segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Um novo batismo

Bom, e finalmente, após dois dias ficando vesga e com dor nas costas de tanto fazer cruzadinhas na sala vazia, estou de férias!... Hoje, oficialmente, começa meu mes de decanso, mesmo se, na verdade, parei de ir na Fundação na quinta-feira da semana passada por conta do feriado de natal. Mas também por conta das festas, almoços, compras de última hora e pencas de parentes e suas crianças correndo e gritando pela casa, somente hoje estou começando a curtir o descanso, a volta à dieta e a retomada da minha rotina literária, graças à Deus!... Adoro meu trabalho, mas já não estava agüentando mais! Agora não quero pensar em peças, em alunos, em projetos, horas extra ou qualquer coisa que tenha a ver com trabalho. Durante este mes pretendo esquecer que ele existe para me dedicar somente ao descanso, à escrita e a recuperar a minha saúde. Espero que a minha consulta do dia 10 ajude nisto e que saia de lá com algum diagnóstico e, melhor ainda, com um tratamento que alivie ou -oba!- elimine estas dores (hoje, por exemplo, a coisa está feia!)... Então, até lá, a coisa é segurar a onda e aproveitar da melhor forma possível os dias criando, meditando, passeando, escutando música e assistindo filmes.
    Então, para começar, aqui vai a minha primeira crônica de férias. Só espero poder manter o ritmo quando voltar ao trabalho, sobretudo se as predições do meu chefe se cumprirem e eu tiver que trabalhar mais horas... Mas, por enquanto, não estou nem aí!...


    Estou sentada num dos bancos da praçinha que fica perto de casa, sob a sombra sussurrante de um ipê florido, e à minha volta nevam flores cor-de-rosa. Caem silenciosamente, uma, duas, quatro, cada vez que o vento faz os galhos estremecerem... As pessoas passam apressadas pela calçada em frente, rumo ao mercado, sem reparar na beleza do asfalto semeado de flores, imersas em seus pensamentos e preocupações. Olho para elas desde meu lugar e por um instante me sinto em outra dimensão, uma espécie de fantasma de outro plano que existe e age numa época e numa velocidade completamente diferentes, que tem olhos e ouvidos exageradamente atentos e perceptivos, cujo corpo pussui uma densidade, um propósito distinto daqueles que passam por mim... Afasto o olhar da rua e o deito sobre o parquinho à minha esquerda, onde algumas crianças correm, brincam, balançam e inventam aventuras e desafios entre os brinquedos de metal velhos e depredados. Apesar disso e dos buracos na grade de arame, da terra suja e do lixo -que aproveitam para criar armas, veículos ou baús de tesouros- eles brincam e se divertem como se estivessem no melhor parque do mundo, cheios de energia e criatividade... E de repente lembro de mim mesma e da minha irmã, quando morávamos naquela base aérea no norte do Chile, em pleno deserto, brincando nos trilhos do trem que, feito dois riscos solitários numa página vazia, se perdiam no  horizonte de sedosas dunas amarelas. Ou então descendo até a imensa praia deserta naquele e sacolejante micro-ônibus, espiando o espaço além dos penhascos pelas suas pequenas janelas empoeiradas, com pressa de chegar lá embaixo para procurar conchas e peixinhos nas águas rasas e cristalinas... Como brincávamos então! O mundo todo nos pertencia e estava repleto de aventuras, desafios e descobertas! O deserto, a base de casinhas de madeira com jardins murchos e pequenas hortas heroicamente mantidas com a água racionada dos tonéis, aquela imensidão de areia e água azul eram nosso reino e nele nos sentíamos seguras e motivadas a criar, a explorar, a sonhar... Olhei novamente para as crianças no parquinho e de repente me perguntei quando, como e por quê os adultos esquecemos de brincar. Por que ao crescer precisamos olhar para as crianças para nos lembrar de como é, pois de alguma forma, em algum canto escondido e quase esquecido, sentimos falta das brincadeiras. E, mesmo assim, nos envergonhamos de acompanhá-las, de abrir a pequena porta do seu universo e nos aventurar nele. Será que nos assusta a inocência, a credulidade, a cara limpa, a ação direta, a palavra pura? Será que estamos tão poluídos que achamos que não merecemos um novo batismo? Será que estamos tão fatalmente convencidos de que não temos mais tempo, de que as nossas chances acabaram, de que a maturidade não inclui o deslumbramento, a criatividade, a ingenuidade, a honestidade que tínhamos quando crianças? Será que preferimos acreditar que toda a magia acabou e que agora só podemos lidar com uma realidade dura e seca?.... Por que crescer tem de ser algo tão ruim? Por que tudo  que é especial precisa ser abandonado pelo caminho, ao longo do processo de amadurecimento? Por que não podemos guardar -e usar- uma parte da nossa infância para nos sustentar, para nos inspirar, para buscar a felicidade quando envelhecemos? De que adianta o perdão de Deus se nós mesmos não nos perdoamos por crescer e virar estas pessoas cheias de mágoa, receio e ceticismo?... A nossa infância e o que trazemos dela é o alicerce do nosso futuro. É com seu material que construímos o que somos, o que sonhamos, o que ensinamos e partilhamos. Pode não ter sido sempre perfeita, mas a chama da inocência, da fé e da criatividade que a sustentou é algo que não podemos permitir que se apague quando  crescemos.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Pés e sapatos

Este negócio de fim de ano é mesmo legal, porque tem tanta comemoração, confraternização, tanto almoço e festinha de amigo secreto que mal se trabalha e podemos escolher à vontade  o horário no qual vamos fazer nada no escritório. Assim estou eu -e por isso estou tendo tempo de postar esta crônica em dia- porque como agora só tenho como trabalho real as apresentações à noite na praça, o resto é só cumprir horário fazendo cruzadinhas na sala, dar umas voltas por aí, bater papo furado com os outros e escutar música deitada nos colchonetes enquanto o tempo passa. Todas as outras áreas encerraram as suas atividades -também por causa daquele rolo político-legal- então sou a única que ainda tem alguma coisa para apresentar, o que significa vir aqui somente para isso, porque as minhas aulas também acabaram. Só falta a nossa confraternização, que será nesta terça no fim da tarde; depois só nos encontraremos novamente no ano que vem, e vamos ver quem é que volta, porque todo mundo jura que vai continuar, mas aí acabam pintando empregos, cursinhos, viagens ou faculdades e todos os planos vão por água abaixo. Por isso prefiro não me antecipar e esperar para ver quem é que vai estar aqui mesmo... Quarta e quinta (meus dois últimos dias) irei trabalhar de manhã, assim poderei ficar em casa a tarde toda descansando, escrevendo e curtindo um par de massagens relaxantes, que estão sendo ótimas para amenizar um pouco estas dores.
E como estou com todo este tempo extra, quero aproveitar para postar as crônicas em dia e avançar outro pouco na história de "Silvestre", da qual já publiquei mais uma parte e hoje ou amanhã pretendo postar uma outra. Passem por lá para conferir... É engraçado, mas outro dia percebi que eu falo desta história e do blog onde está sendo postada, mas sempre me esqueço de dizer o endereço do mesmo, porque, é claro, nem todo mundo que entra aqui é leitor assíduo, então pode não saber de que diabos estou falando. Portanto, aqui vai o endereço, para os leitores de primeira viagem: pazaldunate-estorias.blogspot.com... Agora sim, né?... Então, vamos à crônica desta semana:


    Caminhando pela rua cruzo com uma infinidade de pessoas de todos os tipos, idades e classes sociais, umas bem apessoadas, empertigadas em seus ternos ou vestidos de grife, superiores dentro de seus carros último modelo, ágeis,  bem penteados e com óculos escuros que escondem seus olhares. Outras são humildes, opacas, de andar macilento e cabeças baixas, roupas surradas e bolsas antiquadas, rabos de cavalo, coques mal feitos, feições cansadas, apagadas, carregando um peso invisível que parece superior às suas minguadas forças de trabalhadores mal pagos. Algumas são joviais, esportivas, despreocupadas, vestem-se de cores alegres e caminham com firmeza em direção a algum objetivo perfeitamente definido. Quando cruzam conosco nos olham direto, sem receio, com olhos brilhantes e confantes, como que proclamando a sua sorte, a sua saúde, seu amor, seu futuro. Não têm a intenção de despertar a nossa inveja nem a nossa admiração, mas tão somente de se mostrar, se tornar reais neste mundo tão feroz e calculista, dizer que estão fazendo a sua parte e que têm confança no futuro que os aguarda... Roupas, cabelos, bolsas e acessórios, carros e casas mostram quem são cada um destes personagens; tom de voz, olhar, jeito de andar, gestos e cenários, tudo isto são dicas, vitrines da suas personalidades, dos seus anseios, dos seus processos. Mas eu acho que tem algo que mostra, melhor do que qualquer coisa, quem somos: os nossos pés e os nossos sapatos.
    Já passei pela rua e vi, surrado, disforme e descolado, um solitário sapato abandonado na sarjeta. Sozinho, sem cadarços, a sola carcomida, já sem cor, castigado pelo sol e pela chuva, desprezado após ter dado seu último passo no pé de quem viveu muita coisa com ele. O companheiro fiel e sem mágoas de alegrias e desgraças, de festas, estudos, passeios, de aniversários e velórios, de anos de trabalho, agora jazia ali, esquecido, como se jamais tivesse feito parte da vida de alguém, sofrendo o imerecido castigo por ter se acabado e perdido e forma e a cor, por ter saído de moda, pelo dono ter juntado um dinheiro -ou recebido um aumento- para comprar um outro par mais moderno, mais bonito, mais de acordo com as mudanças em sua vida... E nem sequer seu outro par estava estava junto para consolá-lo ou fazer-lhe companhia! Qual seria seu destino final?... O lixão, a data vazia, a sacola de plástico, o bueiro... Ou então, se tivesse sorte, os pés de alguém mais pobre e necessitado do que seu antigo dono, que acharia que ainda dava para usar, lhe enfiaria uns jornais na sola e sairia andando por aí, feito o rei da Pérsia. Seria como a sobrevida de um doente terminal: um dia a mais é lucro.
    Á partir daquele dia, não consigo mais passar por alguém sem dar nem que seja uma olhadela breve nos seus sapatos. E quanta coisa podemos descobrir nesta espiada!... Uma mulher vestida com saia chamativa e decote ainda mais, maquiagem pesada, brincos, pulseiras e anéis em profusão, pronta para um encontro duvidoso, porém com sapatos velhos e meio deformados, unhas do pé com o esmalte lascado, a suspeita de um joanete despontando, calcanhares rachados e escurecidos... O homem de calças gastas e manchadas, camiseta furada e boné de algum partido político cobrindo os cabelos ralos e sujos, botinas sem meias, entortadas para dentro, respingadas de tintas de todas as cores, as ponteiras descolando, o salto gasto pelo jeito arrastado de andar, talvez fruto de uma cansera sem fim... A rapaziada que passa pela calçada e senta nos bancos da praça fazendo aquela algazarra, perturbando de propósito os transeuntes com as suas piadas e gargalhadas escandalosas; roupas descoladas e cabelos exóticos, piercings e tatuagens, a sua gíria ininteligível, seus mil anés, pulseiras e colares, exibindo seus tênis berrantes, ou então os saltos com plataforma, as sandálias com strass, aquela confusão competitiva e insolente de modelos e cores, de auto-afirmação, de identidade tribal, de unicidade; os símbolos na pele espiando por trás das meias e entre as camisetas. Pés desafiadores, nem sempre muito limpos, fortes e agressivos, de passadas firmes e decididas, bem plantados no chão que eles reivindicam como seu... A freira discreta e de expressão sempre amável e acolhedora, com seu véu e seu hábito cheirando a sabão, a lavanda, a coisa santa e transparente, impecavelmente limpo e passado, de meias e sandálias ou mocassins pesados, antiquados -daqueles que achamos nas liquidações ou nas pontas de estoque de lojas baratas- que a deixam ainda mais simples e sem graça, mas que são a sua prova de humildade, seu testemunho da ausência de vaidade, de obediência e desinteresse pelas coisas mundanas... A balconista, que defende com unhas e dentes a saúde dos seus pobres pés sempre em movimento com sapatilhas e rasteirinhas macias, com tênis baratos porém confortáveis e sandalinhas de plástico colorido, e que precisa ser amável e manter esse seu sorriso acolhedor apesar da dor e da vontade de sentar em algum canto, arrancar os sapatos e enfiar os pés machucados e inchados numa bacia com água morna e vinagre. Aí sim seu sorriso seria sincero!... O velho com seus pés sofridos e lentos enfiados en chinelos ou sapatilhas cheias de calombos e buracos que denunciam as suas deformidades, dedos encavalados e unhas comidas pela micose, calos, joanetes, manchas, veias azuladas e saltadas. E a expressão triste e dolorida da sua face enrugada é o fiel reflexo do que seus sapatos  contam.
    Assim como dizem que o nosso corpo está estampado na sola dos nossos pés, assim também o que somos, o que queremos, a verdade que derruba todas as nossas mentiras sociais está em nossos sapatos. Eles denunciam sem piedade a nossa história, o estado de nosso espírito, a vida que levamos, os sonhos que temos e os que perdemos. O salto alto de couro legítimo e aplicações de metal pode estar embaixo de um coração cansado que se assoma pelos olhos perfeitamente maquiados; e uma havaiana simples, barata e colorida pode ser a base de un coração feliz e realizado em sua modéstia, que se revela na voz alegre e no sorriso brilhante. As nossas máscaras não chegam até os nossos pés, pois em geral lhes damos quase nenhuma importância. "Eles só nos levam daqui para lá!", costumamos dizer, porém, uma olhada mais atenta fará com que comecemos a compreender a linguagem dos pés que, aparentemente protegidos -ou escondidos- pelos sapatos nada mostram sobre nós mesmos. Às vezes está neles o segredo que não contamos a ninguém, a dor que não revelamos, a felicidade que gostaríamos de compartilhar, a mágoa que carregamos e a esperança que nos sustenta junto com esses dois cúmplices dos quais mal nos lembramos no dia-a-dia.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Quando chove

Semana passada não deu tempo de postar a crônica por causa da maratona de apresentações que tivemos, mas como tive o fim de semana livre porque dois dos meus atores estavam participando do espetáculo de encerramento da escola de ballet da fundação, aproveitei para postar mais uma parte da história de Silvestre. Teria gostado de publicar ela até o fim, mas infelizmente não consigo ficar muito tempo digitando porque meus braços e mãos começam a doer -se aquela reumatologista não solucionar este problema eu não sei o que faço!- então, terei de me conformar -e vocês também- com ir publicando-a em textos menores. Espero que por causa disto não percam o interesse!... Em todo caso, aviso que já tem mais uma parte de "Silvestre" no blog Estórias (finalmente se encontrou com Francisco!) então, podem passar por lá para saber o que aconteceu. E hoje, que estou melhor graças a um fabuloso relaxante muscular, e que consegui acabar com os afazeres domésticos mais cedo e não vou precisar fazer almoço porque deixei tudo pronto ontem aproveitando que a empregada veio, vou postar a crônica da semana passada... Com a proximidade das férias (dia 23!!!) e a diminuição do trabalho -agora estou somente com as apresentações na praça- me sinto bem animada para retomar minha rotina literária, as minhas meditações e as caminhadas matinais (isto, é claro, depois de ir na reumatologista no dia 10 de janeiro) que tão bem fazem não só ao meu corpo, mas principalmente ao meu espírito. Espero que nada me impeça de continuar com elas!... Acho que talvez parte de todas estas dores possa ser devida ao stress de fim de ano e à preocupação com a saúde da minha mãe, que está muito deteriorada. Na verdade, estou esperando um telefonema da minha irmã comunicando-me seu falecimento a qualquer minuto, porque segundo ela diz, a nossa mãe não parece ser capaz de se recuperar desta última infecção, então... Não é fácil, acreditem. Cada vez que o telefone toca meu coração quase sai pela boca!... Porém, meu consolo é saber que, se ela se for, com certeza irá para um lugar melhor. Ninguém merece o que ela está sofrendo!... Com certeza, a gente não tem medo da morte em si, mas da maneira como vamos morrer. A morte é um descanso, uma transformação, mas todo o processo que passamos até chegar a ela pode ser, às vezes, muito cruel e angustiante. Não sei se existe alguma forma de torná-lo mais fácil, menos assustador ou doloroso espiritual e físicamente, mas se ela existe, deveria ser ensinada a todos nós... Ou será que cada um deve encontrar a sua própria maneira de deixar esta vida? E de que depende esta descoberta? Da fé? Da experiência? Da coragem? Da misericórdia divina? Do carma? Da docilidade?... Bom, acho que estas perguntas só poderão ser respondidas quando cada um de nós chegar lá. Só espero que todos -ou pelo menos a maior quantidade de nós- consiga fazer esta passagem de um jeito sereno e otimista...
    E deixando de lado estas conversas mórbidas -porém inveitáveis quando se tem alguém próximo às portas da morte- vamos à crônica da semana passada.


    É curioso como os pássaros cantam quando chove. Enquanto o mundo todo corre para se esconder da chuva e as ruas ficam silenciosas e quietas, se prestamos atenção, em meio ao gotejar rítmico e às vezes atordoante ou até assustador, podemos ouvir as pombas arrulhando e os pardais e bem-te-vis gorjeando nas árvores, como que celebrando o dia cinzento e úmido... Eu fico desconcertada com a sua atitude, pois dias nublados e chuvosos estão sempre associados à tristeza, à luto, à perdas e vazíos... Porém, escutando os trinados imperturbáveis das aves na árvore do meu quintal, chego à conclusão de que, talvez, através deles, Deus queira nos dizer alguma coisa. É como se nos mostrassem que, apesar do frio e da água escorrendo pelas calçadas, muros e telhados, ainda há que se alegrar e agradecer; parece que com as suas vozes nos dizem que tudo vale a pena, que em tudo existe uma benção, que não devemos parar de sentir-nos felizes e agradecidos porque tudo, desde o sol causticante à chuva torrencial, é milagre, é presente, e tem de ser vivenciado e aproveitado, pois tudo traz a sua lição, a sua mensagem. Os pássaros não se escondem nem se entristecem quando chove, quando as nuvens encobrem o sol, ou quando a noite cai. Ao contrário, parece que é nessas ocasiões que mais alto cantam, com mais alegria e virtuosismo, mandando seu recado de bem-aventurança e otimismo para o mundo, para nós, seres humanos desencantados e cansados, magoados e descrentes... Então, mesmo combalidos,  angustiados e irritados por todos os desgostos que possam nos afligir,  devemos ainda ser capazes de manter a fé e a coragem. Mesmo quando o céu está fechado e parece que um dilúvio vai inundar o mundo, devemos fazer o esforço e nos manter capazes de escutar e compreender a mensagem de Deus através das suas aves, sabendo que ela não é somente para nós, mas para todos aqueles que têm o coração aberto e dócil às lições que Ele nos ensina através de tudo que nos rodeia. Não importa quão desolados, abandonados, assustados ou fracassados nos sintamos, se olharmos com cuidado ao nosso redor, descobriremos sempre uma mensagem de alento, um sinal de otimismo, uma luz que brilhará e dissipará as trevas em que nos encontramos. É só não deixar que a escuridão tome conta da nossa alma, abrir bem os olhos e o espírito e sacudir com força e perseverança as sombras dos nossos ombros que elas, infalivelmente, acabarão por se afastar.
    Vou adorar quando conseguir ser feito os pássaros que cantam quando a chuva despenca do céu! Sei que, então, nada mais conseguirá me abalar de verdade.

segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Sombras e palcos iluminados

E como prometi, aqui vai a segunda de hoje, então, se por acaso não conseguir postar nada neste fim de semana -que será o da estréia da peça de natal- não lhes ficarei devendo.


    Deitada na confortável cama do quarto do hotel, enquanto a minha aluna Solange e um amigo curtiam a festa que a organização do festival de dança oferece para os participantes, estava meditando sobre as coisas que ensino, sobre como, na verdade, elas se aplicam mais à vida do que à dança em si... Mas, e a existência não é, no fim das contas, uma grande coreografia na qual todos nós dançamos e temos o nosso papel?... Então me perguntei, curiosa: E qual seria meu papel? Ele é exercido tão somente na sala de aula, na montagem de espetáculos, nas oficinas e palestras? Sei que tem gente se perguntando por que eu mesma não subo ao palco e demonstro a minha filosofia e a minha capacidade numa performance, ou numa peça, mas  -fora o pânico desgraçado que tenho de palco- estou convencida de que, apesar de toda a minha vaidade e do quanto desfrutava os elogios e aplausos quando cantava, as entrevistas, o assédio das fãs, a admiração e o respeito e aquele tratamento preferencial e cheio de consideração que recebia, o palco não é realmente meu lugar nesta história. Acho, sim, que foi importante ter passado por ele e tudo que os holofotes e a atenção implicam, porém, na avaliação final, acho que me sinto mais real e útil, mais confortável nos bastidores, na montagem, na direção. Prefiro que a luz se reflita nos outros ao invés de em mim mesma. Prefiro a sombra da responsabilidade que apóia e encontra soluções, da criação e da direção ao brilho e interpretação de uma protagonista. Na verdade, a cada apresentação, a cada aula, percebo mais claramente que o que ensino não é para ser mostrado por mim, mas por aqueles a quem ensino. O que eu sei, mostro ao ensinar, e para isso não preciso de um palco iluminado nem de aplausos.

Mestre e discípulo

Conhecem aquele ditado que diz: "Não cante vitória antes do tempo?"... Bom, eu caí nessa ao achar que após a última apresentação da escola de teatro da Fundação poderia descansar nos finais de semana como todo mundo e ir trabalhar só para cumprir horário até o dia em que chegassem as nossas férias coletivas... Quem me dera! A minha felicidade durou pouco, feito coisa de pobre. Eu já estava me preparando para curtir tardes de silêncio e frescor em minha sala arrumando papéis, organizando figurinos, revisando material de aula e esboçando alguns projetos para o ano que vem, sem desconfiar que meu chefe estava em sua sala traçando planos bem diferentes para mim e meu grupo... E eis que passei o fim de semana -nas horas em que não estava ensaiando e no domingo em que supostamente deveria ter descansado- escrevendo uma nova peça. Desta vez sobre o natal, que meus alunos vão apresentar num cenário ao ar livre (por isso as vozes serão gravadas nesta quarta-feira) do dia 5 ao dia 20 de dezembro à noite. Não digo que não gostei, porque adoro criar, ensaiar, dirigir e apresentar, e prefiro isso a ficar quatro horas à toa numa sala vazia, porque devo admitir que uma hora o trabalho de arrumação e planejamento ia acabar e eu ia ficar ociosa, coisa que detesto. Então, mesmo tendo de esquecer o descanso por mais um tempo, estou feliz com este novo desafio, mesmo se um pouco preocupada com meus alunos, porque na verdade serão eles a sofrer a maior pressão e o estresse em cada apresentação. Sei que eles ficaram felizes com a proposta e estão muito a fim de apresentar, mas não sei... Já estão tão cansados e sobrecarregados com provas e trabalhos... Bom, suponho que essa é uma das vantagens da juventude: sobra fôlego para fazer tudo e mais um pouco! Já eu, estaria numa cama de hospital se tivesse tantas apresentações ao mesmo tempo e sem  intervalos para me recompor!
    E aproveitando esta manhã livre e ainda fresca, vou postar duas crônicas, só para compensar a bagunça que está este blog. E aproveito para comunicar que postei mais um pedaço de "Silvestre", então, podem saber outro pouco sobre este frade tão contraditório que terá o encontro da sua vida em breve. Um evento que transformará por completo a sua existência. Adoraria escrever toda a última parte de uma vez, mas se digito por muito tempo  os meus braços, mãos e dedos começam a doer demais e preciso parar... Mas vamos ver, quarta vou no médico com a minha montanha de exames e espero que ele me dê algum tratamento que melhore esta situação, porque já está ficando bem chata.
    Então, aqui vai a primeira crônica.


    Sinto que amar um discípulo, um aluno, é totalmente diferente de amar um amigo, um irmão, um cônjuge, um filho, pois ele não é como nenhum deles e, mesmo assim, talvez seja como a somatória de todos eles. O elo divino e profético que normalmente aproxima e une mestre e discípulo não é do mesmo tipo que envolve pais, filhos, irmãos ou esposos. Este pode tornar-se, às vezes, confuso e muito possesivo, pois implica um tipo diferente de convivência, de partilha, um tipo de experiência íntima que não se tem com um discípulo, com o qual se vivencia um quê distante e impessoal que é o grande segredo da relação e a base para uma dualidade harmoniosa ensino-aprendizado. Há um trabalho específico a ser realizado, uma procura conjunta para atingir a luz, a maturidade, o conhecimento como ser individual e cósmico que formará parte do crescimento e da história de toda a humanidade. Há uma semente a ser plantada e cultivada (como em todo relacionamento) uma personalidade e um corpo a serem lapidados de uma forma absolutamente distinta da realizada quando existem laços de sangue ou afetivos. Na relação mestre-discípulo há um saber específico a ser desenvolvido, um objetivo claro, uma sensibilidade, uma abertura e compaixão que raramente são vivenciados num outro tipo de envolvimento. Existe uma mensagem a ser passada e a prática de disciplinas e experiências que somente se dão aqui. Discípulo e mestre compartilham em sua ligação interesses bem maiores do que os meramente humanos e para isto, tem de ser desenvolvida uma espécie de "frieza" e "praticidade" que favorecem a sobrenaturalidade das suas ações e objetivos. Existe entre eles um compromisso que não inclui somente eles dois, um amor impessoal que permeia seu comportamento mútuo e com os outros, um bem-querer, uma humildade e respeito que quase nunca são ensinados ou cultivados na sociedade em que vivemos, nos relacionamentos familiares, profissionais ou sentimentais. Já mestre e discípulo, enquanto mais se doam para os outros -ao invés de um para o outro- mais unidos estão e mais fortes são.
    Além da carne e da banalidade -porém sem perder as suas características de humanidade plena- das vidas comuns que levam, das lutas prosaicas e das decepções, das perdas, quedas, mortes e ressurreições, a ligação do mestre com seu discípulo navega no mar do espírito, que é feito de silêncio, aceitação, paciência e compaixão.

sábado, 20 de novembro de 2010

O tempo do mestre

Hoje, excepcionalmente, estou com o dia livre até às 18:00h, que é quando teremos o nosso ensaio geral para a apresentação de amanhã, a última do Musical neste ano. Semana que vem é a última da escola de teatro, com a apresentação da peça da turma infanto-juvenil da qual eu estou tomando conta -e que está começando a ficar muto boa- Só espero que depois dela possamos ter algum descanso até sairmos de férias, lá pelo dia 20 de dezembro. Se supõe que à partir do dia 28 trabalharei em horários "civilizados" e não terei mais surpresas do tipo: "Amanhã tem uma apresentação!", então pretendo começar a botar em dia meus escritos (incluindo a história de "Silvestre", que já está começando a parecer uma novela da Globo!) e meus diários, porque outro dia percebi com espanto, que estou começando a ficar sem material para postar aqui e enviar ao jornal... Preciso desesperadamente de férias para recuperar o controle e a rotina saudável da minha vida!... Espero também que com o resultado dos meus exames na mão solucione este problema das dores no corpo e assim me sinta melhor disposta para criar e consiga descansar direito, porque estou precisando. Dia 29 ou 30 vou no laboratório e no dia 1 de dezembro aterrizo no consultório do médico para ter as minhas respostas. Estou meio estressada com este assunto, mas estou tentando não me preocupar antes da hora, porque isso só vai aumentar meu mal-estar. Não tenho outra coisa a fazer a não ser esperar e, para manter a cabeça no lugar, nada melhor do que escrever, não é mesmo?
    Então, vamos pôr em prática a idéia. Aqui vai a crônica desta semana, finalmente em dia:


    No meio do saguão iluminado e barulhento do teatro, lotado de público, artistas, críticos e repórteres, vejo a mim mesma, feito um patinho feio no meio dos cisnes, meio deslocada entre esta multidão de professores muito experientes, conhecedores das mais modernas e elitizadas técnicas, engajados, artistas eles mesmos, com anos de prática e pesquisas, formados em grandes universidades, que já leram, viajaram, conheceran, experimentaram, ministraram para bailarinos de alto nivel, desfiando aquele palavreado tão cheio de nomes famosos e termos técnicos que chega a ser assustador... Pessoas mais velhas, com aquela aura de "monstros sagrados", versados nos mais diversos e profundos conhecimentos sobre dança, biologia, cinética, filosofia, política, história, métodos de ensino e artes em geral... E aqui estou eu, a zebra do páreo, que nem consigo acabar de ler um livro sobre a história da dança moderna sem ter uma enxaqueca, e me sinto totalmente perdida no meio das suas pomposas conversas e dissertações teóricas tão avançadas... Olho em minha volta, escutando aquele som que parece uma colméia em frenética atividade e, de repente, percebo que ninguém está falando do ser humano, das suas peculiaridades, do seu potencial e de como ele pode ser aproveitado e incrementado para que o aluno não se torne somente um ótimo bailarino, mas também um ser humano melhor, um artista capaz de dançar os movimentos da sua alma e da alma de todos os homens. Todos aqui enchem a boca para defender seus métodos e proclamar seus sucessos, mas ninguém diz uma só palavra sobre o alvo de todas estas discussões: o aluno, a pessoa; o que ele tem a dizer através da sua movimentação... Então, respiro fundo e vou sentar num canto da sala, no único pufe que sobrou, com a minha coca-cola numa mão e o programa desta noite na outra. O abro e dou uma rápida olhada nas fotos e nos nomes das performances e dos grupos e solistas. Nesse instante, me pergunto se estes professores e coreógrafos que tanto se gabam dos seus trabalhos conhecem realmente as pessoas que os executam, ou se estão puramente interessados em seu rendimento técnico, nos aplausos, no prêmio... "Bom", digo para mim mesma, "suponho que é para botar esta questão na mesa que eu estou aqui, com toda a minha miserável ignorância". Morro de medo de encará-los, encarrapitados como estão em seus pedestais de sapiência, e despertar a sua arrogância e desprezo diante do que vim dizer, que é tão simples e óbvio, ingênuo até, mas completamente verdadeiro e necessário: a blasfêmia de deixar a técnica em segundo plano para ocupar-se da humanidade vai fazê-los cambalear e enrubescer, com certeza!...
    Mas eis aqui que, quando o momento chega, de súbito meu coração acorda e se aquece, se alegra, cresce atrás das minhas costelas, e a minha boca se enche de doçura, de sabedoria, de compaixão, de uma incontrolável felicidade, pois estou prestes a falar sobre o mais precioso bem que nós, como mestres, recebemos: o ser humano e a sua existência, seu ser, seu estar, seu dizer... E para meu espanto -e o deles também, acredito- consigo conversar, expor meus pontos de vista, explicar com cristalina clareza as minhas técnicas, meus exercícios de aula e seus propósitos e resultados, meus objetivos, meus motivos! Consigo me fazer entender e ainda suscito uma onda de comentários e perguntas, uma curiosidade totalmente inesperada com respeito a este meu trabalho absolutamente original e, pelo visto, eficiente!... Eles escutam, se abrem, percebem, até concordam e me tratam com respeito e uma nova consideração... E eu me pergunto, pasma, quase assustada: "O que estou fazendo? Quem sou eu realmente? O que toda gente está vendo? Não é o suficientemente óbvio? Como foi que cheguei aqui? Eu,  Zé ninguém de uma cidadezinha do interior, dando palestra para estas sumidades, respondendo às suas perguntas num debate?"... Mas de donde vem todo este embasamento, esta certeza, esta clareza que não admite contestação, que parece ter todas as respostas necessárias para que meu trabalho ganhe apoio e continue? De onde nascem a lógica e a verdade que permeiam as minhas palavras e gestos, a minha sernidade, a minha certeza?... E lembro daquele capítulo da história de Francisco de Assis em que ele envia seus discípulos para pregar a pobreza, a obediência e a castidade pelo mundo afora... "Não vos aflijais pela vossa ignorância. No momento certo, Deus derramará a Sua sabedoria pelos vossos lábios", dizia ele para os preocupados irmãos, alguns dos quais nem escrever sabiam, e eles nunca foram desapontados.
    Então, chego à conclusão de que  quando optamos por nos entregar aos planos divinos para cumprir nosso destino,  Deus age em nós tomando conta dos nossos atos e palavras, da nossa inspiração e criatividade, transformando-nos, guiando-nos, tocando-nos, despertando-nos... Todos temos nosso tempo de mestres, certamente, e não podemos nos furtar a este fato, pois asim como é vital aprendermos a ser discípulos, também precisamos aprender a ser mestres, pois teremos que desempenhar estes dois papéis ao longo de nossa vida em diferentes situações. Mestre e discípulo formam um corpo só. Cabe a nós saber quando é o momento de cada um deles agir.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Momentos de glória

 Bom, no fim de semana que passou encenamos nosso ante-penúltimo espetáculo e, graças à Deus, foi um sucesso. Nem nós mesmos esperávamos aquela quantidade de público! Até o meu chefe veio assistir!... Acho que a divulgação que os próprios alunos fizeram funcionou muito bem; a net é boa para isso também... Tinha pessoas no saguão -quando dei uma espiadinha pela janela da cabine- que eu nunca tinha visto no teatro, todos jovens e vestidos de gala, bem educados e dispostos a se divertir. Não houve nenhum incidente chato durante a apresentação -como costuma acontecer quando o público é composto por jovens- e acho que curtiram mesmo a peça. No fim, até aplaudiram em pé!... Pôxa, como é bom ver que a platéia reage tão positivamene a um trabalho nosso!... Ainda nos restam duas apresentações antes de encerrar nosso ano letivo, uma do musical e a dos alunos da minha colega que foi demitida; e confesso que esta última ainda me preocupa, pois apesar da inclusão de alguns alunos do meu grupo adulto no elenco, a coisa ainda não está como eu gostaria, mas suponho que vou ter de me resignar, já que tem coisas que não vou poder mudar, pois está muito em cima da hora: manias, vícios e dinâmicas da outra professora que não têm nada a ver com meu estilo de trabalho e que estão afetando o resultado final... Em fim, preciso lembrar que se trata de um trabalho de conclusão de curso e que ninguém vai morrer se não sair perfeito. Estamos fazendo todo o possível para salvar a peça e para que estes alunos tenham a sua apresentação de encerramento com qualidade e prazer, e é isso que conta: fazer o nosso melhor para que todos brilhem.
    Hoje tenho marcada uma deliciosa massagem às 19:00 h, para ver se melhoram um pouco estas dores no corpo que estão me tirando o sono, literalmente. Fiz uma bateria de exames para ver de que se trata e encontrar uma solução que melhore a minha qualidade de vida, porque a coisa está feia, acreditem. Só espero que não se trate de nenhum tipo de doença degenerativa e sim de artrose ou reumatismo tratáveis com remédios e exercícios. Não pretendo entrevar ainda! Tenho muita coisa para fazer! Já basta ter descoberto que sou talassémica, caramba!... E o que é talassemia? É uma falha genética nos glóbulos vermelhos -ou nas hemácias, não peguei muito bem essa parte- que faz com que você tenha quadros recorrentes de anemia. Ainda bem que em mim tomou a forma mais branda, que quase não tem sintomas e é facilmente tratável... Como vêem, a minha família andou conspirando genéticamente contra mim: diabetes, artrose ou reumatismo, talassemia... Mmmm, devo estar pagando algum pecado muito velho e muito grande, vocês não acham? Mas purificação sempre é boa, nos deixa melhores, nos faz avançar mais depressa em direção ao sonho de perfeição.
 Então, antes de que as minhas mãos comecem a doer ainda mais, vou aproveitar para postar a crônica da semana.

    No quintal arruinado e seco da casa abandonada, tomado pelo mato selvagem e o lixo, pelo esquecimento e os vândalos que picharam palavrões e desenhos obscenos nas paredes descascadas e meio  derrubadas, o ipê amarelo floresce. Porque este é seu momento. As janelas de vidros quebrados, que mais parecem os olhos de um cego, o portão enferrujado e sem gonzos, a porta carcomida e esbranquiçada pelas chuvas e o sol e as paredes lascadas e emboloradas não têm poder suficiente para impedir a sua floração e então, ele nos brinda -em meio à miséria e o abandono que o cercam- com este espetáculo de absoluta beleza lá no fim do quarteirão, coroando a esquina feito um guardião do paraíso, firme e ereto, desafiador. Pois quem ousaria olhar para a decadência em sua volta diante das suas cores, da sua harmonia, da luz que dele se desprende neste fim de tarde e que parece atear fogo nos cachos de amarelo vibrante? Um amarelo de vitória, de perfeição, de descoberta e milagre... Este é seu momento de glória e nada pode impedi-lo; esperou pacientemente por ele, passando por todas as etapas, as estações e barreiras, as chuvas e dias frios, por crianças arteiras, por lixeiros, pássaros e formigueiros. Até que, finalmente, a sua hora chegou e ele  impera, magnífico, na paisagem. Depois voltará a ser uma árvore apagada no quintal da uma velha casa abandonada, mas hoje é um milagre para os nossos olhos e eu viro a cabeça para contemplá-lo mais um pouco enquanto me afasto pela rua abaixo... Então, reflito: Quantos destes momentos nós temos ao longo da nossa existência? Quantas vezes podemos nos transformar num glorioso ipê florido que embeleza o cenário e toca o coração dos homens à nossa volta? Quanta perseverança e força somos capazes de reunir e pôr em movimento para conseguir passar por todos os processos e dificuldades até atingir a nossa beleza absoluta?... Pois não importa quanto ela dure ou se depois do apogeu tornamos a ser pequenos e banais, o importante é que ela aconteça, pois a transformação que ela acarreta -em nós mesmos e nos outros- é algo que permanecerá para sempre.
    Amanhã, as flores amarelas cobrirão o chão em volta do ipê e os nossos sapatos as esmagarão, apagando seu brilho e a sua magia; a árvore ficará silenciosa e escurecida, nua, retorcida... Mas, hoje, neste preciso instante, o ipê amarelo é o rei da criação.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

O bônus

Já faz uns quinze dias que tento sentar aqui para escrever e assim não interromper a freqüência das postagens nos meus blogs, mas sinceramente, tem sido  absolutamente impossível. Estou completamente sepultada em trabalho!... Olhando a minha agenda ontem, descobri que TODOS os finais de semana deste mes estarão ocupados com algum espetáculo: se não é o musical, são as peças de encerramento de fim de ano da escola de teatro, o desfile do município (durante o qual pagamos todos os nossos pecados), o espetáculo da escola de ballet, a festa nipo-brasileira e qualquer outra surpresa que meus chefe inventem, sobretudo de última hora. Nossa, como eles adoram isso!... O problema é que por conta desse rolo com o Ciap, todos os contratos dos otros professores foram rescindidos e ficamos somente uns poucos -os concursados- para cobrir todos os eventos que ainda faltam até sairmos de férias (o que, nesta altura do campeonato, começa a me parecer um sonho muuuuito distante) Tudo bem que isso vai nos valer muitas horas extra, mas, sinceramente, posso perceber como os meus alunos estão exaustos, mesmo se sempre animados e dispostos a cooperar. Mas meu chefe às vezes se esquece de que eles não trabalham na Fundação e que têm outros compromissos e deveres e os sobrecarrega com atividades extra aqui. Sei que eles adoram ajudar e produzir, mas acho que está na hora deles -e eu, de quebra- descansarem um pouco, se  recuperarem e reunirem forças para o que os aguarda no ano que vem e que, eu acho, vai ser muito bom e vai requerer bastante dedicação da parte deles. Espero que todo este seu sacrifício e participação lhes renda muita coisa positiva (mesmo se não financeiramente) porque eles merecem.
    O bom de tudo isto é que, a cada fim de semana, vai ser mais um espetáculo apresentado  do qual vamos estar livres, então, a agenda vai começar a ficar um pouco mais folgada, e à partir do dia 28, eu vou trabalhar em horários "normais" (das 14:00 às 18:00) até entrarmos  en férias... Bom, isso é o que espero, mas não sei, não, com esta falta de pessoal e todos esses eventos que ainda faltam... Nossa, será que vou ter de dar uma de Mamãe Noel e passear com as criacinhas no trenzinho do natal????... Deus me livre! Na primeira curva já vou jogar uns cinco ou seis pela janela!... Ou então eles é que vão me enxotar do trem primeiro...
    Bom, e antes de que alguém me ligue convocando uma reunião ou o calor piore e o ventilador desista de esfriar o ar, deixa avisar para vocês que faz uns dez dias postei mais uma parte da história de "Silvestre", então já podem sa ber um pouco mais sobre ele. E agora, aqui vai a crônica da semana passada... ou da anterior, já não sei mais. Este negócio de trabalhar de domingo à domingo me tem completamente desorientada nessa questão das datas... Mas, em fim, aqui vai:


    Dançar, descobrir os movimentos da alma, entrar no ritmo do universo: estas são coisas que parecemos não saber, mesmo sendo vitais para a sobrevivência... Ou será então que as esquecemos ao longo da vida porque achamos que eram fantasías ingênuas da nossa infância e adolescência nas quais não valia a pela investir?... No entanto, se conseguimos nos desfazer de todas as crostas e preconceitos que fomos criando ao cescer, seremos capazes de dançar, de reconhecer os movimentos da nossa alma e expressá-los fielmente para que eles formem parte da eterna e perfeita coreografia  da criação. Esta é uma possibilidade que nasce e morre conosco, mesmo que nunca cheguemos a tomar consciência dela. É como um bônus, um prêmio antecipado ao qual todos temos direito. É parte indivisível do fato de sermos humanos; está embutido em nossa essência e nada do que façamos o tirará de nós. Pois se não, como explicar de onde vem a sabedoria que às vezes ostentamos e que tem o poder de transformar o mundo? Fazemos coisas sem nunca ter visto nem ouvido sobre elas, criamos do aparente nada -de um sonho, de uma visâo, de uma necessidade- galgamos degraus e construímos pontes, desbravamos caminhos impenetráveis com a absoluta certeza de que, no fim, encontraremos algo que nos tornará melhores. Vivemos tomados por pressentimentos, por idéias, por aquela sede de aprender, de descobrir, de criar, de ir adiante e sempre conseguimos superar-nos, sobreviver, continuar... Qual é o segredo? Dar saída a toda esta energia, ouvir as vozes que sussurram em nosso interior. Ouvir e acatar, pois elas realmente existem e têm um objetivo em nossa vida, são indispensáveis para o nosso crescimento. Quem já não teve "aquela sensação"? Quem não sentiu -pelo menos uma vez na vida- aquele "chamado"? E quem, nem que fosse somente durante alguns minutos, não acreditou nele e cogitou deixar tudo para ir atrás daquela voz doce e  poderosa?... E, no entanto, quem persistiu? Quem teve a coragem de perseverar no caminho, de acreditar na visão?... Homens de pouca fé, é o que somos!... Por que procuramos no exterior o que já sabemos que possuímos dentro de nós? O que acontece em nosso interior que não tenha seu reflexo e a sua resposta no universo que nos rodeia? Por que nos negamos tão obstinadamemnte a aceitar e vivenciar esta ligação íntima -humana e divina- entre o homem e a criação?... A certeza espiritual das nossas escolhas sempre terá a sua recompensa, por isso não devemos deixar que nehuma dúvida nos paralise. Não somos os primeiros nem seremos os últimos a procurar, pois as nossas necessidades eram e continuam a ser as mesmas, porém, parece que, de tempos em tempos, preferimos esquecer-nos delas e de como preenchê-las para poder continuar a nossa caminhada sem tanto sofrimento, sem tantos tropeços e desvios. Não sei por que temos estas birras, estas crises de rebeldia contra Dios e as leis universais -físicas e morais- damos as costas a tudo que sabemos que é certo e mergulhamos em abismos dos quais demoramos tempos infindáveis para ressurgir, humilhados e feridos, quase dilacerados e, mais uma vez, sermos acolhidos pelos braços do nosso Pai que, pacientemente, continua de coração aberto, pronto para dar-nos mais uma chance de recomeçar.
    Reaprender. Redescobrir. Retomar. Recriar...Eis o que viemos aprender e ensinar neste planeta.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

A rede

    Como sempre ultimamente, atrasada com a crônica da semana, tudo devido ao Festival de Teatro Estudantil que está acontecendo há quinze dias na cidade e do qual sou jurada, mas, como sempre também, aproveito qualquer tempinho de folga -como agora de manhã- para cumprir com a minha obrigação literária e não deixar vocês a ver navios. Mas o festival acaba neste final de semana, então terei um pouco mais de tempo de volta, mesmo com todo o trabalho dos espetáculos de encerramento que ainda me aguarda...
    Ontem, enquanto penava sentada na primeira fileira do teatro assistindo uma peça encenada por 50 criancinhas de 7 a 12 anos (umas gracinhas, todas fofas, mas...) sobre as quais teria de dar alguma opinião logo depois, o que estava me deixando meio apavorada pois não sei quase nada sobre teatro infantil e temia julgá-las demasiado severamente, veio sentar do meu lado uma garota que já fez aula comigo mas teve de sair por problemas familiares, e de repente, assim do nada, após me cutucar gentilmente, começou a falar sobre o teatro, sobre o que sentia, sobre o que sonhava, sobre o que significava para ela, sobre como pretendia seguir a carreira de atriz... No primeiro momento, eu fiquei meio desconcertada e até incomodada, porque se supunha que eu devia era prestar atenção no que estava acontecendo no palco, mas aos poucos, a empolgação nos gestos e a emoção na voz e nos olhos da garota foi me conquistando, meio sem querer, e como já tinha chego a uma conclusão à respepito da peça e das crianças, deixei de lado minha caneta e a folha de notas e prestei atenção no que ela estava falando... E de repente era como se estivesse escutando a mim mesma há alguns anos atrás, quando decidi seguir a minha vocação de artista. Era o mesmo tom, as mesmas palavras, o mesmo brilho no olhar, aquele coração acelerado batendo no peito, iluminado pela descoberta do próprio destino; era seu sorriso igual ao meu, as suas esperanças, a sua felicidade. Era como estar me olhando num espelho e, de repente, em meio àquele cansaço, ao barulho, às luzes e correrias no palco, ao calor e à incerteza do que precisaria falar para não magoar ninguém, percebi, mais uma vez, o quanto eu gosto de fazer o que faço, quão feliz e realizada me sinto por ter ouvido a voz da minha alma e seguido esta vocação. Percebi que não há arrependimentos ou frustrações em meu coração, que mesmo sendo tão difícil às vezes, não trocaria a minha escolha por nada deste mundo, e com os olhos subitamente marejados (ainda bem que estava escuro!) desejei que aquela menina perseverasse em sua escolha, que alimentasse seu sonho para fazê-lo crescer e virar realidade, que não desse as costas a sua vocação, que parecia tão clara naquele momento, pois com certeza não iria se arrepender... São tão poucos os que recebem (ou percebem que receberam) a graça de saber quem são e o que querem fazer nesta vida! E ela era uma deles!... Quando acabou seu inflamado discurso, lhe dei um abraço apertado e cochichei em seu ouvido, enquanto o Menino Maluquinho fazia estripulias lá no palco: "Não deixe que esse deslumbramento se apague, não cale essa voz. Pule no abismo, porque posso assegurar-lhe que vai valer a pena, não importa quão medonho possa parecer às vezes. Pule!".
    Ela me agradeceu e, dando um profundo suspiro, como aliviada por ter encontrado alguém que a entendia e a apoiava, recostou-se na poltrona e ficou olhando para o palco iluminado e barulhento com olhos de encanto e felicidade. E eu, de soslaio, a contemplava e agradecia por Alguém tê-la colocado em meu caminho naquela tarde, pois assim como às vezes os jovens precisam de apóio e compreensão para correr atrás dos seus sonhos, nós, os mais velhos, precisamos nos ver relfetidos neles para nos lembrar dos nossos próprios sonhos e perceber se fomos capazes de realizá-los ou não.
    Bom, e depois deste episódio -que podería valer como uma crônica- aqui vai a da semana passada. Prometo que este fim de semana fico em dia!...

    Está fazendo um calor inusual neste início de primavera, um clima pegajoso e molhado que nos deixa desconcertados e muito irritados (sobretudo aqueles que são alérgicos). Sandálias, camisetas, bermudas, portas e janelas abertas para refrescar o interior das casas, cadeiras na calçada, na área, na rua, vizinhos afogueados se abanando com revistas o leques, estirados diante do ventilador... Tudo isto está totalmente fora de época e faz com que nos sintamos perdidos e um pouco preocupados. O calor está botando as pessoas para fora: televisões na área, piscinas de plástico nos quintais, crianças descalças e de maiô chupando sorvete nos portões, profusão de garrafas de cerveja e refrigerante saindo em sacolas dos bares e padarias, redes preguiçosas estendidas embaixo das árvores quase sem folhas ainda... O dia parece esticar-se num espreguiçar sem fim, sem vontade de nada. Há um outro espírito, uma outra atitude, algo como estar curtindo umas férias fora de época. Os vizinhos estão mais comunicativos, mais sorridentes, mais descontraídos; as crianças invadem a rua com seus gritos e brincadeiras; os bares botam mesinhas de metal pela calçada, as sombrinhas coloridas passeiam pelas avenidas feito um jardim em movimento. A música alegre dos carros estacionados se espalha pelo ar, misturando os estilos e as tribos que brincam de seduzir...
    Passo por todos estes cenários lentamente, carregando a minha mochila e a minha bolsa, testa molhada e blusa colada nas costas, e não posso deixar de sorrir diante da vida que, com frio ou calor, transcorre inalterável, mostrando seus personagens e acontecimentos, cada um em seu lugar, executando a sua rotina, alheio ao destino, ao tempo, à amorte, cumprindo seu papel neste instante, aprendendo e crescendo... Enquanto passo, feito uma mera espectadora e ao mesmo tempo profundamente inserida no acontecer, sinto meu peso, percebo meu movimento, analiso meus pensamentos, tomo consciência do meu corpo em meio a tudo isso como a peça de um quebra-cabeça, única e insubstituível, com todas as suas peculiaridades, a sua energia, seus objetivos, a sua sabedoria, a sua sede de continuar aprendendo e partilhando; e me dou conta de que cada um dos personagens que invadem a rua ao longo da minha caminhada é exatamente igual a mim, que todos formamos uma espécie de rede intimamente ligada, que todos dependemos de todos e que temos o mesmo destino e almejamos a mesma coisa: sermos amados. E que é este desejo inato o que nos leva à toda a grandeza de que somos capazes quando necessário.

terça-feira, 12 de outubro de 2010

A porta do claustro

E como prometi, aqui está a segunda crônica. O dia continua esplêndido -mesmo se um pouco frio por causa do vento- já tirei a minha soneca, não comi nenhuma besteira no almoço (abobrinha italiana recheada com carne moida e um pratão de salada de folhas) e as cadelas estão beatíficamente esticadas em cima da minha cama, tirando a soneca delas, então... Vamos aproveitar!


    Demorou, foi sofrido; havia dias em que achava que não existia uma saída, um final para a escuridão e, ao mesmo tempo, podia perceber aquele hálito, aquela faísca quase invisível susurrando, apontando, espalhando as pistas em meu caminho. Algumas eu conseguia enxergar, porém, a maioria me escapava, parecia perfeitamente camuflada entre as sombras, tornando-se invisível para mim... Quanta ignorância, quantas mentiras, quantas voltas e reviravoltas assolaram a minha existência durante tantos anos!... E eu sempre com aquela sensação, aquela ânsia, aquela vaga saudade arranhando meu peito! Sabia o que queria? Sabia de onde vinha tudo aquilo? Fazia alguma idéia do por quê?... Acredito que, no fundo, mesmo sem perceber ou admitir, a gente sempre sabe, porém, a maior parte das vezes fica desconcertada com estas certezas, pois nem sempre são o que nós ou os outros esperávamos ou planejávamos e, mesmo pressentindo-as verdadeiras, damos as costas a elas e preferimos percorrer um caminho mais fácil, mais "normal", mais dentro dos padrões. A verdade é que nós nos conhecemos perfeitamente, mas nem sempre temos consciência disto e acabamos agindo de formas que terminam por afastar-nos completamente do que realmente somos e do nosso objetivo nesta vida. Sempre estamos achando que não somos dignos ou capazes de realizar os nossos verdadeirios desejos, receosos de ser desaprovados, julgados e rejeitados pela sociedade, isolados, punidos, e assim, acabamos por nos render às expectativas alheias e frustramos a nossa própria realização. E não há arrependimento suficiente no mundo que compense o vazio que nos acompanhará pelo resto dos nossos dias.
    Eu passei quase quarenta anos numa busca incansável pelas minhas verdades pessoais, pela compreensão, aceitação e realização das minhas ambições mais caras e verdadeiras, artísticas, pessoais, morais e espirituais, e o ápice desta procura aconteceu na noite em que vi Kazuo Ohno no palco. Aquilo foi uma das revelações mais importantes da minha vida -assim como meu encontro com Marilene de Oliveira, a minha psicoterapeuta- Foi uma verdadeira iluminação, um instante de contato pleno e consciente com meu destino, com a minha divindade, com a minha essência. Aquele foi o momento da escolha definitiva, da recompensa após tanto esforço e fidelidade, após tantos encontros e desencontros, de dúvidas, batalhas, muitos fracassos e tão poucas vitórias... Não pude dar as costas e continuar com a minha vida de antes. A mensagem era clara e direta demais: a minha busca havia terminado... Me encontrava novamente na porta do claustro, fazendo aquela escolha radical, absurda aos olhos do mundo, preparada para atravessar o umbral, fechá-la definitivamente e adentrar num mosteiro sem muros e obedecer as regras da Ordem da Humanidade... Que pânico! Que felicidade!... No entanto -e como já esperava- optar não me trouxe a paz, a alegria ou a sabedoria instantaneamente. Longe disso, pois optar é só o primeiro passo de muitos num caminho cheio de armadilhas, de velhos e prejudiciais hábitos, de inseguranças e desafios. Mas há que caminhar, há que enfrentar, há que semear e cultivar a força que nos faz perseverar e alcançar o nosso objetivo. E quando se está lá, mesmo que ainda faltem todos os outros desafios para encarar, veremos que certamente terá valido a pena.

Solidão

Bom, com dois dias inteirinhos de folga é impossível eu não conseguir botar meus escritos em dia!... Após duas apresentações do musical e vários ensaios e trabalhos de montagem numa única semana, está explicado por que deixei todo mundo na mão com as crônicas, mas pretendo me redimir nestes dois dias, acreditem, então não vou postar somente a crônica que estava faltando, mas também a desta semana, porque novamente terei apresentação do musical neste sábado, com ensaio geral na sexta e um outro ensaio -da nossa peça de fim de ano- no domingo... Como podem ver, não vou estar com muita coragem para sentar aqui e escrever algo que preste, então vou aproveitar esta radiante manhã de sol para escrever. Ontem -outro dia divino, com sol e vento, do jeititnho que gosto- consegui, finalmente, postar a terceira parte do conto "Silvestre", então vão ter mais alguma coisinha para se entreter no feriado. Se der tempo -porque a minha filha vem hoje à tarde- posto a parte IV, se não, fica para a semana que vem, em algum momento de improvável folga...
Então, aqui vai a crônica da semana passada e, em seguida, a desta. Espero que curtam!

    Me pergunto como será viajar sempre sozinho, sentar na mesa de um restaurante sem companhia, deitar numa cama num quarto de hotel, assistir televisão sem ninguém para comentar, caminhar pelas ruas, sair e entrar de rodoviárias, aeroportos, estações de trem sem ter alguém para conversar nem compartilhar as experiências da viagem... Acho que eu fiz isso tão somente um par de vezes em minha vida e devo dizer que não foi tão deprimente ou assustador, talvez porque tenho este espírito observador e contemplativo que faz com que qualquer solidão não seja um drama, mas uma oportunidade de aprender. Lembro que havia uma certa e inesperada sensação de liberdade, de independência, de leveza e descompromisso (mesmo que tivesse encontros, ensaios ou apresentações agendados ou horários de ônibus que não podia perder) que me deixavam bastante à vontade. Me sentia meio que uma criança num parque de diversões. (coisa que até hoje me acontece em qualquer saída) Tudo era novidade, cheio de surpresas e deslumbramento... Havia um quê de ansiedade, de receio diante do desconhecido, é verdade, mas nada que empanasse aquele genuíno contentamento que enchia meu peito enquanto me deslocava daqui para lá por minha própria conta.
    Houve um tempo -quando ainda tinha a Gorrión Cia. de Butoh- em que viajava sempre com a Solange, a minha única (e melhor) aluna e performer do grupo, e acho que acabei me acostumando com esta sensação de segurança e conforto que a presença de uma outra pessoa nos provoca, mas isto também podia ser devido, em meu caso específico, às últimas seqüelas daquele período em que desenvolvi a síndrome de pânico (bem depois de ter feito viagens sozinha) o que me deixou muito fragilizada e ansiosa com respeito a ir para longe sozinha. Sinceramente, não sei se agora aceitaria ministrar uma oficina ou montar um espetáculo numa outra cidade ou estado -como já fiz- se alguém não pudesse vir junto para me dar este "suporte" amigo. Lembro que a metade dos ganhos das oficinas iam para a Solange -o que alguns achavam absurdo, pois quem desenvolvia aquele trabalho era eu- mas não somente pela sua companhia ou a ajuda em alguns dos exercícios, mas porque era ela quem conversava com os alunos que, às vezes, inexplicavelmente intimidados pela minha imagem de "mestra", tinham receio de se aproximar para contar as suas experiências ou fazer perguntas, e esta sua contribuição era algo extremamente valioso para mim... Mas também a sua presença forte e meridiana me oferecia um apóio e uma segurança muito agradáveis, já que ela possuia uma extrema praticidade e clareza de pensamento e aquele carisma extraorodinário junto aos alunos, o que parecia tirar um peso das minhas costas.
 Não tenho medo da solidão em si -até gosto dela para meditar e escrever- mas do desamparo que ela poderia trazer em algum momento. A presença da Solange -ou de qualquer outra pessoa em quem eu confie- me confortava de um jeito quase físico, pois sabia que podia contar com ela caso qualquer coisa acontecesse. Acho que passei por muitos apuros (inclusive imaginários!) estando só e não estou mais a fim de correr o risco de que esta situação se repita, mesmo curada da síndrome de pânico e com muito mais jogo de cintura para me virar. Isto, certamente não é mais do que uma das medonhas lembranças que sobraram da minha época de pânico, porque agora sei positivamente que possuo voz e poder de decisão, que o mundo ao meu redor não conspira contra mim nem está cheio de armadilhas e ameaças das quais não poderei me defender... Mas, se puder evitar... "Vai que"... como diz a propaganda.
    No entanto, pensando mais  profundamente sobre a solidão, chego à conclusão de que existe uma enorme diferença entre a solidão espiritual, o desapego, aquela intimidade somente nossa, imprescindível para o crescimento, a compreensão e a comunicação com Deus, e a solidão física, a falta de amparo material e psicológico em momentos importantes. É desta solidão que eu tenho receio, pois pode acabar resultando muito prejudicial e até traumatizante. Porém, estou consciente de que todas as pessoas estão interligadas de alguma forma e são capazes de auxiliar umas às outras em momentos de crise, até por uma questão instintiva; sei que as suas ações formam uma rede de eventos e consequências físicas e imediatas e à longo prazo que interage o tempo todo em cada acontecimento. Por isso, na realidade, nunca estamos tão desamparados assim. Médicos, motoristas, professores, mecânicos, garis, vendedores, empresários, artistas, todos temos uma função física na vida dos outros, a nossa pessoa material é fundamental na dinâmica dos processos do funcionamento da existência coletiva.
Talvez somos um só espírito e temos idéntica origem, porém é a nossa presença física o que nos diferencia e nos dá o papel que iremos representar na história. No entanto, a despeito desta peculiaridade de cada um, todos dependemos de todos em maior ou menor grau, não podemos nos esquecer desta realidade. É com isto que devemos contar nas épocas de provação já que, se um de nós sobrevive e galga mais um degrau, todos nós sobrevivemos e gaçgamos esse degrau junto com ele
 

sábado, 25 de setembro de 2010

Nosso destino

Bom, esta semana posso anunciar com banda marcial e bandeirinhas que, finalmente, postei a segunda parte do conto "Silvestre", então já podem visitar o blog e continuar conhecendo a história deste monge e seu encontro com Francisco. Como já faz tempo que postei a primeira parte, acho que sería bom vocês relerem a primeira, para não ficarem perdidinhos da silva... As coisas estão mais calmas agora -ainda bem, porque não tem nenhuma parte do meu corpo que não esteja doendo- então disponho de algo de tempo para me dedicar novamente as outras coisas que adoro, como escrever, deitar na rede para meditar, assistir televisão e brincar com as minhas duas cadelinhas. Ainda tenho muito trabalho pela frente, mas como o estresse da estréia do musical já passou, parece que as outras atividades ficaram mais fáceis. Vou ter alguma dificuldade para conciliar meus horários, mas acho que vai dar para continuar postando meus textos e contos porque, como já disse, se eu não der continuidade no trabalho, vocês vão acabar cansando e não vão mais visitar os blogs, e não tenho a menor intenção de que isto aconteça. Então, aqui vai a crônica desta semana, e não esqueçam de visitar o outro blog para saberem como a história continua. Até estou achando que hoje à tarde vou conseguir postar mais  uma parte dela!...

    É o espírito o que nos sustenta? É alguma força divina o que mantém nosso coração palpitando -já que ele não está ligado a nenhuma tomada- e nosso corpo funcionando? É um sopro mágico o que nos ensina a perceber, a escutar, a falar, a caminhar, o que põe o nosso cérebro em ação e nos ajuda a amadurecer e a escolher os nossos caminhos? Quais fatores influem em nossas escolhas profissionais, sentimentais, morais? De onde vêm as nossas intenções, as nossas decisões, os nossos ideais, a nossa fé e a nossa garra para lutar por eles? Quem diz para nós o que é certo e o que é errado, o que machuca e o que cura, o que aniquila e o que revive?... É tão somente uma questão de educação? É conseqüência do exemplo da família? É uma submissão à padrões socialmente aceitáveis?...
    Nâo costumo parar muito tempo para me questionar sobre estas coisas e tentar encontrar alguma resposta, mas às vezes estas perguntas ficam rondando a minha mente feito mariposas atraídas pela luz do poste, e não posso evitar sentir-me desconcertada e espantada diante delas, do seu alcance e profundidade. Pois, de onde vem o que somos? Como escolhemos nos tornar quem somos? E será que sempre conseguimos esta façanha? Será que todos chegamos a ser quem almejávamos? Será que não estamos mais do que vivendo a continuação de uma história sem fim através de reencarnações à procura da perfeição, do perdão, da transformação e do equilíbrio?.... Quando me olho no espelho, ou ouço a mim mesma falar, ou percebo meu corpo se deslocando, as mãos gesticulando, o tronco se inclinando, tenho a nítida sensação de que, na verdade, há duas pessoas atuando ao mesmo tempo: aquela que observa e aquela que age. Ambas são uma só, porém se dividem para que eu possa ter uma visão mais ampla e profunda de mim mesma e possa compreender o que me motiva e as conseqüências das minhas ações. É fascinante, mesmo se um pouco assustador às vezes e, usualmente me leva às próximas interrogantes: Será que todos podem ter esta experiência? Ou será uma característica unicamente minha e assim, cada um teria também a sua?... Mas, por que nos possuiríamos esta peculiaridade? Faz parte do que é necessário para que nos tornemos o que escolhemos ser? Quê ou quem está guiando os nossos passos? Que força misteriosa norteia as nossas escolhas, abre as nossas portas e constrói as nossas pontes e navios? É o destino? É NOSSO destino, aquele que escolhemos antes de nascer?... Então é assim que a fidelidade divina funciona? É desta forma que ela tenta fazer com que nos mantenhamos leais aos nossos propósitos primeiros, aqueles ainda sem manchas nem desvios, sem erros nem dúvidas? É esta a forma mais perfeita de respeito, poder e ao mesmo tempo submissão de Deus para com as suas criaturas? As gera, as liberta, lhes permite escolher e, depois, faz de tudo para guiá-las até a realização desta opção, desta vocação que elas próprias assumiram? Sustenta corpo, mente, espírito, fé, coragem, persistência. Dá a voz, os meios, os caminhos, os encontros; desvenda segredos, processos, leis, ilumina, acolhe, consola, empurra, desbrava para nós a selva da existência e nos protege das suas armadilhas através de todas as suas manifestações... Somos por isto, na verdade, um com Ele em todo instante e, talvez, esta seja a resposta para todas as perguntas que revoam ao meu redor. Estamos vivos e agimos simplesmente porque o nosso Pai está vivo e agindo em nós.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

A experiência do amor

Meio atrasada e sobrevivendo numa boa aos imprevistos da pré-estréia (por que será que algumas pessoas escolhem precisamente os momentos mais cruciais para terem ataques de estrelismo, conflitos psicológicos ou éticos ou para ficar exageradamente sensíveis com respeito ao comportamento dos colegas? Até parece algum tipo de "ritual de passagem" do qual não se pode fugir antes de cada estréia que se preze!) cá estou com a crônica da semana passada, da qual passei boa parte tentando dar um jeito nestes probleminhas chatos, sem muito sucesso, infelizmente... Bom, pelo menos todas as cartas foram colocadas na mesa e as posições de todos ficaram bem claras e definidas. Não teremos mais atitudes dúbias, maus entendidos, situações de estresse inúteis e gratuitas nem caras amarradas pelos cantos. Nâo foi nada agradável, mas pelo menos agora sabemos quais atitudes tomar para que as coisas se estabilizem e as apresentações corram sem maiores sobressaltos ou desgostos. O que fica de chato é a decepção, a perda e a mágoa, que vão levar um tempo ainda para sararem; porém, como ninguém é insubstituível -incluindo eu- a coisa é seguir em frente e tentar driblar da melhor forma possível as surpresas que o destino ainda nos reserva, sempre com otimismo e criatividade, não é mesmo? Definitivamente, não serão algumas dificuldades -perfeitamente solucionáveis- nem algumas pessoas -que podem ser substituidas- que vão atrapalhar o correr desta história. Me entristece o fato de perceber que alguns não entenderam como tudo funciona num grupo cheio de pessoas falíveis, e decidiram agir de forma egoísta e pretensiosa, melindrando-se por erros que elas mesmas cometem a cada instante, mas que não conseguem perdoar nos outros; pessoas sensascionais, com um potencial imenso, mas com problemas íntimos que precisam solucionar logo, antes que eles atrapalhem coisas bem mais importantes do que um musical... Vou ficar com saudades delas, não só artisticamente, mas também como parte deste grupo sensacional com o qual estou trabalhando este ano. Tínhamos feito um monte de planos, mas... Porém, nunca gostei de amarrar ninguém no pé da cama para que ficasse comigo, mesmo que seja alguém muito especial.
Então, é com um prpofundo suspiro de resignação e luto por esta perda, que sento aqui para digitar esta crônica.


Pode parecer uma blasfêmia, um tipo de paradoxo ou até uma apostasia dizer isto, mas estou convencida de que, mesmo que nenhum profeta, santo, anjo ou iluminado tivesse jamais existido, e que Jesus e seus feitos não passassem de uma história para oportunizar e manipular um tipo determinado de comportamento na sociedade, nada mudaria o nosso destino, os nossos anseios, a qualidade no nosso espírito ou a nossa vontade de amar e fazer o bem. Mesmo que não houvesse paraíso nem ressurreição, ou nenhum tipo de recompensa, acho que a experiência do amor seria o nosso norte, o nosso objetivo, o motor de tudo que fazemos. Com certeza escolheríamos o amor como o motivo que faria a nossa existência valer a pena e ele continuaria a ser a razão das grandes transformações em nossa existência. A semente do amor já está plantada em nós -de alguma forma misteriosa e inabalável- e o único que precisamos fazer é cultivá-la e espalhá-la ao nosso redor. Não se espera outra coisa de nós, já que o amor é a grande força criadora -não interessa o nome que lhe dermos, qual seja a sua aparência ou a história do seu aparecimento em nossa vida- e por isso nos atrai irresistivelmente, pois sabemos que a sua ação é capaz de despertar os nossos anseios mais sinceros, de tornar-nos extraordinariamente fortes e determinados, de fazer-nos pacientes, humildes e solidários, e é com este tipo de atitude que a história acontece, que avançamos e amadurecemos como raça, que nos tornamos melhores e construímos sociedades duradoras, justas, que deixamos para os que virão lições valiosas, legados em cima dos quais eles poderão continuar edificando um mundo verdadeiro e de alicerces seguros.
Se houve ou não encarnações do amor entre nós, isto não tem importância pois, na verdade, todos somos encarnações dele e por isso, por termos a sua faísca viva dentro de nós, na verdade não precisaríamos de um rosto, uma doutrina nem de milagres para acreditar no que ele é capaz de realizar e segui-lo de todas as formas, por todos os caminhos, através de todas as suas manifestações. É algo inato, instintivo em nós, mais forte do que qualquer outra das nossas inclinações, lógico, inevitável, incontestável. O amor está realmente em mim, no que de mais verdadeiro e belo possuo, e a sua chama se debate, desde meu primeiro alento, para explodir e voar ao encontro do seu fogo criador. A minha oorigem e meu destino é o amor, e isto não é uma metáfora, é algo completamente real e presente. Ele é meu motivo, meu guia, meu alimento. É a percepção, o gesto, a palavra, o olhar, o pensamemnto, a intenção primeira. Tudo é gerado e regido pelo amor, mesmo que não nos demos conta disto ou que não saibamos interpretar seus movimentos, porém, mesmo assim, é ele quem sempre prevalece acima de todas as atrocidades e equívocos que possamos chegar a cometer por causa da nossa ignorância e fragilidade, da nossa impaciência e vaidade... Acho que a nossa vida pode ser definida por esta espécie de jogo no qual o amor tenta de todos os jeitos vencer as nossas fraquezas -começando por perdoá-las- para que possamos alcançar a felicidade e a realização, mostrando-nos que, mesmo humanos, efêmeros e fadados a errar, podemos vencer os desafios e nos tornar pessoas melhores.
Na verdade, não precisaríamos seguir alguém determinado, praticar rituais ou aderir a movimentos, seitas, religiões ou irmandades (o que não deixa de ser útil, pois serve para nos tornar mais fortes e focados em nossa intenção de vivenciar o amor, já que todos os envolvidos têm um único obojetivo, o que torna as ações e pensamentos muito mais poderosos e persistentes, pois há um apoio tácito e constante de todos para que se tenha sucesso na empreitada) Bastaria acreditar e assumir sincera e totalmente o amor que já trazemos conosco. Não é uma pessoa nem uma doutrina o que realiza o milagre, mas o próprio amor em ação através de nós... Ele é "o caminho, a verdade e a vida", como já disse alguém.
É do amor que viemos, trazendo conosco as suas sememntes, e estamos aqui para plantá-las, cultivá-las e vê-las crescer e dar frutos. Jesus, Budah, Alá, Francisco, Teresinha, Gabriel... são todos nomes, rostos, vozes, corpos e corações que de alguma maneira conseguiram ir além de nós, provando que isto é possível, que existe uma porta e um caminho que todos nós podemos abrir e percorrer, desde que permitamos que o amor tome conta de nós. Então, o mérito das suas vidas não é somente fruto da pura vontade deles, mas do amor que permeava todas as suas ações e do fato deles terem sido dóceis o suficiente como para permitir que ele os guiasse. Pois o amor não é uma personificação, mas uma ação.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Dois ciclistas

Bom, consegui arranjar um tempinho para sentar aqui e escrever hoje de manhã porque, como amanhã é feriado, a prefeitura decidiu emendar e não vamos trabalhar - o que não significa que não vamos ensaiar, isso está fora de cogitação- então, mesmo com a empregada em São Paulo no casamento do irmão -volta hoje à noite- casa para arrumar e almoço para fazer, ainda me sobram um par de horas para cumprir com meu sagrado dever da semana: postar a crônica no blog. Semana passada simplesmente não deu porque tivemos que resolver um monte de problemas, daqueles pequenos e muito chatos, da montagem, ver figurinos e dar bronca nos contra-regras que mais conversam e perdem a hora de mexer nas cordas e cenários do que ajudam. Mas, coitados, nunca fizeram este tipo de serviço, então, estamos tentando ser pacientes com eles porque, afinal de contas, o trabalho deles se resume a serrar, pintar, pregar, varrer, carregar e todo tipo de serviço braçal, então não estão acostumados com marcações, músicas, isso de aparecer no palco, se manter em silêncio ou agradecer no fim da peça... Mas como já estamos na semana da estréia as coisas estão ficando meio tensas, porque não pode haver nenhum tipo de falha nas apresentações, o que significa que precisamos ser exigentes ao máximo. As expectativas são gigantescas, assim como as perspectivas, então, a perfeição é o limite... Bom, como eu adoro desafios, não me incomodo com isto e tenho certeza de que meu pessoal também não e vai fazer o que se espera dele: um ótimo trabalho que, torço, vai render muitos frutos positivos no futuro para todos nós.
E aqui vai a crônica, recém saída do forno:


Apressada, fui atravessar a rua, a cabeça cheia de problemas para resolver, ligações para fazer, reuniões às quais comparecer, listas, relatórios, datas e horários, quando quase fui atropelada por um rapaz numa bicicleta azul. Ele freou abruptamente, cantando pneus, e olhando para mim com uma expressão na qual se misturavam a reprovação e o descaro, exclamou num tom insolente, alto o bastante como para que os transeuntes que passavam pudessem ouvi-lo:
-Aí, ô, tia! Abre o olho, né?
Eu fiquei paralisada durante alguns segundos, olhando para ele feito um rato pego na armadilha, sentindo-me impotente diante da sua agressiva superioridade, que ele fazia questão de exagerar na frente dos outros, que olhavam a cena com curiosidade e algo de comiseração. A sensação que eu tinha era a de que nenhum deles arriscaria seu pescoço para me defender ou sequer olhar torto para o garoto que, sabendo disto, sentia-se o dono do pedaço, o próprio Al Capone de bermuda, chinelo e tatuagem de caveira na panturrilha. A sua cara era tão rude, sua expressão tão ameaçadora e seu tom tão imponente e descarado, que todos preferiam ignorar o incidente a intervir e chamar a atenção dele que, na verdade, deveria ter parado para eu atravessar a rua, já que estava na faixa de pedestres. Mas seu talante era igual a tantos outros, que apareciam todo dia no jornal após um tiroteio, um assalto, um sequestro, um acerto de contas entre gangues, que ninguém teve a coragem de se aproximar e me apoiar. Nem eu mesma ousei abrir a boca para reclamar ou cobrar um pouco de educação, pois me senti impotente e sozinha diante da sua bravata e seus ademãs intimidadores... Não tinha mais do que quinze ou dezesséis anos, corpo enxuto e musculoso, forrado de tatuagens e cicatrizes, rosto de feições angulosas, boca grossa, sobrancelha raspada num desenho, piercing na língua, no lábio, na pálpebra. Vestia bermuda, chinelo e camiseta desbotada, uns cachos de cabelo castanho aparecendo por baixo do boné, os olhos escuros e frios, com o brilho feroz de quem é obrigado a defender seu territorio todo dia com um único olhar. A bicicleta na qual montava era pequena demais para seu tamanho, ele mal conseguia sentar no selim, e o azul cromado estava quase coberto de adesivos e franjas. A cada movimento seu eu podia escutar o barulhinho irritante das miçangas subindo e descendo nos raios da roda... Amedrontada, desviei os olhos e comecei a caminhar novamente, mas ele jogou a bicicleta na minha frente, dando una risadinha burlona, e acrescentou, num tom depreciativo e roufenho:
-Aí, coroa, tó atrasado, dá licença.- e subindo de um pulo nos pedais, saiu em disparada pela rua abaixo, dando risada.
Eu fiquei parada ali, feito cachorro que levou um pontapé, olhando para a sua silhueta que diminuia velozmente, o coração desbocado, a boca seca, tremendo de raiva e medo, mas sem conseguir reagir, sentindo-me idiota, ultrajada, abandonada... Mas, o que havia com esta juventude? Todos eles tinham enlouquecido? Tinham apagado das suas vidas as boas maneiras, as palavras inteligíveis, a compaixão? Ninguém tinha ensinado a eles respeito, consideração? Não sabiam o que era um sorriso?... Engolindo a minha revolta e meu medo, dei um passo em direção à outra calçada, quando divisei, vindo do outro extremo da rua, mais um ciclista, e estaquei na hora. Ele se aproximou, pedalando a toda velocidade. Era assustadoramente parecido com o outro: bermuda jeans, camiseta regata, tênis, cabeça raspada num desenho tribal, piercing na sobrancelha, luvas de couro preto... Eu tremi e comecei a recuar... No entanto, para a minha surpresa, quando chegou perto, o rapaz diminuiu a velocidade, olhando para mim com uma faísca de simpatia e a sombra de um sorriso distendendo a sua face morena, e terminou parando a meio metro de onde eu me achava. Fez um gesto com a mão para que eu atravessasse e, enquanto eu obedecia, ainda desconcertatda por semelhante cortesia, ele deu uma olhada para a igreja que estava à nossa frente e, fechando os olhos, fez o sinal da cruz com profundo respeito. Até pareceu que tinha feito uma rápida prece e, vendo que eu já me encontrava do outro lado, sorriu fugazmente para mim e montou em sua bicicleta de novo, afastando-se rapidamente atrás do primeiro ciclista, ziguezagueando entre os carros e os ônibus.
Eu fiquei a observá-lo por alguns minutos, tomada por uma multidão de sentimentos que se chocavam entre si. Porque fazia muito tempo que não levava uma surpressa deste tamanho... Pois, quem diria? O garoto de cabeça raspada e piercing na sobrancelha, tatuagem de sereia no braço e pulseira de metal com pontas, fez um respeitoso sinal da cruz, murmurou uma prece mínima porém profunda, feito um menino bem educado, "antiquado", careta, ingênuo, crédulo, até devoto, quem sabe -daqueles que já quase não existem mais, pelo menos não com esse aspecto de rebelde- e ainda teve o cavalheirismo de de me ceder a passagem na hora do rush fazendo aquele gracioso gesto com seu braço magro e nervudo... Enquanto retomava meu caminho pensei, espantada: " Como é que duas pessoas tão parecidas, que talvez vivem sob a mesma ideologia, desenvolvem os mesmos comportamentos e linguagens podem agir de maneiras tão difertentes?"... Me perguntei o que teria provocado aquela diferença em suas atitudes. Em que ponto do caminho e por qual capricho do destino escolheram, um assumir seu lado escuro e perigoso, e o outro continuar cultivando a bondade e a fé? Eram tão parecidos que até podiam passar por irmãos, com certeza provinham de vilas da periferia, pobres e abandonadas, tomadas por gangues e violência, e não se faziam ilusões com respeito ao seus futuros; no entanto, um deles tinha conseguido, de alguma forma, manter os valores, a fé, o comportamento certo para poder conviver em paz com o resto do mundo. A esperança e umas gotas de inocência e otimismo ainda brilhavam em seu olhar, adivinhavam-se em seus gestos. Já no outro garoto pude observar um abismo, um túnel sem saída, uma ponte que havia sido queimada; um algo sem volta, sem futuro. Nem em si mesmo aquele rapaz acreditava, apesar da sua pose e das suas bravatas, que davam a impressão de que era o dono do mundo e que podia fazer o que bem entendesse nele e com as pessoas que nele habitavam.
Cheguei ao meu trabalho ainda pensativa, preocupada, e sentei na cadeira em silêncio, meditando, reavaliando aquela máxima que diz que a primeira impressão é a que vale, pois aquele incidente tinha-a derrubado por terra mais uma vez. Porque não era a primeira vez que comprovava isto e, perceber que podemos, às vezes, ser facilmente enganados por uma cara feia, uma roupa surrada ou um linguajar deficiente, sempre reacendia a minha esperança de que ainda tínhamos salvação, de que podíamos acreditar uns nos outros sem importar o que parecêssemos à primeira vista... Pena que estejamos tão ligados à imagem, ao estatus, ao poder -e este erro cresce a cada dia- e seja tão difícil enxergar o verdadeiro ser humano que está diante de nós. Não estou isenta deste pecado e o cometo infinidade de vezes, mas tem dia em que, como naquela manhã, a verdade surge de improviso na minha frente como para me lembrar de não julgar nem condenar sem conhecer, para me convidar a dar uma chance. Não que isto vai fazer sumir a maldade ou as pessoas negativas, mas pelo menos as nossas consciências ficarão tranquilas se concedermos, nem que seja por alguns segundos, uma segunda oportunidade àquele que Deus coloca em nosso caminho.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Consequências

Bom, apesar de estarmos numa frenética reta final com o nosso espetáculo "O coração do café", está me sobrando algum tempo para continuar com as minhas atividades literárias, graças à Deus. Acho que é também uma questão de organização e perseverança, de disciplina, para que todo meu tempo e as minhas energias não sejam sugadas pelos ensaios e apresentações, mesmo que estes ocupem, no momento, boa parte da minha semana. À partir de hoje, e até a estréia, dias 10, 11 e 12 de setembro, passaremos a ensaiar todos os dias, menos sábados, que deixamos para ter uma folguinha (pelo amor de Deus!) e nos recompor para pegar no batente no domingo com um pouco de fôlego renovado e a mente espairecida, senão vamos todos pirar e começar a ter ataques nervosos. O projeto se revelou algo tão grande e com tais expectativas futuras que tem gente do elenco para a qual ainda não caiu a ficha, pois não se trata de um dos espetáculos de final de ano aos quais estão acostumados, que são para pais, mães, irmãos, namorados, colegas, cachorros e papagaios e vão para o palco só uma noite -no máximo duas- e depois são esquecidos. Este espetáculo está programado para ser encenado por muito tempo e para um público exigente -turistas, empresários, jornalistas,etc- que estão pagando 30 reais pelo ingresso, então esperam assistir algo com qualidade profissional... Não estou preocupada com meu time, que está dando um show nos ensaios, mas não posso negar que estou tensa, ansiosa, expectante pelo resultado, que pode ter consequências fantásticas. A pressão é enorme, sobretudo agora, mas estou convencida de que daremos conta. A coisa agora é eu me organizar com as minhas refeições e horários para que a minha glicemia não dispare por conta dos horários malucos que estamos tendo, porque o espetáculo começará às 21 h e tem duas horas de duração, incluindo o intervalo, então vamos sair realmente tarde do teatro, pois após o espetáculo, com certeza teremos de atender às pessoas que vão querer nos conhecer e conversar sobre o trabalho... Bom, vai ser duro e temos que nos preparar física e mentalmente, mas estou convencida de que vai ser um sucesso!
E sem mais delongas, aqui vai a da semana passada:


Escuto a canção: "Vento que dá na vela, vela que leva o barco, barco que leva a gente, gente que leva o peixe, peixe que dá dinheiro...", e penso: tudo começa com o vento. Ele é a ação primeira que desencadeia toda uma história feita de conseqüências. Se não fosse pela sua ação, nada do que segue aconteceria... E não posso evitar começar a refletir sobre as ações que realizamos e as suas consequências imediatas ou futuras... Será que temos mesmo consciência delas no momento em que agimos, falamos, pensamos, interferimos, mudamos alguma coisa ou alguém? Nós não somos feito o vento, que não sabe de onde vem, que sopra e vá embora, deixando atrás de si o alimento para o homem. Vento insensível, que interfere e age sem ninguém pedir e continua seu caminho indiferente, sem olhar para atrás, sem que lhe seja cobrada nenhuma responsabilidade. Afinal, por que olhar se não fez mais do que agir segundo a sua natureza? Ele está aqui para soprar e o homem que tire o proveito que bem entender da sua ação. O homem não faz vento, só aproveita a sua presença. Por outro lado, o vento não faz barcos nem joga a rede. Cada qual faz a sua parte e disto surgem resultados, acontecimentos, uma nova expressão que é resumo da ação do vento e do homem. Mas, será que isto se aplica ao nosso comportamento?... Existe uma ação determinada para cada momento e nós temos consciência disto; a pergunta é se, apesar desta consciência, sabemos agir corretamente em cada situação, pois a nós será cobrada a responsabilidade, a sensibilidade, o objetivo, o resultado, já que não estamos aqui simplesmente para existir, feito o vento. Nosso propósito é bem maior, mais complexo, e envolve toda a raça humana e a sua caminhada... Quantas histórias, feitas das consequências dos nossos atos, desencadeamos ao longo das nossas vidas? Será que conseguimos, ao menos por alguns instantes, perceber estes "efeitos colaterais"? Será que conseguimos prever os resultados não imediatos das nossas ações? E, mudaríamos alguma coisa se fôssemos capazes de fazê-lo?... Então, o que realmente importa?: predizer as consequências ou agir só no presente da melhor forma possível? Nosso movimento deve formar parte do movimento da criação, estar em harmonia com ele, pois assim seguirá a lógica das suas leis e qualquer consequência será igualmente lógica, seja ela negativa ou positiva.
Cada momento, cada encontro ou escolha têm seu próprio e único afã, aquele e não outro, e se lutarmos contra ele e o deturparmos, desviaremos o caminho certo da história... Feliz ou infelizmente, nos foi dado este poder, mesmo que não percebamos e por isto atrasemos inúmeras vezes a nossa própria evolução... Só a sabedoria pode nos mostrar qual é a ação certa para cada acontecimento, aquela que fará a roda da história se mover e avançar.

sábado, 14 de agosto de 2010

O monstro dentro de nós.

Bom, por enquanto, as coisas voltaram à tranquilidade e organização habituais... Bom, isso se descontamos as estripulias que as minhas duas novas hóspedes aprontam de vez em quando e que me mantém em constante estado de alerta... Sabem, quando a casa está silenciosa demais? É sinal de que preciso largar imediatamente o que estou fazendo para fazer uma ronda pelos quartos e o quintal para me cerciorar de que nenhuma delas está comendo as minhas orquídeas, pendurando-se do edredom que está secando no varal, devorando a ponta da minha bota ou brincando de puxa-puxa com as minhas meias de lã... Bom, é meio cansativo, mas elas são tão adoráveis que as minhas broncas não duram muito... O problema é que elas sabem disto...
E aproveitando este inesperado mar de calma (elas estão deitadas em seu tapetinho, bem atrás de mim, desmaiadas de tanto correr e pular) já vou postar a crônica desta semana. Preciso aproveitar estes momentos para botar em dia meus escritos, porque quando elas acordarem a minha paz vai embora, mas não a minha alegria... Então, aqui vai:

Amar, ser verdadeiro, ter compaixão, perdoar, agir sabiamente, acreditar... Se pensarmos bem, estas atitudes são completamente escandalosas, pois vão contra quase tudo que é prarticado nesta sociedade moderna e, ao mesmo tempo, tornam-se um paradoxo porque sempre nos é pedido para sermos amorosos, honestos, compassivos, para perdoar e agir com sabedoria, para ter uma fé tão forte e firme quanto uma rocha. Então, por que é que, apesar de todos os sermões e apelos, continuamos incapazes de demonstrar estes sentimentos, de torná-los parte indispensável para nosso bem viver, de acolhê-los, de espalhá-los?.. Mas aí eu paro e me pergunto: será que temos ao menos uma noção elementar do que seriam estas qualidades? Será que sabemos mesmo como trazê-las à tona, como fazê-las funcionar para que as coisas comecem realmente a mudar dentro e fora de nós? Será que conhecemos os meios, as ações, os pensamentos e sentimentos que nos levariam à prática efetiva e constante de todas elas?... Amor, verdade, compaixão, perdão, fé, sabedoria, tudo isso tem a ver com existir, com ser e estar. Tem a ver com a realidade, com o nosso dia-a-dia, com o que nos rodeia, com o que vemos e escutamos, com as pessoas que encontramos, os pensamentos e sentimentos que temos, com as ações que realizamos. Então, não basta só saber que devemos praticar estas qualidades, mas é preciso ter a consciência de que elas se aplicam à situações e pessoas reais, que são um exercício diário, que fazem parte da nossa essência, apesar de parecer que não têm espaço na sociedade atual. Mesmo podendo escandalizar a muitos que preferem o poder e a fortuna, a ambição e a brevidade de amores fugazes e cheios de condições, a realidade continua sendo que a bondade, a verdade, o perdão, a fé, a compaixão e a sabedoria (ou pelo menos a procura por ela) são os alicerces sobre os quais podemos construir uma humanidade verdadeira, transformadora, justa e duradoura, já que este legado, passado de geração para geração, será capaz de, finalmente, deter a violência e o egoísmo que nos assolam há tanto tempo.
Compreender a vida e seus dons nos leva automaticamente a querer espalhar o bem, a união, a solidariedade; a buscar e querer espalhar a felicidade e a paz, a lutar por um equilíbrio, pela comunicação e interação com tudo que nos rodeia. Assim, aos poucos, nos tornaremos sábios, e isto nos levará a agir com amor e honestidade, a perdoar, a fortalecer a nossa fé, a ter compaixão e a desejar a felicidade não só para nós mesmos, mas para todos. Agora, para que isto aconteça, é imprescindível romper com todas as ilusões que o medo, a ambição e a ignorância que a nossa cultura endeusa nos impôem, fazendo-nos escravos de aparências e regras tirânicas que nos prometem amor e um lugar ao sol. Mas, acima de tudo, precisamos parar de acreditar que dentro de nós habita algum tipo de monstro que jamais conseguiremos dominar e que sempre nos levará a agir de forma errada, precisamos parar de acreditar que não existe perdão nem consolo para nós, que não merecemos ser felizes, que somos pecadores empedernidos, que vivemos uma existência breve demais como para desperdiçá-la nos preocupando com assuntos espirituais. Precisamos parar de acreditar que a nossa essência é feita de matéria e que quando esta desaparece, nada mais restará. Precisamos parar de achar que o bem é inútil, que o mal é poderoso demais, que somos demasiado pequenos e insignificantes como para que qualquer coisa que realizemos em prol do amor faça alguma diferença.. Temos que parar de pensar em nós mesmos como criaturas fracas e sem opções, sem forças para lutar e transformar o que é preciso. Precisamos derrubar o mito da nossa inutilidade, da nossa incapacidade, da nossa transitoriedade e superficialidade, da nossa impotência diante das forças de um destino cruel e caprichoso, da nossa falta de identidade e unidade, pois enquanto vivermos segundo as suas regras será realmente um escândalo amar, ter fé, perdoar, ter compaixão, ser verdadeiro e agir sabiamemnte, seremos marginalizados e viveremos feito bonecos sem vontade nem sentimentos próprios, presos e manipulados pelas cordas de uma maioria ignorante e ambiciosa...
Sejamos um escândalo, então! Quebremos regras, derrubemos mitos, abramos portas e janelas, trilhemos outros caminhos, joguemo-nos no abismo da liberdade, da verdade, e levemos outros conosco, sem medo, porque desse abismo aparente -porque é aparente- sairemos fortes e sábios, e seremos capazes de transformar os erros passados e atuais em futuro para todos.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Iluminar o caminho

Bom, acho que o mais razoável e respeitoso com vocês é eu parar de prometer que vou publicar um conto no outro blog, porque normalmente acaba acontecendo algum imprevisto e sou obrigada a adiar a tal postagem. Aí, vocês vão lá achando que tem coisa nova, e nada. No fim, vão acabar perdendo o interesse, ou então, não vão mais acreditar quando eu disser que vou postar alguma história. Então, acho melhor só fazer a propaganda quando tiver publicado o conto e não antes... Já demoro o dobro para escrevê-los -portanto as publicações são mais esparças- e às vezes vão em duas ou três partes, então é melhor que seja verdade quando digo que vai ter coisa nova, vocês não acham?... É que, acreditem, ter de novo duas cadelinhas cheias de energia é algo que dá muuuito trabalho!A cada certo tempo, você precisa parar com o que está fazendo para ir ver o que elas estão aprontando e se preparar psicológicamente para encontrar todo tipo de catástrofe ecológica espalhada pela casa, incluindo o recheio das almofadas da sala voando pelo corredor, ou a cestinha de palha estraçalhada no meio do tapete, o pé da mesa de centro escupido à dentadas ou então os copinhos de iogurte transformados em franjas enrugadas pelo chão da cozinha... É verdade que "cachorro é tudo de bom", como reza a propaganda da Pedigree, mas também é tudo de trabalho, sobretudo quando é filhote... No entanto, a alegria que elas estão me dando não tem preço e desculpa todas as suas estripulias... De qualquer forma, ter duas filhotas também tem as suas vantagens financeiras, por exemplo: acho que durante um bom tempo não vou precisar de jardineiro porque desde que estas duas doidinhas chegaram, já podaram boa parte das minhas plantas, cavucaram todos os vasos e canteiros e hoje vi que - não sei por quê nem como- devoraram alguns quilos de grama do jardim da frente que, na verdade, já estava precisando de um corte, então acho que enquanto elas estiverem na fase de "como-tudo-que-vejo" (incluindo o sapato novinho e caríssimo da minha filha) não vou precisar correr atrás de um. Uma despesa a menos, não é bom?... E agora, vamos ao que interessa, que seria a crônica da semana passada e -hoje sim!- à primeira parte do conto.


Por que sempre tentamos mudar àqueles que amamos, mesmo jurando que os aceitamos do jeito que são? Por que não os amamos justamente por serem assim, originais e únicos, por terem aquelas imperfeições, aquelas características, aqueles vazios e desvios que, de alguma forma, nos completam? Por que não conseguimos conviver serenamente com as nossas diferenças? Para que queremos imagens e comportamentos iguais aos nossos? Onde está a graça nisso?... É justamente na diversidade que está todo o encanto da vida! Ela nos dá um pouco de trabalho às vezes, é verdade, mas quanto aprendemos e crescemos ao vivenciá-la!... Ou será que somos tan preguiçosos e fechados, tão preconceituosos, que preferimos não encarar este trabalho?... Nâo sei por que temos a insana mania de querer interferir tão drasticamente na vida dos outros, da mesma forma em que não aceitamos, com idêntica energia, a menor sugestão ou crítica da parte deles porque, claro, nós é que estamos certos. Sâo os outros que têm que mudar. Obviamente, um espelho de nós mesmos facilita qualquer relacionamento, evita riscos e desavenças, possibilita a manipulação e o domínio, então precisamos conhecer e controlar o outro tão bem como a nós mesmos. Evitar conflitos parece ser a regra vigente nestes tempos estranhos.
Mas precisamos entender e aceitar que qualquer mudança no outro não virá por imposição nossa. Nós não temos esse direito. Podemos dar consehos, exemplos, observar de longe e aguardar, porque qualquer transformação advém da compreensão, do equilíbrio, de uma necessidade interior pessoal, de uma visão mais ampla e madura, e não da nossa vontade, e isto às vezes leva um tempo que nós nem sempre estamos dispostos a esperar. Então, por que não confiar nas leis e nos ciclos da vida? Por que não acreditar na sensibilidade do outro, na sua percepção, na generosidade e na docilidade do seu coração? Acho que o fato de sabermos quem somos e o que desejamos às vezes faz com que sejamos duros demais com aqueles que ainda não tiveram a chance de abrir as portas certas para encontrar seus sonhos e a força para persegui-los e alcançá-los. Falta-nos ainda a paciência e a compaixão necessárias para acolhê-los e esperar a que percorram seus respectivos caminhos rumo à sabedoria e ao equilíbrio, à realização, e assim se aproximem do patamar no qual nos encontramos.
Não pretendo que ninguém seja igual a mim, pois assim como eu tenho peculiaridades que os outros precisam, sendo do jeito que sou, eles também, sendo da maneira que são, possuem coisas que eu preciso. É nisto que consiste a diversidade, é assim que funciona. Nâo se aprende somente das qualidades do outro ou de si mesmo, mas também -e principalmente- dos defeitos, dos erros e fracassos. Nada está em nós ou nos acontece por simples capricho do destino, por crueldade ou punição dos deuses, mas como um desafio que precisa ser vencido para que possamos galgar mais um degrau em nosso caminho à felicidade.
Como bem diz (ou canta) o mestre Milton Nascimento: "Toda vida existe para iluminar o caminho de outras vidas que a gente encontrar".