alegre reencontro, e de pronto me pareceu que aquela outra mulher jamais estivera sentada na mureta, tão invisível aos nossos olhos fazia questão de ser.
Porém, não parei de pensar nela no resto do dia e ainda antes de dormir achei que tinha entendido qual era a porta -uma bem pequena, por sinal- que eu poderia abrir para ela. Dependia de quando seria a próxima vez que nos encontrássemos.
E foi, justamente, no dia seguinte, na mesma hora e no mesmo local, o posto de gasolina da avenida. De longe a reconheci e, respirando fundo, me preparei. Pensei em tirar os óculos escuros, mas achei que ela talvez não se sentisse capaz de enfrentar meu olhar, então fiquei com eles... "Isto está parecendo mais um assalto!", pensei, enquanto a mulher chegava mais perto. Me empertiguei e preparei o mais simpático dos meus sorrisos e, no segundo em que ela cruzou comigo, olhei em seu rosto e soltei o "Oi, bom dia!" mais casual e relaxado de toda minha vida, do jeito que o diria se a encontrasse todo dia e ela fosse uma das minhas melhores amigas... Pega totalmente de surpresa, a mulher quase parou, saiu do seu ritmo, até endireitou o corpo e fixou seus olhos espantados nos meus por uma fração de segundo. Em seguida, num misto de tensão e alívio e com uma levíssima pincelada de prazer na expressão, me respondeu com um apagado "Bom dia" que só Deus e eu escutamos, e continuou seu caminho. Eu, tão surpresa quanto ela pelo êxito da minha empreitada, continuei o meu sentindo-me o próprio super-homem. E enquanto terminava a minha caminhada com uma alegre leveza estalando em meu peito pensava: "Quantas vezes a porta para trazer alguém para o mundo não é mais do que um simples e descontraido "Oi!" Por que estamos sempre esperando que o outro dê o primeiro passo? Por que não arriscar e estender a mão primeiro? Quantas pessoas vivem atrás de portas, paredes, redomas, olhando com ânsia e frustração para o mundo lá fora, mas sem coragem de se aventurar nele sem o apoio de alguém? Quantas estão esperando por ese "Oi!", esperando a que lhes abramos a porta e as convidemos a sair, a partilhar, a descobrir junto conosco? Quantas sentem-se incapazes de dar o primeiro passo e ficam ali, dependendo da nossa sensibilidade e boa vontade para começar a fazer parte da história, para viver a sua própria aventura, que talvez seja muito mais importante do que poderíamos imaginar?... Quantas vezes nosso coração murmura: "Vai, estenda a mão, cruze a fronteira, diga algo, demonstre o que sente, dê uma chance!" e nós o ignoramos porque achamos que vai nos dar muito trabalho, vai nos comprometer, vai nos roubar tempo e talvez até dinheiro. Viramos as costas e nos afastamos sem sequer considerar a possibilidade de abrir essa porta, de fazer esse gesto mínimo -um "Oi!", um sorriso, um olhar- que poderia tirar alguém da solidão e o silêncio e trazê-lo para a vida.
Continuo cruzando todo dia com a mulher, e continuo a cumprimentá-la alegremente. Nem sempre ela me responde, mas seu olhar sempre encontra o meu, por uma fração de segundo, e posso ver nele uma pequenina luz, o minúsculo clarão que meu: "Oi, bom dia!" acende nele e isto já me deixa feliz, porque tenho certeza de que, com o tempo, dessa faísca pode nascer uma labareda que será capaz de iluminar e aquecer todo seu mundo e abrir definitivamente a porta da sua prisão.

sábado, 4 de julho de 2009

O homem paralisado

Este fim de semana está sendo meio tumultuado, como podem ver, então somente hoje consegui sentar aqui e postar a crônica desta semana. A minha filha está finalmente de férias -e eu também, pelo menos das aulas nas escolas- então aproveitamos para fazer um programa ontem e fomos almoçar fora, depois ao cinema e finalmente fizemos algumas "compritas" (ai, meu Deus, mais contas!). Quando chegamos eu estava tão cansada e eufórica -pois fazia mais de seis mêses que não conseguiamos sair juntas por causa dos nossos trabalhos (ela é repórter de tv) que não tive fôlego nem inspiração para ligar o computador e menos ainda para digitar uma só linha... Mas valeu a pena, acreditem!... Porém, hoje volto às minhas obrigações. Ou achavam que iria deixar vocês sem a crônica semanal?... Então, aqui vai:

Todo dia, quando passo em frente à casa, ele já está sentado na sua cadeira de vime lendo o jornal, o andador de um lado e, numa mesinha ou um pouf verde, a sua xícara de café ou a lata de cerveja. É um homem alto e corpulento, de cabelos compridos e já ralos e olhos claros, sempre vestido de bermuda, camiseta e chinelos nos pés castigados pela doença que quase o impede de se locomover. Quando volto do trabalho no fim da tarde, ele continua lá, esparramado na cadeira, umas horas cochillando, outras bebendo cerveja, lendo ou simplesmente olhando para o nada enquanto a mulher, na cadeira vizinha, faz tricô, costura ou brinca com a cadela, que está sempre seguindo-a e querendo a sua atenção... Às vezes conversam, outras partilham o jornal, cumprimentam os vizinhos ou cruzam algumas palavras com o filho. Porém, o normal é que permaneçam em silêncio ou que ele fiique sozinho na varanda enquanto ela se ocupa com os afazeres lá dentro. Faz alguns anos que se mudaram para aquela casa da esquina e, no início, o homem saía para caminhar, ia até o centro e era capaz de dirigir o carro, mas com o passar do tempo, a doença foi reduzindo-o à quase invalidez e hoje só se locomove penosamente com a ajuda de um andador e só pelo interior da casa. O resto do tempo, está sentado naquela cadeira de vime na varanda, olhando a vida passar.
Quando encontro com ele pela manhã, ao sair para fazer a minha caminhada, ainda posso distinguir uma faísca de interesse e ânimo em seu olhar, mas quando regresso de tarde, a visão com que me deparo é a de alguém atordoado, tomado por uma modorra invencível, caido na cadeira, pernas abertas, cabeça ladeada, totalmente apagado, fisica e espiritualmente... O cumprimento, como sempre, mas às vezes ele nem sequer repara em mim, nem escuta a minha voz -ou qualquer outra coisa ao seu redor- e continua imerso em seu torpor e imobilidade... Ao virar a outra esquina e entrar na minha rua, ainda com a sua imagem em minha cabeça, costumo me perguntar que tipo de vida leva uma pessoa em suas condições, obrigada a permanecer parada quase que o tempo todo, olhando sempre a mesma paisagem, precisando de ajuda para se levantar daquela cadeira e entrar na casa ou ir a qualquer outro lugar, passando a maior parte do dia sozinho na varanda com seus pensamentos e sentimentos. Me pergunto se aprendeu a tirar algum proveito da situação ou se, simplesmente, foi engolido por ela e vive semi-inconsciente o tempo todo. Nunca o vi fazendo algum trabalho manual, recebendo um amigo, batendo papo com o filho, sendo carinhoso com a mulher. É como se morasse num casulo silencioso e escuro que não lhe permitisse contato com o mundo exterior. Mas, trancou-se ali por vontade própria, vítima da frustração, da mágoa, da auto-piedade, da indiferença? Foi incapaz de vencer a imobilidade em que foi forçado a viver e perdeu o interesse pelas coisas e pessoas que existem ao seu redor? Pretende apagá-las da sua rotina assim como sente que ele próprio foi apagado pela enfermidade? Qual a sua reação diante do desafio que enfrenta?... Ou não há reação alguma? Me sinto curiosa por saber como é este homem paralisado, o que pensa, o que deseja, o que o motiva, as coisas que tem aprendido ao longo da sua provação, se teria alguma lição para me ensinar... Então penso em nós, pessoas normais, que podemos andar por aí à vontade, sentar, levantar, correr, subir, pular ou, simplesmente, permanecer parados no meio da praça, ou observando uma vitrine, na fila do mercado, na igreja, na padaria enquanto aguardamos o pão quente sair. Penso em como -e talvez por termos tantas possibilidades de movimentação- deixamos tanta coisa passar, descartamos tantos sentimentos, tantas percepções, tantos encontros. Passamos velozes e despreocupados pelas lições, pelas pessoas, pelas palavras e os gestos, pelos milagres que nos cercam, pela felicidade e a paz. Talvez precisássemos de um par de dias sentados numa cadeira de vime, feito este homem que não tem outra escolha, sozinhos numa varanda da manhã até à noite, para aprendermos a parar -fisica e mentalmente- e dar-nos conta de que estamos vivos, de que existe um mundo de pessoas, paisagens, vozes, acontecimentos e desafios que não deveríamos desperdiçar, pois são somente nossos, feitos para nós, e que estão ali aguardando a nossa participação para que a história se torne mais completa, mais humana, para que tenha a chance de um futuro melhor.
O homem paralisado me lembra que eu posso me mover (sorte minha!) porém, também me lembra que preciso parar de vez em quando -ao menos uma vez por dia- para sentar naquela cadeira de vime, sob a sombra do alpende, e observar o mundo passando: os filhos crescendo, a mãe envelhecendo, a revoada de andorinhas e o cachorro deitado ao sol, o significado da expressão na face do meu amigo, a chegada das estações, o toque do ser amado, as vozes dos que passam diante da minha porta, o olhar dos que venceram e dos que fracassaram, porque tudo isto faz parte de mim, da minha essência, e porque com certeza um outro alguém está me observando também e, quem sabe, aprendendo comigo.
Não tenho medo de parar, e ntão, porque tenho a certeza de que poderei continuar a me movimentar depois, e de que esta parada não obrigatória não será -como no caso do homem do andador- o final da minha caminhada, mas sempre um recomeço.