quinta-feira, 28 de maio de 2009

45 minutos

E esta é a segunda de hoje. Espero que gostem tanto quanto eu quando a escrevi.

Como boa paciente que sou, assim que o médico me disse que eu deveria fazer algum tipo de exercício diariamente, me programei para levantar mais cedo e sair para caminhar toda manhã, antes de começar com as tarefas na cozinha. Não pensei em voltar para a academia porque, primeiro -e para variar- estava sem dinheiro (e ainda estou, pelo menos para esse tipo de luxo) e segundo, porque após sete ou oito anos indo todo dia me trancar lá para suar nos aparelhos, encontrar as mesmas pessoas, aturar aquela música no último volume ou a televisão ligada em todos os jornais e programas femininos, e perder a concentração com o papo furado de alguns monitores sem noção que mais queriam conversar sobre seus romances do que conferir se estávamos fazendo os nossos exercícios da maneira correta para não arrebentar-nos a coluna ou os joelhos, simplesmente cansei. De repente, aquela rotina tornou-se insuportável, entediante, absolutamente falta de atrativo. Tinha sempre a mesma vista pelo portão aberto, a mesma briga dissimulada pelas esteiras, os mesmos rostos, os mesmos aparelhos, as mesmas conversas. Era cômodo porque estava tudo ali -inclusive o banheiro, vital para mim- e havia pessoas para nos dizer o que fazer e como fazê-lo, mas aos poucos, as coisas foram ficando tão sem graça, tão sem criatividade -apesar do esforço dos prodessores e das donas para inventar maratonas, gritos de carnaval, churrascos e dinâmicas surpresa ou aulas gratis de novas disciplinas- que simplesmente eu acabava torcendo para que amanhecesse chovendo e assim eu tivesse uma desculpa para não aparecer por lá... Eu tinha certeza de que se não tivesse alguém pegando no meu pé e direcionando o trabalho, eu deixaria os exercícios de lado para ficar mais um pouco na cama (afinal, levantava às seis e meia para não pegar a academia lotada!) ou fazer qualquer outra coisa mais interessante... Porém, aconteceu que uma das senhoras que freqüentava as aulas, e que estava ostensivamente muito bem de vida, sofreu um revés repentino e perdeu boa parte de seus bens e regalias, o que incluiu as manhãs na academia, o carro e os empregados. Teve de se conformar, então, com ficar em casa para fazer faxina, lavar roupa e cozinhar, andar de ônibus e dar suas caminhadas na rua, pois a academia tornou-se um luxo fora do seu minguado orçamento atual. Fiquei pesarosa porque ela era muito simpática e alto-stral, mas ao mesmo tempo, a desgraça da sua situação me deu uma idéia: caminhar na rua. É o que ela sempre dizia, brincando, quando alguém reclamava das mensalidades: "Caminhar na rua é de graça!", exclamava enquanto aumentava a velocidade da sua esteira... Bom, agora era o momento dela provar a sua teoria e de eu aderir a ela, pois de repente começou a me parecer sumamente atrativa: escolher o percurso (e podia ser um diferente a cada dia!) encontrar outras pessoas, respirar o ar fresco da manhã, ver casas, lojas, ruas, estudantes indo para a escola, cachorros, ciclistas, operários, árvores, pássaros, jardins... Estar em movimento, mas não aquele falso da esteira e sim o real, se locomover pela paisagem, se sentir integrado à vida que acontece ao nosso redor, isto sim era estimulante, diferente, verdadeiro!...
Assim que pesei as vantagens da nova rotina -fora o dinheiro que iria poupar- decidi largar imediatamente a academia e começar com esta nova aventura, cheia de animação e otimismo. O que me aguardava nas ruas? Quem encontraria, o que veria, quais seriam os roteiros?... Havia um leque infinito de possibilidades e experiências se abrindo diante de mim! Tudo era imprevisto, novo, real. Nâo estava mais interessada en perder peso ou abaixar a glicemia (apesar de que o exercício realmente, se não abaixa, pelo menos mantém os níveis de açúcar à raia) O que queria era experimentar esta nova perspectiva. Tinha a sensação de que, finalmente, estava saindo de um seriado de televisão e entrando no mundo real.
Caminho todo dia de manhã faz três anos e, aos poucos, fui percebendo que este exercício tem me trazido muito mais do que benefícios à saúde e uma ótima disposição para o resto do dia. Com o passar do tempo, comecei a observar com maior atenção o mundo que me rodeia e a refletir sobre ele, sem dar-me conta fui aprendendo a conhecer as pessoas e suas torinas, seus gestos, as suas expressões, fui descobrindo lugares, testemunhando situações, desvendando histórias e apreciando todo tipo de novidade, pois quando se sai de casa não se sabe o que nos aguarda, então, o percorrido é sempre cheio de surpresas, grandes e pequenas, boas ou ruins, de encontros e lições, de imagens, de vozes, de cheiros e cores que estão sempre mudando e dando ao mundo uma nova cara a cada amanhecer... E com certeza, seria um pecado se eu perdesse isto!.
Então ontem, de improviso, enquanto fazia meu percurso de volta para casa pela movimentada avenida principal, me dei conta do verdadeiro motivo pelo qual preciso sair para caminhar todo dia de manhã (e fazer a maioria das minhas diligências a pé): este é o tempo sagrado em que encontro o mundo e as pessoas em suas vidas, é a hora em que reflito, medito, aprendo, cresço. É a hora das revelações, das lembranças, das descobertas, da inspiração. A minha caminhada diária é como o renascer da minha alma, o recomeço renovado de cada jornada, o despertar -mais uma vez- da força e da alegria, da fé e do otimismo que habitam em mim e são o motor da minha existência. É a retomada da consciência sobre mim mesma e os outros, sobre a história que estamos vivendo... Esta caminhada diária de 45 minutos é a musa inspiradora das minhas crônicas, pois tenho certeza de que não teria nada para escrever se não fosse este passeio.
Hà alguns anos escrevi em meu diário (de onde vem estas crônicas) sobre a experiência de ir caminhando desde a minha casa até o convento dos franciscanos, no centro da cidade, e de volta a minha casa, quando ainda morava no Chile. Era uma distância enorme, mas lembro de não ter me importado com isto e de tê-la feito com especial alegria e disposição, chegando em casa com a estranha sensação de haver passado por algum tipo de peregrinação na qual tive a oportunidade de aprender e conhecer coisas que de nenhuma outra forma conseguiria. Caminhar por entre os prédios, os carros, os ônibus, ciclistas e pessoas, o barulho e o movimento do mundo sempre foi algo que me fascinou, como se houvesse ali um universo de mensagens, lições, descobertas e inspiração que não podiam ser desprezadas e hoje, ao entender o verdadeiro propósito das minhas caminhadas, percebo que, para mim, elas funcionam como uma verdadeira meditação que me proporciona o melhor material para produzir meus trabalhos e chegar aos corações dos leitores, pois o que acontece nas ruas é o que acontece com todo mundo, a toda hora; as personagens e suas histórias estão todas ali, diante de mim, na banalidade que encerra todas as grandezas e as misérias, todas as verdades e as mentiras. O quadro que se apresenta perante meus olhos -e do qual faço parte- contém todos os elementos de que preciso para dar a minha mensagem e cumprir a minha missão. Nâo necessito de paisagens longínquas ou utópicas para falar com propriedade e sinceridade sobre a humanidade e a sua história, pois ela acontece a cada dia, aqui mesmo, ao meu redor, enquanto percorro as ruas da minha cidade toda manhã...
Temos que sair para o mundo e misturar-nos com ele, senti-lo, tocá-lo, escutá-lo, enxergar suas infinitas faces, perceber suas nuançaçs, descobrir seus segredos e contar-lhe os nossos. Nâo precisamos dar a volta ao mundo para aprender sobre o homem e a sua existência, bastam 45 minutos de caminhada todo dia pelas ruas perto de casa.

Manhãs

Bom, hoje vou começar postando a crônica que saiu publicada no jornal esta semana e depois vou postar uma outra, porque esta é muito curta (como o jornal exige agora) Sinceramente, nem sei como consegui esta proeza, mas foi um excelente exercício, afinal nem todo mundo tem tempo ou paciência para ler um testamento!... Nada contra a brevidade, mas para aqueles que esperaram uma semana para ler a minha seguinte crônica (e espero que sejam muuuitos!) acho que seria meio frustrante ter só a do jornal para ler, que é a brevidade em pessoa. Então, aqui vai ela e logo depois, a segunda.

As manhãs são, definitivamente gloriosas. Gloriosas em qualquer lugar, em qualquer estação, em todas as idades. Manhãs significam novos começos, novas oportunidades, novas experiências, promessas a se cumprirem, esperanças renascendo. São a luz do arrependimento, a ação reparadora, a palavra de alento, o afago da fé, o perdão para nós mesmos. Os anjos viram pardais, bem-te-vis, andorinhas, sanhaços e sabiás que cantam ao amanhecer, chamando-nos para presenciar mais uma aurora de expectativas. O sol invade as nossas, até ontem miseráveis e escuras, sem pedir licença, e o ar frio renova os nossos sentidos, chacoalha nossos sentimentos... Somos santos pela manhã!... É como se tudo acontecesse pela primeira vez. Tornamos a ser crianças, virgens, corajosos, crédulos, alegres e inocentes como o céu que se anuncia. Nada existe ainda fora dos limites do nosso coração intocado, então é o tempo de criar, de planejar, de aprender e assumir, de enxergar e compreender. De começar a amar e a sermos amados.
Deveríamos viver todo dia, o dia todo, de manhã, sempre atentos e otimistas, expectantes; deveríamos conservar o frescor, o vigor, a paciência e a consciência do amanhecer... Como Deus e os anjos estão perto pela manhã! Nada temos senão a eles nesta hora. Se vivéssemos de manhã os sentiríamos sempre junto de nós, dentro de nós, em tudo que nos rodeia... Como seria morrer quando o dia nasce? Seria como dizer adeus à noite, abrir as asas e voar em direção da vida que se avizinha? Ou seria como entrar no sol e se espalhar pelo mundo com a sua luz?...

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Alunos

E a última, finalmente!... Bom, agora estou em dia com as crônicas publicadas no jornal. De agora em diante, assim que saírem vou passá-las para o blog, se bem vão ser extremamente curtas, porque agora só permitem 30 linhas, então com certeza naquele dia vou postar duas crônicas... Bom, escrever nunca é demais, não é mesmo?...

Dá gosto vê-los assim, em silêncio, concentrados, olhos fixos na folha de papel, o lápis deslizando velozmente pelas linhas, enchendo-as de caracteres, de ideias, de personagens e histórias... O sol se põe lá fora, a cidade se aquieta, toma banho, arruma a mesa para o jantar, as cozinhas se enchem com os perfumes da sopa, do bife, do arroz, do feijão; o vento refresca, murmura. De repente, uma revoada de pardais pinta o céu rosado de flechas escuras que desaparecem na mangueira da casa vizinha, fazendo a sua algazarra de costume, felizes porque a jornada termina e se preparando para a próxima. O sino de vento pendurado na janela da sala toca sutilmente, sem perturbar a tranqüilidade do ambiente. Da minha cadeira frente à porta aberta continuo a observá-los e sorrio... Estão criando, sonhando, inventando, viajando, se digladiando com os adjetivos, as vírgulas, as reticências, os diálogos, a concordância, a terrível ortografia... Posso perceber seu esforço pelas suas expressões -como de quem penetra às machadadas numa selva fechada. Não imagino qual será o resultado desta aventura, mas o importante é que, pela primeira vez, estão se mostrando, falando deles mesmos, ousando adentrar no universo da expressão pessoal, dos sonhos, das confissões. Adoro esta coragem que demonstram a cada linha completada, assim como adoro esta mesma coragem em meus outros alunos -os de teatro e desenho- toda vez que aceitam e vencem os desafios de cada aula. E isto acontece sempre que a sua entrega à disciplina é total e verdadeira.
Uns demoram mais para se encontrar, outros menos, uns poucos já vêm prontos. Alguns chegam longe, outros não ousam se aventurar para além dos limites seguros, uns poucos desistem (e eu fico torcendo para que decidam tentar novamente, mais adiante) derrubados pelos seus próprios fantasmas ou expectativas exageradas... Porém, mais cedo ou mais tarde, todos têm algo a dizer, nem que seja uma frase, e o fazem com toda a alma, e é por isso que a sua produção é boa, significativa, valiosa...
Eu os contemplo desde a minha cadeira e aprendo com eles.

União

Ainda não bati meu recorde diário, mas aqui vai a terceira de hoje:
Está tendo um evento no cine teatro e eu estou na cozinha tomando meu café da manhã (hoje não deu tempo de tomar em casa, o despertador decidiu folgar e me fazer pular esbaforida da cama), sentada no único canto vazio da mesa com meu copo de chá e minhas bolachas e observando a azáfama em minha volta... Há as pessoas importantes, que subirão no palco para dar suas palestras. Há os organizadores, que correm atrás das coisas burocráticas e práticas para que o evento dê certo. Há o iluminador, que fica sentado na cabine lá em cima e põe toda a parafernália do teatro para funcionar a fim de amparar o palestrante. Há as recepcionistas na porta, elegantemente trajadas, maquiadas e penteadas, que têm de entregar os programas e recepcionar e conduzir às autoridades aos seus respectivos lugares com extrema polidez e um sorriso encantador à flor de lábios. Há o decorador, que perde o sonho planejando a decoração dos arranjos de flores nas mesas, no palco e em lugares estratégicos do saguão de entrada, escolhendo a cor das toalhas, dispondo os panéis com fotos e cartazes. Há a nutricionista, que confecciona o cardápio que será servido no intervalo e supervisiona o pessoal da cozinha. Também há as cozinheiras, que estão aqui ao meu lado, correndo e suando, de avental branco e touca, e que cortam sem descanso pãezinhos, tomates, alface, presunto, queijo; misturam atum e maionese, coam café, fervem chá, enchem jarras e mais jarras de sucos coloridos e gelo, enxáguam copos e xícaras, pratos, facas, colheres, jarras e bandejas. E finalmente, estão as zeladoras e os serventes, carregando suas vassouras, pás, mangueiras, enxadas, baldes e panos molhados, encarregados de manter o local brilhante e perfumado, os banheiros com sabonete e toalhas limpas, papel higiênico e pias secas... Todo mundo parece tremendamente ocupado com as coisas que têm a ver com a sua área do evento e cada uma delas se torna a mais importante para quem nela trabalha. As cozinheiras nem pensam no nervosismo das recepcionistas. O palestrante não imagina a dor de cabeça que os organizadores estão tendo para solucionar os imprevistos que podem fazer da sua apresentação um fracasso. Ninguém se preocupa com a agonia do decorador vendo seus arranjos desmanchados e suas toalhas sujadas por aquele bando de convidados esfomeados e aparentemente sem nenhuma educação. Ninguém se lembra das costas enrijecidas do iluminador, sentado horas a fio naquela cadeira incômoda...
Olho para esta espécie de guerra silenciosa e feroz à minha volta e me pergunto se isto é trabalhar em equipe. Fazer somente a sua parte, sem se preocupar com a dos outros, vai facilitar o trabalho? Ocupar-se unicamente da sua área com eficiência fará mesmo com que tudo corra direito?Olhar só para o próprio objetivo resultará no sucesso geral do evento? Núcleos agindo separados podem ser chamados de um todo perfeito?... No entanto, no fim, uns vão aproveitar o trabalho e a eficiência dos outros para obter o resultado esperado por todos, então, estão interligados quer queiram, quer não. Uns dependem dos outros -apesar de digladiar-se no mesmo campo de batalha- para que tudo funcione harmoniosamente.
Nâo importa quanto queiramos separar-nos, sempre permaneceremos ligados uns as outros de alguma forma, dependeremos uns dos outros, precisaremos uns dos outros, pois estarmos juntos não significa só partilhar o mesmo espaço, mas o mesmo objetivo e o mesmo amor.

Casas

Acabei de escrever para a editora da Folha de Londrina dizendo que o dia que amanheço inspirada sou perigosa... Bom, dito e feito: acho que hoje vou me dar ao luxo de postar algumas coisinhas a mais. Bom para mim, bom para vocês!... Vocês curtem lendo e eu curto ainda mais escrevendo. A balança fica equilibrada. E aqui vou, armada e perigosa:

As casas, assim como nós, também vão adquirindo cicatrizes ao longo do tempo. Enchem-se de ferrugem, rachaduras, manchas, descascados e remendos; o corredor lateral ou o quintal do fundo vão sendo tomados por caixas, móveis velhos, vasos, suportes de metal, restos de material de reformas, ferramentas e um monte de tralha que não sei por que as pessoas têm dó de jogar fora.
A construção nova e bem definida na qual fomos morar há dez anos foi se transformando, adquirindo novos contornos, cores e cheiros por causa da nossa permanência nela. Surgiram manchas, cantos, prateleiras, quartinhos, grades, áreas, canteiros e degraus que foram aos poucos mudando a sua fisionomia original. Uma plácida e condescendente desordem espalhou-se pelos cômodos, pois cada habitante foi arrumando as suas coisas de acordo com as suas necessidades ou estados de espírito. Assim, parece que cada parte da casa tem um pedaço da personalidade de seus moradores, o que lhe confere um ar bem eclético e por vezes meio caótico, mas que é tremendamente íntimo e cheio de significados.
A rotina doméstica impõe rituais que vão ocupando implacável e definitivamente os espaços, tornando-os por isso muito especiais e amados, como portos seguros em meio às mudanças e correrias do mundo lá fora. Todos os defeitos e marcas que a nossa casa foi adquirindo ao longo dos anos -seqüelas da nossa existência nela- contam a nossa história e mostram a nossa personalidade, unindo-nos a ela com laços de uma força que jamais imaginaríamos. Nem sempre são transformações planejadas ou acontecidas de maneira agradável, mas são, certamente, inevitáveis, pois a nossa casa -a construção de alvenaria, ferro, madeira e vidro- não é insensível ao nosso existir. Se sempre deixamos a nossa marca por onde pasamos, o que será então do lugar no qual moramos por anos e anos!...
Gosto de casas novas cheirando a tinta e argamassa, com seus jardins planejados e cada móvel e enfeite em seu lugar, mas, definitivamente, prefiro aquelas que têm uma história para contar, que se orgulham -ou não- de mostrar as suas cicatrizes, manchas e remendos, suas rachaduras e tralhas, suas portas que rangem, suas áreas desordenadas, seus quartos cheios de personalidade e significado, de objetos queridos.
Hoje, quando caminho pela minha casa, sinto como se estivesse fazendo-o dentro de mim mesma. É meu território, meu refúgio, parte da minha identidade, e me orgulho de cada marca que nela deixei e vou deixar ainda, pois trata-se da minha vida, da minha história, que está transcorrendo entre estas paredes, transformando-as num fiel reflexo do que sou. Casa novas estão mortas até que o dono lhes impregna a sua história. Casas velhas estão vivas porque já existiram junto com o dono e dele sabem tudo, transformando-se no espelho da sua alma.

O coração da rosa

Bom, e ao contrário da semana passada, hoje estou absolutamente animada, o que prova que as situações negativas não duram para sempre. Só é necessário ter a coragem de passar por elas ao invés de fugir, pois a dor aceita e vivida na certeza da mudança positiva sempre nos ensina alguma coisa... E tão animada estou, que acho que vou postar mais do que uma crônica (até porque esta é bem curta) assim aproveito de terminar com esse negócio das crônicas publicadas no jornal... Tenho o dia todo para escrever, escutar música, sentar no quintal para desfrutar do sol e da brisa, conversar com a minha cadela, observar e escutar este mundo que me rodeia e meditar sobre tudo um pouco. Na verdade, tenho hoje, amanhã, depois de amanhã e domingo para fazer isto, já que a minha semana de trabalho termina nas quartas (morram de inveja!) então tenho quatro preciosos días para me dedicar a tudo que gosto. Assim compenso os primeiros três dias que são meio puxados e nos quais não tenho tempo nem fôlego para sentar aqui escrever... Realmente, a cada dia que passa me convenço mais de que a minha nova situação na Fundação é muito mais positiva do que imaginei!... Deus sabe o que faz, não é?.

Casa velha, pobre, de muros lascados enegrecidos pelas cascatas de incontáveis chuvas e causticantes dias de sol, grades enferrujadas, vidros quebrados, jardim mesquinho e sem muros ostentando uma triste horta, rala e amarelada, mais mato e pedregulho do que couve ou almeirão. Latas tortas e ressecadas com alguns raquíticos pés de cebolinha e salsinha de folhas murchas e escassas... Tijolos velhos, pedaços de metal, garrafas plásticas, sacolas com lixo, tábuas, galhos secos, uma bola murcha, que já conheceu gloriosos dias de animadas peladas em algum campinho do bairro, junto de um pote de iogurte, folhas de jornal com fotos descoloridas... Não dá vontade nem de passar diante dela... E de repente, sem aviso, assim do nada, uma surpresa: ao percorrer o curto espaço ocupado pelo seu muro arruinado e solitário, uma rajada de perfume conhecido me envolve feito uma carícia.
Diminuo o passo e olho em volta, curiosa, pois não imagino de onde provém aquele aroma. Então, meus olhos esbarram num botão de rosa que se ergue, firme e ereto, rente à grade carcomida. Paro bruscamente, totalmente surpresa, pois ontem ele não estava ali, e fico olhando para a roseira que desponta por trás dos tijolos. Num outro galho, uma flor aberta, de um rosa intenso, fresco, novo, com aquela inocência de quem ainda não viu o que o mundo tem de feio e triste. Pétalas de veludo, porte imperial, cheio de orgulho e coragem. A rainha das flores enfeita galhardamente o jardim pobre e maltratado, coberto de mato e lixo...
A brisa fresca traz de novo o perfume ao meu nariz e meus olhos se maravilham com aquela imagem, incrédulos. Fico parada ali por um longo tempo a contemplar esta rainha misericordiosa e sem preconceitos, e me emociono com a magnanimidade da sua beleza, com a sua majestosa indiferença diante da feiúra que a circunda, pois penso: "E não é assim mesmo com as pessoas? O divino não reina em todos nós, dentro de nós, e nos embeleza apesar de toda nossa imperfeição e miséria? O divino não está sempre escondido em qualquer lugar, aguardando para manifestar-se e transformar tudo?".
Podemos ser imperfeitos a maior parte do tempo, mas isto não abala a nossa divindade interior. Ela continua ali, sempre, pois é nossa. É só ter um coração como o da rosa, magnánimo e sem preconceito -especialmente para com nós mesmos- que ela florescerá e embelezará até o mais arruinado dos jardins.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Encontros

Hoje me sinto um pouco desanimada, talvez porque estou há três dias sem escrever por causa do meu trabalho (escrever é um verdadeiro tônico para a minha saúde mental, espiritual e física, acreditem!), ou porque ontem verifiquei as minhas dívidas -que parecem não ter fim porque, bem quando você encerra uma, surge outra coisa urgente e precisa gastar de novo- e vi que vou ficar apertada praticamente até o fim do ano (de novo!), o que não é um panorama muito animador. Vou pagar tudo, mas não vai sobrar nada... Bom, pensando bem, esta é a situação de quase toda a população do Brasil -ou talvez do mundo!- então não devo me sentir sozinha ou estranha neste meu drama. Se não tivesse perdido as minhas horas extra com a mudança de gestão na Fundação, as coisas seriam bem mais fáceis, mas como vocês sabem, política é aquela coisa: as pessoas, feito lobisomens quando há lua cheia, transformam-se em verdadeiros monstros e não perdoam nada nem ninguém; não perguntam se você concorda, se você é capaz, se você vai ficar bem com as exigências e mudanças. Você tem que acatar e acabou. Não digo que a minha situação enquanto ao trabalho em si esteja ruim -ao contrário, está sendo um desafio, no mínimo, fascinante, no qual tenho muitas esperanças apesar da minha falta de experiência com crianças- o problema é que perdi aquelas horas extra (que eram mais de 30) e com isso meu dinheiro deu uma murxada dramática, desequilibrando todas as minhas finanças. Realmente, é isto o que me incomoda mesmo, aliado à certeza de que, nos próximos três anos a situação não vai mudar, sobretudo se eu desenvolver um bom trabalho nas escolas. Aí é que nem vão cogitar em mudar as coisas!.. É engraçado, porque ao mesmo tempo em que será um elogio e uma prova da minha capacidade, vai fazer com que continue tendo que fazer milagres com o salário!... Ah, essas coisas da vida... Se ao menos o pessoal da Folha de Londrina me oferecesse um espaço fixo para escrever e me pagasse por isso... Nossa, seria um sonho feito realidade!... Talvez só precise esperar um pouco mais, ou talvez, através deste blog, tenha a sorte de encontrar alguém interessado em publicar meus textos em troca de pagamento. Amo escrever, é a coisa mais importante em minha vida, mas também preciso comer, me vestir e pagar aquelas malditas dívidas!...
E com esta nota tão otimista, aqui vai a crônica desta semana, com a dúvida costumeira: será que já a postei?:

Um encontro não é, definitivamente, um fato qualquer. Pelo contrário, pode ser um acontecimento na vida daqueles que o protagonizam. Lembro daquele gari com quem cruzei um dia a caminho do meu trabalho: baixinho, miúdo, de pele morena queimada pelo sol, olhos puxados, escuros e brilhantes, e um pretensioso bigodinho enfeitando seu sorriso semi desdentado, chapéu nordestino sobre os cabelos crespos, vassourão de piaçaba e aquele uniforme laranja luminoso da prefeitura.
Folhas, papéis, gravetos, embalagens de iogurte e sorvete, de salgadinho e chocolate, latas de cerveja, cacos de garrafa, copos plásticos e sacolas de mercado iam formando um enorme monte no meio-fio, vigorosamemnte empurrados pela sua vassoura, até chegar na esquina do quarteirão, onde eram recolhidos por um outro gari e jogados dentro de um grande saco de lixo preto que forrava um latão ao qual havia sido acrescentado uma espécie de carrinho com rodas. Dos lados, nos ferros que serviam de suporte, estavam penduradas as sacolas que levavam a garrafa de café, a de água, e a marmita de cada um...Aquele era um trabalho pesado e ininterrupto, já sob o sol escaldante do verão, já no frio cortante do inverno, um trabalho sem encantos, sem regalias, sem futuro, ingrato e desgastante, mas acima de tudo inútil, pois na madrugada seguinte, quando o caminhão o levasse para as ruas, ele sabia que iria encontrá-las tão sujas quanto no dia anterior...
E, no entanto, ele cantava. Alto e claro, uma atrás da outra, modinhas antigas que falavam sobre amor, decepção, seca, solidão e saudade, aventuras de sertanejos e tropeiros saiam da sua boca feito uma cascata... Aqui devo dizer, então, que o nosso encontro -o primeiro de muitos- não aconteceu no instante em que nossos caminhos se cruzaram, mas bem antes, a quase um quarteirão de distância, e que não foi um encontro visual, mas auditivo.
De longe comecei a escutar o murmúrio indefinido da sua voz e logo pensei tratar-se de alguém no interior de uma casa, alguém feliz e cheio de esperança, bem o contrário de como estava me sentindo naquele dia. Mas à medida que fui me aproximando do gari -a quem já tinha avistado em seu berrante uniforme- percebi, para minha surpresa, que quem cantava era ele. Possuía uma vozinha tão miúda quanto ele mesmo, mas cheia de sentimento e inspiração, que interpretava a melodia como se estivesse diante de uma grande e atenta platéia. Bastante desconcertada com a sua "ousadia" (afinal, ninguém sai por aí cantando à toa!) passei por ele da forma mais desinteressada possível, mas não consegui segurar meu olhar e ele, teimoso, desviou do horizonte e foi pousar na figura inclinada sobre o meio-fio... E qual não seria a minha surpresa e emoção ao me deparar com o sorriso do gari, que se ergueu naquele instante e começou a cantar para mim!... Ele, inclinado o dia inteiro sobre o lixo do nosso descuido e falta de educação, enfiado naquele macacão surrado e quente, ganhando salário mínimo e empurrando este vassourão feito um cavalheiro que empunha a sua lança contra o dragão, sorria e cantava para mim, só para mim!... Como num passe de mágica, tudo que me aborrecera até esse momento desapareceu, levado pela voz melodiosa do gari que, após entoar as primeiras estrofes olhando direito nos meus olhos, abaixou-se e continuou seu trabalho e a sua canção como se nada tivesse acontecido, porém, tendo deixado, sem saber, o resto do meu dia cheio de leveza e esperança. Percebi então que isto acontecera porque, naquele breve encontro, ele tinha me brindado com o melhor de si, mesmo sem me conhecer ou esperar algo em troca.
Sempre me impressionou o depoimento de uma freira que conviveu com santa Terezinha do Menino Jesus, no qual ela se refere ao "sorriso luminoso" com que a santa a presenteava toda vez que cruzava com ela. Nada de extraordinário encontrava ela em Terezinha, a não ser aquele sorriso que parecia dedicado exclusivamente a ela... Mas, e nós? Por que somos tão descuidados em nossos encontros com os outros? Mal os enxergamos, mal lhes dirigimos um cumprimento automático, sem sentimento, não nos interessamos em saber quem são, o que desejam, ou se trazem alguma mensagem ou ensinamento para nós. Os tratamos, simplesmente, como seres anônimos, invisíveis, inúteis, que não formam parte dos nossos planos, nos quais a única pessoa que conta somos nós mesmos... Devíamos é fazer como santa Terezinha, ou como aquele pequeno gari que cantou para mim: dar o melhor de nós em cada encontro, porque nunca sabemos o que ele pode nos trazer, se ele salvará nosso dia ou mudará a nossa vida.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Atravessar a rua

Ainda sem ter certeza de quais crônicas já postei aqui, continuo publicando as que apareceram no jornal (coisa que deveria ter feito no início) então, se tiver alguma repetida, vão ter que me desculpar.
Hoje estou absolutamente feliz porque aquela amiga-secretária-cúmplice que tinha ido embora para viajar para Portugal -a Ivonete- voltou à minha casa e como conseqüência tudo tornou a ser organizado, limpo, sereno e com um ótimo astral. Nâo tem coisa pior para alguém como eu -extremamente organizada e sistemática, que precisa de ordem e rotina para produzir- do que não se sentir confortável, contente e segura em sua própria casa. Andar por aí feito cigana para dar aula nas escolas não é tão difícil porque, fora ser um trabalho, no fim, isto vai acabar se tornando uma rotina em meu dia-a-dia (pelo menos em três deles) que já estou começando a assimilar de forma bastante positiva, mas ter essa sensação de transitoriedade e falta de alicerces na própria casa é algo inadmissível para mim. Afinal, nosso lar é o nosso castelo, nosso universo, é onde guardamos as coisas mais preciosas e onde temos a chance de sermos completamente livres e espontáneos. E é inacreditável, mas esta mulher -algum tipo anjo solto na terra- tem o poder de me fazer bem, de me deixar serena e feliz, de me fazer sentir que meu mundo está em equilíbrio e harmonia e que por conta disso posso ficar sossegada e me ocupar com as coisas que realmente importam. O resto fica por conta dela e tenho certeza absoluta que não irá me desapontar. E isto é algo que não tem preço. Pessoas como a Ivonete devem ser valorizadas, imitadas, escolhidas como companheiras e confidentes... Tem hora que paro para pensar e ainda me maravilho com o poder -positivo ou negativo- que algumas pessoas têm sobre nós e o nosso ambiente. Conheço alguns que fazem realmente mal, que são feito doenças ou vampiros que sugam tudo que tem de positivo dentro de nós e ao nosso redor, porém, felizmente, também conheço pessoas como a Ivonete, que equilibram a balança e fazem do mundo um lugar melhor para quem cruza com elas ou tem o privilégio de conviver ao seu lado.
E em meio à tanta felicidade e calma, aqui vai a crônica desta semana:

Sempre me chamou a atenção esta frase: " Não há que buscar novas paisagens e sim olhar a paisagem com novos olhos."... Parecia-me um pouco desconcertante, como se o conselho fosse permanecer parado, esperando alguma coisa cair do céu, não sair do lugar para ir à procura de novos horizontes, de mudanças, de crescimento. Aí, eu me perguntava: aquela era mesmo uma frase digna de ser publicada e celebrada? E, sem querer, fiquei meditando sobre ela, sobre seu mérito, seu propósito. E venho pensando nela desde que a li numa folha de papel pregada na parede de uma das salas da Fundação Cultural. Quem a teria colocado ali? E com que intuito?... Sem resposta.
Mas, então, aconteceu que outro dia voltava do centro no fim da tarde, caminhando pela mesma rua pela qual volto todo dia, quando, não sei por quê, decidi atravessar e vir andando pela outra calçada. Talvez o sol batesse com menos força daquele lado, talvez as árvores oferecessem mais sombra, talvez a calçada fosse menos acidentada ou, quem sabe, pegasse uma carona com algum conhecido vindo pela mesma rua... Primeiro não percebi nada de diferente, mas, depois de avançar alguns metros, ergui os olhos e os deitei pela rua acima... Que surpresa! Uma visão totalmente diferente, nova, da velha rua, se descortinou diante de mim!.
Parei, totalmente surpresa, e soltei uma silenciosa exclamação e um sorriso. A famosa frase veio como uma lufada de vento ao meu cérebro... Como eram diferentes as coisas desde este outro ângulo! As sombras, as árvores e as casas, a perspectiva das outras ruas perpendiculares, dos jardins, da padaria, da locadora, do bar...Até as cores e os sons pareciam ter nuances diferentes, vozes novas, falas desconhecidas! Estava pasma. Mudar o ângulo -o olhar- realmente muda a paisagem. Tudo é novo, tem outras dimensões, outras conseqüências, você consegue enxergar o que não via da outra posição. Todos os conceitos se reformulam, segredos são revelados, a nossa própria postura muda, o vento sopra de outros lugares, traz outras mensagens... Velha paisagem, novos olhos: transformação.
Compreendi então o sentido daquela frase da folha na parede. Não há que cansar-se de olhar, pois a paisagem possui mil nuanças e lições que somente com novos olhos, nova disposição e curiosidade poderemos enxergar e aproveitar. A rotina é uma assassina. Nos esmaga, nos embrutece, nos mutila, porém, geralmente somos nós mesmos quem permitimos que ela nasça, cresça e se instale em nossas vidas, aniquilando-as e roubando-lhes todo o prazer e a alegria, o frescor , a criatividade, a percepção e a inocência que são seu motor, tornando-nos assim velhos enfastiados, sem esperança, sem luz.
Olhar a vida cada dia como o milagre de diversidade que ela é, é um tônico para a saúde e faz crescer a alma e a vontade de continuar e se renovar. Basta uma piscada e tudo terá mudado, inclusive nós mesmos... Por que não atravessar a rua?

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Fotografias

Eu não tenho certeza de se já postei esta crônica no blog, mas como quero deixar em dia o assunto das crônicas publicadas no jornal, vou postá-la mesmo assim e logo postarei as outras. Deste jeito poderei continuar só com as mais atuais (tem uma pilha enorme em cima da minha mesa que fica me olhando o tempo todo e dizendo: "Por favor, quando vai chegar a nossa vez?"... Bom, agora que a minha vida está mais ordenada vou poder fazer isto porque estou começando a aproveitar melhor os finais de tarde, depois que chego do trabalho, para escrever e meditar sobre as coisas que vi, experimentei, descobri e conclui ao longo do dia, o que com certeza vai render muitas crônicas. Não estou podendo caminhar todos os dias de manhã, que é a minha hora favorita e a mais produtiva, porque trabalho segundas-terças e quartas o dia todo, mas ainda tenho quintas, sextas e sabados para fazer isto, então nem tudo está perdido, pois não importa a hora os encontros e as experiências continuam acontecendo e enriquecendo a minha vida. Inclusive as aulas que estou começando a ministrar nas escolas estão sendo uma fonte de inspiração, pois estes meus novos alunos não são aquela coisa estressante e negativa que eu receava, mas turmas bastante civilizadas e bem dispostas, como já disse antes. Os locais onde trabalho são aceitáveis e estou me enchendo de otimismo com respeito ao trabalho que vamos desenvolver. Acho que vamos nos dar muito bem nesta parceria... Na verdade, quem está mais magoado e inconformado com esta aparente humilhação e rebaixamento que sofri no trabalho é a minha vaidade, que não aceita nem acredita que meu talento possa brilhar em planos mais modestos e alternativos... Ah, a vaidade! Vaidade das vaidades, tudo é vaidade!, já dizia o sábio... Mas eu acho que estes novos desafios e mudanças têm uma razão de ser e preciso enfrentá-los de peito aberto, com bom humor e criatividade. Acho que talvez eu estava precisando mudar a minha rotina e, mesmo que seja meio conturbado no início, que passe alguns desgostos, reclame e me sinta insegura, a situação só vai melhorar. Afinal, Deus sabe o que faz, não é mesmo? Então é preciso que eu faça a minha parte da melhor maneira possível para que tenha um resultado de sucesso, como espero.
Bom, e aqui vai a desta semana.

Samuel Becket, com olhar severo e distante, sentado à mesa de madeira rústica do que parece ser uma lanchonete de beira de estrada. Foto em preto-e-branco... Bernardette Soubiroux, a menina de Lourdes, rosto rude, sobrancelhas espessas e olhos escuros e receosos. Foto granulada em preto-e-branco... Antonia Merced, "la argentina", alta e esguia, expressão enlevada, parece irradiar uma luz especial em sua postura de dança... Vaslav Nijinsky dando sua última pirueta, velho e gordo, braços grotescamente levantados, terno escuro, cabelos brancos e ralos. Imagem surreal em preto-e-branco da loucura que o abateu, roubando-o dos palcos mundiais...
Lendas, mitos, personagens mais do que pessoas. Porém, quando olho para elas descubro corpos densos, rugas, defeitos, brevidade, mortalidade. A humanidade de carne e osso usando roupas, com expressão, cabelos, unhas, pensamentos, fome, sede, sono, sexo. Os mitos são pessoas como eu, simplesmente, primeiramente, e a faísca especial que aparece em suas ações não brilha nestas fotografias, pois, descubro, ela não jaze na imagem, mas no agir... Há algo de tão banal, real, pesado e opaco nas fotos, algo de tão próximo e conhecido que me deixa desconcertada, pois percebo que as lendas são iguais a mim: carne, ossos, cabelo, pintas, cãs, feiúra, receio, dentes tortos, lábios finos, barriga, unhas roídas... Então me dou conta de que são as ações que elas realizaram o que transformou a sua estrutura -ou o nosso olhar. Da carne efêmera e corruptível pode se extrair a manifestação do espírito, porém, esta raramente é captada pela lente de uma câmera.
Todos somos iguais em corpo e alma, pequenos gigantes, breves como um piscar, porém, também somos capazes de transcender, de impregnar esta imagem externa com a chama da divindade que abrigamos. Na fotografia vejo a lembrança de um corpo vivo. A história das suas ações me mostra o espírito que sustentava este corpo.
Então, esta é Teresinha do Menino Jesus, tão palpável, tão próxima. Existiu mesmo, e tinha a sua cama, seus sapatos, a sua roupa, com seu cheiro peculiar... Foi neste convento, em Lisieux, neste pátio, ao pé desta cruz de pedra, que esta foto foi tirada... E nesta outra ela já estava doente. E nesta, na enfermaria do convento, já falava para as suas noviças todas aquelas coisas que eu li. Estava morrendo, deitada naquela maca cheia de travesseiros... Aqui, Júlio Cortázar com o cachimbo, grandes olhos negros e a mecha rebelde caindo-lhe na testa. Adoro seus contos surrealistas...
Todas estas pessoas existiram -e existem- para mostrar alguma coisa sobre o que é sermos humanos. E há infinitas opções!... Podemos ser humanos das mais impensadas maneiras, e se conseguirmos mudar alguma coisa e fazer com que a humanidade dê mais um passo -grande ou pequeno- então seremos lenda também.