domingo, 30 de agosto de 2009

Acreditar em nós

Bom, como se diz acá, "quem não tem cão, caça com gato", e é isto que estou fazendo. Consegui que o pessoal do lugar onde estão consertando meu monitor me emprestasse um dos deles enquanto não me devolvem o meu, assim posso postar as crônicas e escrever sem ter que ficar me escondendo dos outros lá na Fundação, pois com certeza não iriam entender nem aceitar que se trata de uma emergência e achariam que estava perdendo meu tempo -no qual deveria estar cortando garrafas plásticas- e ainda por cima usando material da fundação para coisas pessoais, o que é proibido (mesmo se eu tenho pego eles muitas vezes usando seus computadores para isto) Em fim, as nuvens se afastam e posso desfrutar dos primeiros raios de sol após algum tempo de nuvens densas. Consegui amansar a minha glicemia mediante uma mudança de horários nas refeições e uma fechada radical de boca -que, afinal, não está sendo tão difícil, sobretudo quando vejo os resultados: perdi 3 quilos em 10 dias!- e agora voltou àqueles números totalmente tranqüilizadores. O resto dos meus exames estão mais do que perfeitos (como podem perceber, este é o mes dos check-ups gerais) tive uma grata surpresa com os alunos dos quais menos esperava, percebi que tem uma quantidade impressionante de "anjos" à minha volta sempre tentando facilitar as coisas para mim e, graças a um grande amigo, entrei em contato com uma pessoa que talvez coloque as minhas crônicas em alguma publicação -com salário e tudo isso!- de forma periódica e estável. Nâo vou deixar de enviar meus textos para a Folha de Londrina, pois sei que tenho leitores fiéis ali, mas se conseguir esta outra chance, será como um trabalho definitivo que até, talvez, me permita dar um tempo na Fundação, pois como já disse, adoro meu trabalho, porém não da forma como estou tendo que desenvolvê-lo agora. Se bem que ainda tenho algumas dúvidas sobre qual é o destino dele nesta etapa aparentemente tão difícil e que estou começando a vencer. Mas... Essa é uma outra história que depois contarei para vocês. Por enquanto, aqui vai a crônica desta semana.

Porcas, parafusos, manivelas, placas, rodas dentadas, restos de peças de motor, pregos, baterias, cabos de aço... Meu tio juntou tudo isso com um maçarico para ganhar uma aposta que fez com os funcionários da sua oficina mecânica -numa brincadeira para tentar se desfazer das peças que se amontoavam no fundo do galpão- e assim, de supetão, sem nem ter muita noção, acabou descobrindo que era um artista -um escultor- depois de velho, casado, com filhos na faculdade e uma profissão estabelecida (mecânico de automóveis). Numa inspiração repentina, soldou aquele dia algumas das peças que estavam jogadas na oficina e de repente descortinou-se diante dele, um senhor tão formal e pacato, ex-camponês (mas que adorava música clássica e jazz) e filho de uma professorinha rural, um novo e maravilhoso universo cheio das mais insuspeitadas e fascinantes possibilidades: a arte. Foi como abrir as comportas de uma represa. Aos poucos, porém de forma ininterrupta e cada vez com maior perfeição, começaram a emergir do seu coração e da sua mente todas as formas e cores que durante anos haviam permanecido trancadas dentro dele, relegadas e ignoradas em nome de coisas "mais importantes", e a sua casa se encheu destas suas pequenas e graciosas obras. Logo, uma parte da oficina transformou-se em seu ateliê, para espanto dos seus funcionários, amigos e parentes, que jamais o imaginaram mexendo com esse tipo de coisa, e a sua viagem, agora desimpedida, continuou seu percurso com um entusiasmo quase infantil. E não parou por ali. Descobriu o encanto de criar portões e grades, biombos e sacadas, e teve de ocupar mais um pedaço da oficina para desenvolver suas novas idéias. A escolinha da esposa, as janelas e portas e os jardins da casa e de outras -porque começaram a aparecer encomendas, até de fora!- viram-se enfeitadas pelo seu trabalho primoroso e original. E todos que o conheciam se admiravam e comentavam: "Pôxa, ninguém esperava um negócio desses, e depois de velho!"... Alguns até tiravam um sarrinho, mas ele não se deixava abalar e continuava firme e satisfeito a percorrer com lealdade e alegria este novo caminho que aperecera em sua vida feito um delicioso presente do destino. Parecia que uma nova existência tinha começado para ele!...
Hoje, a cidade está semeada dos seus trabalhos e é por causa deles que a sua memória está sempre presente e é muito querida, pois muita gente tem uma bela amostra de quem ele foi e do que foi capaz de realizar, mesmo quando parecia que seu tempo e as suas chances tinham acabado.
Quando eu soube desta sua nova atividade e vi seus trabalhos fiquei realmente contente, já que isto provava que não só da parte da família do nosso pai havíamos herdado os nossos talentos e a nossa sensibilidade artística. As pessoas do campo também podiam ser -mesmo contra o esperado- sensíveis, gostar da boa leitura e da música erudita. Meu tio realmente surpreendeu a todos com este tardio despertar dos seus dons artísticos e ganhou todos os elogios e o apoio da a família pela sua coragem e persistência... Porém, às vezes eu ficava olhando para a minha mãe, sua irmã mais velha e bibliotecária formada à revelia, e me lembrava de todos os sonhos dos quais ela teve de abdicar, mesmo tendo falado sobre eles para meus avós: ballet, piano, teatro... Porém, como mulher, naquela época, seu dever primeiro era casar, ter filhos e trabalhar nalguma profissão "formal" que ainda lhe deixasse tempo disponível para cuidar eficientemente da casa e ser uma boa mãe. Meus avós não deram a ela nenhuma chance para tentar explorar seus talentos e descobrir se eles poderiam levá-la a algum lugar. Então ela própria, desenganada, não quis lutar por eles nem retomá-los a gora que nós estávamos crescidas e independentes. O tio Armando teve a sua oportunidade e a agarrou, cumprindo assim, talvez, a última parte do seu destino com sucesso. Já a minha mãe, após esta primeira e terrível decepção, só foi acumulando uma frustração após a outra, como se esse fosse o destino dela. Se os próprios pais não acreditavam nela, por que ela o faria, agora ou depois?... Envelheceu reprimindo, calando, agüentando, sem esperança, sempre tiranicamente envolvida naquelas outras "coisas importantes"; acabou adoecendo, perdeu meu pai e junto com ele pareceu perder o pouco que ainda lhe restava de alegria e independência, de fé. Agora, devido às seqüelas da sua doença, que a mantém prisioneira a uma cama de hospital, até a mais remota possibilidade de realização desses sonhos tornou-se totalmente impraticável... Porém, às vezes penso -ou prefiro achar- que, no fim, deve ter acabado por esquecer-se deles, o que é, de uma forma muito cruel, algum tipo de mesquinho consolo. Hoje está tão combalida que não deve ter mais consciência desse tipo de coisa.
Já houve uma época em que achei que a minha irmã e eu sofreríamos o mesmo tipo de destino, como se fóssemos vítimas de algum tipo de maldição que castigava implacávelmente as mulheres da nossa família, mas, por sorte, teve muita gente que me convenceu do contrário e me ajudou a acreditar em mim mesma e no que o destino sussurrava em meu coração. Nâo sei se meu tio teve mais chances, mais sorte, mais garra, mais perseverança, mais audácia, fé ou o quê, mas essa última guinada da sua vida foi uma benção para ele, uma espécie de coroação, que a minha mãe também merecia. Ele era um homem alegre, que gostava de comer e de beber, simpático e empreendedor, bom pai e marido, com uma rara sensibilidade e cultura considerando as origens que tinha, que quebrou o mito de que quem vem do campo está limitado e só saberá mexer com vacas e alfaces... Pena que a sua irmã mais velha não teve o mesmo destino, o mesmo segundo de iluminação e coragem. Ou quem sabe teve, mas como somente ela acreditou, achou que não era o suficiente e escolheu desistir.
Mas eu acho que não são somente os outros que têm de acreditar em nós para que assim nos sintamos com permissão para lançar-nos por novos caminhos ou correr atrás dos nossos sonhos mais verdadeiros e queridos mas, primeiro e antes de todos, nós mesmos é que precisamos acreditar no que somos, no que sentimos, no que precisamos para ser felizes e nos realizar como seres humanos. Foi isso que fez toda a diferença entre o destino do meu tio e o da minha mãe.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Pátria

Esta semana estou emprestando o computador da sala dos professores da fundação para postar as minhas crônicas, pois o monitor do meu computador queimou sábado de manhã, bem na hora em que sentei para escrever. Fez um barulho tão terrível que pensei que iria explodir e pegar fogo!... Levei para consertar de imediato, mas estou achando que não tem salvação, pois é muuuuito velho; então acho que terei que comprar um novo monitor (coisa que, é claro, não está em meu orçamento) Em todo caso, enquanto isto não acontece, acho que vou me aproveitar da pouca boa vontade do pessoal da fundação e vou continuar postando as crônicas desde este computador. Só espero que isto não me custe caro...
E sem mais delongas, porque acá existe um horário de funcionamento, aqui vai a desta semana:

De longe dá para ouvir as suas vozes, mesmo se estão falando num tom baixo, cabeças inclinadas uma para a outra, corpos miúdos muito perto, risinhos e mais comentários... As duas senhoras japonesas, olhadas assim, conversando na calçada diante do portão da casa, vassoura na mão de uma e sacola de compras na mão da outra, parecem não estar realmente aqui, nesta cidade, neste país. Parece que aqueles sons esquisitos e entrecortados que saem dos seus lábios finos as transportam instantaneamente para a sua terra natal, para outras épocas, para outra cultura. Sentem-se em casa toda vez que se expressam em sua língua materna, esquecendo por alguns minutos que são estrangeiras e que uma distância assustadoramente grande as separa do seu lar... Conheço as duas, pois costumo encontrá-las com freqüência durante as minhas caminhadas matinais -hora em que elas vão para a academia- ou quando vou ao mercado, que todas as terças e quintas oferece uma aula de alongamento para a terceira idade. Lá estão elas, sempre juntas, rindo e conversando feito duas gueixas, uma muito magra e de corpo já vergado pelos anos, sempre apoiada em sua bengala, e a outra, baixinha e rechonchuda, faladeira e risonha. Fico admirada ao perceber como, apesar de estarem tão bem integradas ao resto das senhoras brasileiras que vão à aula, de alguma forma mantêm um tipo bem definido de fronteira, de limite que as outras não conseguem ultrapassar. Há algo especial, secreto, só delas, que as diferencia e as separa deste universo onde o resto dos não-japoneses habita, e esta percepção fica mais acentuada quando vários deles se reúnem em algum local... Cria-se então uma atmosfera toda especial e nós, os de fora, conseguimos vislumbrar algo do seu mundo, da sua herança, do seu comportamento natural, ancestral. Chegam até nós os ecos de uma história muito antiga, de costumes milenares que até hoje são consideradas leis e respeitadas como tais, especialmente pelos mais velhos. De alguma forma indefinida, porém muito clara, a sua força anos toca, nos transpassa e nos impõe respeito. Porém, o mais curioso é que, diante deles nós é que, repentinamente, nos sentimos estrangeiros, tal a força da pátria que eles trazem consigo e cultivam neste solo estranho.
E ao perceber esta força, esta espécie de recriação da terra mãe quando se reúnem, ou mesmo estando sozinhos, me pergunto se com todos os estrangeiros acontece a mesma coisa ou se são estes japoneses que possuem algum tipo de poder especial para fazer isto acontecer. Será que eu própria conservo a idiossincrasia, o idioma, os costumes, as paisagens, sons e cheiros do meu país com força suficiente como para que ele se manifeste com semelhante clareza diante dos outros? Será que, se nos reunirmos, conseguiríamos recriar a nossa pátria só com o poder do nosso amor por ela?... Quando é que somos, realmente, estrangeiros?... Eu acho que se pudermos levar conosco a essência do nosso país, mesmo aos lugares mais distantes e diferentes, nunca iremos nos sentir como tais, pois seremos capazes de nos integrar à cultura e linguagem de outros e ao mesmo tempo conservar as nossas raízes, que serão alimentadas justamente com a recriação constante da terra natal em nossa fala, nossas ações e pensamentos, no cenário no qual nos movemos, no tratamento dispensado aos outros. Tudo em nós pode mostrar quem somos e de onde procedemos, sem por isso agredir a terra que gentilmente nos acolhe.
Acho que estrangeiro é, realmente, aquele que esqueceu a sua pátria e não se adaptou à nova terra, ficando assim numa espécie de limbo cultural e afetivo no qual sente-se agredido e abandonado, sem um porto onde atracar, um rumo para seguir, alguém a quem acudir.
Podemos viver nestes dois lugares ao mesmo tempo, sem prejuízo para nenhum deles, porque o que está no coração não atrapalha o que está fora dele, ao contrário, só o enriquece.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Imortalidade

Muuuuito atrasada, após um final de semana completamente inútil diante da televisão -apesar de que realmente adoro assistir filmes- mas ainda fiel ao meu compromisso, aqui estou, procurando a inspiração, a persistência e a fé que às vezes parece distanciar-se ou insiste em manter-se oculta atrás de nuvens nada animadoras... Porém, uma breve e firme conversa comigo mesma durante o trajeto da minha caminhada matinal, ou um desabafo com a minha "fiel escudeira" Nete, são suficientes para me colocar nos trilhos de novo. Realmente, estou comprovando que, quanto mais se fica parada mental e fisicamente, mais difícil se torna desenvolver e manter qualquer rotina, mais ainda criar alguma coisa ou sentir-se animada diante das dificuldades. A imobilidade mental e corporal deixa a gente embotada, estupidificada, nos rouba a vontade de crescer, de aprender, de levar adiante nossos projetos. Nos deixa no meio do caminho olhando para os objetivos que nos traçamos e nos quais sempre dissemos acreditar, como se fossem um sonho impossível, ingênuo, ambicioso demais. Nossas forças se esvaem e uma rotina destrutora e deprimente vai se instalando aos poucos, tomando conta, corroendo as nossas expectavivas e ambições, os nossos sonhos, a nossa vontade e a nossa coragem... É um caminho escuro que sempre flanqueia o nosso verdadeiro rumo e nos chama constantemente, assim que aparece a menor dificuldade, querendo desviar-nos, fazer-nos tropeçar, oferecendo-nos um alívio falso, um consolo daninho, uma facilidade que, na verdade, só irá nos levar a lugar nenhum... Por isso fujo das suas vozes e visões, das suas caras tristonhas e cheias de auto-compaixão, dos seus sussurros tentadores, das falsas portas de escape e das janelas iluminadas com luzes breves e cegantes que sempre acabam fechando-se bem em nossos narizes.
Acredito que devemos sempre estar alertas, feito guerreros que não descansam em seu combate contra o negativo, o escuro, o ilusório, contra a ignorância, a preguiça, o medo, o egoismo e todo esse leque de provações de que somos vítimas pela nossa condição mortal e imperfeita. É uma coisa que não acaba jamais e pode ser extremamente cansativa às vezes, mas... se não fosse por estes desafios e pela alegria e o crescimento que ganhamos cada vez que ganhamos um, a nossa existência não seria um tédio total e interminável?...

As horas que estou passando no Museu sentada nesta cadeira desconfortável escaneando as fotos antigas de prefeitos, eventos, obras e personalidades de destaque nas diferentes administrações que passaram por esta cidade, estão me trazendo algumas recompensas inesperadas e enriquecedoras. Ontem, por exemplo, enquanto estava sentada diante do computador na sala silenciosa, apareceram dois homens, já velhos, para falar com a coordenadora do Museu. Pelo barulho, percebi que traziam papéis, então deduzi que deviam ser fotos ou documentos para emprestar ou doar ao Museu. Até agora não tinha prestado muita atenção nestas visitas que a coordenadora recebe quase que diariamemnte, mas por algum motivo, ontem parei um pouco meu trabalho e fiquei discretamente escutando a conversa, pois não estavam na sala dela, mas ao redor da grande mesa que ocupa uma área diante da porta do local no qual eu me encontrava... E de alguma maneira que me surpreendeu, as suas histórias cheias de anedotas, personagens, acontecimentos pessoais ou sociais, perdas, lições, vitórias e saudade pareceram-me, pela primeira vez, cheias de vida e significado. Me dei conta de que se tratava da existência deles, das suas experiências e lembranças, que eles traziam com todo cuidado e carinho diante da coordenadora -que as recebe sempre com extrema delicadeza e consideração, valorizando-as ao máximo, o que deixa estas pessoas com a nítida sensação de que são mesmo importantes, de que fizeram algo, de que o que sabem vai servir para as futuras gerações, o que significa que as suas vidas fizeram alguma diferença- e entregavam em suas mãos como um tesouro, confiando em que ela lhes daria o devido valor. Observando desde meu canto percebi como pareciam rejuvenescer enquanto contavam a ela as suas histórias -por vezes muito pessoais- ou identificavam nomes, datas e lugares nas fotos e documentos que haviam trazido. Alguns até tinham viajado até outras cidade, onde tinham parentes, para desencavar mais informações que pudessem ajudar a enriquecer a nossa história. Via neles algo como a sensação do dever cumprido, pois parecia que trazer ou juntar informações transformara-se numa espécie de missão que os mantinha ocupados, ativos, sentindo-se úteis para uma causa importante... Ficaram um bom tempo ali conversando, desfiando lembranças, informações, trocando fotos, mostrando documentos, rindo, confidenciando... E quando se despediram da coordenadora notei que havia um novo brilho em suas vozes, que pareciam caminhar mais eretos, com mais firmeza e otimismo. Saíram pela porta e encararam a rua ensolarada, a cidade, a vida, com uma sensação de poder, de imortalidade, de renovação, que parecia dar-lhes asas. E se afastaram, cada um pelo seu caminho, respirando fundo este ar que hoje tinha um perfume diferente, não mais de morte ou doença, de paralisia e esquecimento, mas de plenitude e gratificação, de uma incerta e profunda esperança no futuro.
A instauração do Museu na cidade não significa tão somente o resgate da memória, da história, das obras ou personalidades que por aqui passaram, mas também a chance de dar um significado e valorizar a existência daqueles que estão chegando ao fim da sua jornada e pensam que nada têm para legar, que não fizeram nenhuma diferença e que a sua experiência e sabedoria cairão no esquecimento depois que se forem. A sua contribuição para os arquivos do Museu lhes dá uma nova missão, os traz de volta à vida, à ação, os faz perceber o quanto são importantes e necessários para as futuras gerações, e isto lhes oferece o presente mais importante que um ser humano pode desejar: a sensação de imortalidade.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

As duas pessoas mais feias do mundo

Hoje me sinto tão animada que seria capaz de postar algumas crônicas sem me cansar, mas como preciso também trabalhar na criação dos textos para as apresentações de final de ano das escolas onde estou dando aula - e se não começar a ensaiar agora a coisa não vai funcionar, com certeza- vou segurar meu entusiasmo e postar só uma, como de costume... a não ser que, após escrever todas as peças (são sete!!!) ainda tenha fôlego e inspiração para postar algo mais aqui. Eu não sei se é o dia maravilhoso e ensolarado (mas não escaldante) ou se é o fato de, finalmente, ter organizado as minhas finanças e planejado cada pagamento até abril do ano que vem - não posso comprar nem uma agulha, mas, em troca de não sofrer mais angústias ao respeito, acho que vale a pena- ou se é que estou conseguindo levar a minha dieta sem nenhuma escapadinha, o que pode significar que não terei que usar insulina tão cedo, fato que também faz valer a pena ficar babando em cima de um bolo ou um pãozinho de queijo enquanto devoro palitos de cenoura crua com sal ou maionese (acreditem, são uma delícia, quando você se acostuma!)... Estou realmente disposta e firme na decisão de levar de vez uma dieta totalmente saudável (afinal, já estou com 53, recém cumpridos, não é hora de bobear!) e manter as minhas finanças sem sobressaltos. Estes são meus maiores propósitos de "ano novo" e pretendo cumpri-los sem auto-boicotes nem desculpas... Vai valer a pena, com certeza. Jà estou me sentindo muito bem. Como já disse uma vez, tomar decisões e levá-las à ação é algo extremamente positivo e saudável, nos põe em equilíbrio e em harmonia com a vida e nos proporciona um futuro com mais certezas e tranqüilidade...
E depois desta lição de auto-ajuda totalmente gratuita, que nem eu mesma esperava, passo a postar a minha crônica:



Eles vêm virando a esquina, caminhando devagar, mãos dadas, conversando animadamente. Rostos sorridentes, cheios de paz e uma serena e firme felicidade. Às vezes param e olham em volta, para o cenário iluminado e fresco que os rodeia, e comentam sobre os pássaros, as árvores, os jardins, as crianças indo para a escola... Se aproximam, descendo a rua enquanto eu subo com passo ligeiro, e ao vê-los tenho a nítida impressão de que não estão realmente ali, mas em alguma dimensão só deles, onde nada nem ninguém mais existe, e que este não é mais do que o reflexo dos seus sentimentos. Não sei quem são, mas logo no primeio dia em que cruzei com eles chamaram a minha atenção, pois eram feios. Muito feios. Terrivelmente feios, para falar a verdade... Poucas vezes encontrei pessoas tão estronchas, mal vestidas, de feições tão irregulares e andar tão cambaleante, membros desproporcionais e cores opacas, cabelos indomáveis e dentes tortos... "Frankenstein e a sua noiva?", pensei imediatamente, ao divisá-los virando a esquina, e espantada com tanta feiúra, me abaixei, fingindo amarrar meu tênis, para assim poder observá-los mais de perto. As suas vozes chegaram primeiro até mim, roucas e desafinadas. Falavam sobre planos para o futuro: dar entrada numa geladeira, poupar algum dinheiro para a compra do material escolar do filho no ano seguinte (e ainda tinham tido a coragem de botar um descendente neste planeta!) consertar a porta do fusquinha, pedir um adiantamento para a patroa para não atrasar a prestação do sofá... Coisas singelas, banais, de gente que sobrevive com o salário básico e alguns bicos aqui e ali... Enquanto os escutava conversar notei de repente o tom afável e sereno das suas vozes, aquela sensação de profunda e sincera partilha permeando as suas palavras, o respeito, o carinnho, e no segundo seguinte cogitei a possibilidade de não se tratar -como eu havia suposto no início- de um daqueles casais de favela que vivem às porradas e aos gritos, bebendo e parindo um filho atrás do outro, maldizendo a vida, a família e o próprio Deus pelas suas desgraças sem fim, mas de duas pessoas que realmente se amavam e se importavam uma com a outra, que tinham planos otimistas para o amanhã e que pretendiam trabalhar juntos para torná-los realidade. Movida por esta nova perspectiva, deixei o cadarço do tênis em paz e ergui a cabeça para olhá-los antes de que passassem por mim: ela era baixinha e franzina, quase raquítica, de queixo saliente e sem os dentes de baixo, o cabelo encaracolado em desordem, tingido de um preto azeviche que contrastava de um jeito esquisito com a pele morena e enrugada do seu rosto, olhos pequenos e fundos, sobrancelhas ralas, pernas arqueadas e cheias de manchas, dedos tortos ostentando uns anéis baratos e já desbotados, sandálias grandes demais para seus pés meio deformados, o vestido caindo-lhe feito um saco grande demais. Ele, alto e desajeitado, rostro magro e comprido onde se destacava um nariz enorme e com o calombo característico de uma fratura, orelhas de abano, cabelo muito curto e preto (também tingido) pernas magérrimas e sapatos de cadarços diferentes, onde seus pés sem meias pareciam nadar. Vestia uma blusa de lã que se erguia nas costas devido a uma leve corcunda, e as suas mãos de unhas carcomidas e escuras eram desproporcionalmente grandes e cheias de nós, arrematando os braços compridos demais, que nasciam dos ombros ossudos e curvados... Pisquei um par de vezes para ter certeza de que estava olhando direito, mas a imagem era essa mesma: as duas pessoas mais feias do mundo estavam a apenas alguns metros de mim!... Porém, o que me deixou realmente impressionada não foi esta visão e sim o que percebi em seus olhos: aquele brilho, aquela serenidade, aquela cumplicidade que, nesse instante, os igualou à Romeu e Julieta, à Angelina e Brad, à Elvis e Priscilla... E, quando eles finalmente se afastaram, ainda de mãos dadas e cheios de confidências e sorrisos, consegui entender que, apesar de qualquer aparência ou preconceito, todos podem amar, todos têm este direito e esta qualidade, este dom que pode transformá-los em príncipes e fadas, em seres humanos perfeitos, cheios de otimismo e fé, de alegria, de paz. Os feios também podem ser sábios, bondosos, sonhadores, empreendedores; podem ter sucesso e merecem amar e ser amados, pois têm seu lugar na história e nos planos de Deus, assim como cada um de nós, os altos e os baixos, os gordos e os magros, os inteligentes e os excepcionais, os velhos e os jovens, os maus e os bons, os ricos e os pobres. O ser humano nunca deixará de nos surpreender, pois em sua diversidade existe sempre uma lição a aprender, uma porta a abrir, uma possibilidade de encontro que pode tornar-se inesquecível se sabemos olhar além da imagem exterior.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Recados

Este final de semana fui atacada pelo vírus do: "e para que tudo isto?", o que me fez ficar meus três dias livres esparramada no sofá assistindo televisão e comendo ao invés de tentar produzir alguma coisa útil e decente, como faço todo final de semana. Mas, de vez em quando - e acredito que isto deve acontecer com todo mundo- sou vítima destas crises de desânimo e dúvidas com respeito ao que considero a minha missão neste planeta, e aí perco toda a vontade de continuar escrevendo, dando aulas ou enviando as crônicas para o jornal... Será coisa da idade (amanhã faço 53 anos!) da vaidade, da falta dos filhos, da saudade de uma paixão? Ou é coisa normal na raça dos artistas, que de vez em quando se vêem assaltados pelas dúvidas e a total falta de entusiasmo pela sua própria obra e pela mensagem que ela deveria passar para o mundo? Sei que todos precisamos passar pelo nosso Getsemani de vez em quando para acordar e perceber a beleza e a riqueza da vida, para sentir-nos gratos por ela e aproveitá-la da melhor forma possível, mas às vezes a noite fica realmente escura e, a não ser que sejamos donos de uma tremenda fé e otimismo, de uma força de vontade e persistência capazes de derrubar as aparências negativas que sempre estão rondando-nos, corremos o risco de ficar presos nela para sempre... Ainda bem que, em meu caso, estas crises não duram muito e a prova está aqui, pois mesmo atrasada e de resaca espiritual (e inspirada por um dia de clima e paisagem perfeitos, quase mágicos, após o final de semana chuvoso e cinzento) cá estou, digitando a crônica desta semana, meio dolorida porque inventei de voltar a fazer alongamento, mas cheia de novo ânimo e inspiração, disposta a enfrentar os desafios que me aguardam, pois sei que não são punições, mas lições que preciso aprender para crescer e me tornar mais sábia e assim poder fazer alguma diferença no mundo e na vida das pessoas, sem importar quantas, nem onde. O importante é que isto aconteça, pois é para isso que estamos aqui.

"Eli Stone"... É o nome de uma personagem cujo seriado -que eu assisto religiosamente todo domingo- leva este título e que, a despeito desta onda de violência, sexo, rivalidade descontrolada, beleza tiránica e glamour fabricado, desprezo pelos valores e pelas pessoas que tem ido se instalando aos poucos na programação da televisão, mostra histórias cheias de idealismo e honestidade, personagens com caráter e fé na verdade e no bem (apesar do protagonista afirmar que não acredita em Deus)... É algo pelo qual vale a pena deixar o frango assado esfriar ou a salada sem cortar para ir sentar no sofá da sala e prestar muita atenção, pois com certeza, quando estiverem passando os créditos, nosso coração terá sido acariciado pela bondade, algumas lágrimas e uma tremenda sensação de esperança e gratidão por quem teve a idéia de lançar um seriado assim. Sem dúvida seremos tomados pela emoção de perceber o que somos capazes de realizar em prol dos outros, apesar de todos nossos defeitos, pois Eli não é nenhum super-herói e está bem distante de ser perfeito. O mérito dele é, na verdade, acreditar e agir segundo seu coração lhe dita, mesmo se contradiz tudo que foi como pessoa até o momento em que descobriu ser portador de um aneurisma no cérebro que pode matá-lo a qualquer instante ou deixá-lo incapacitado feito um vegetal. A doença o faz ter visões reveladoras, que ele acaba descobrindo serem recados de Deus - quase sempre extremamente desconcertantes e engraçadas- sobre as pessoas, os casos em que trabalha e problemas da sua própria vida, o que às vezes faz com que tenha atitudes que deixam todos na firma de advogacia totalmente desconcertados ou irritados, isso sem falar nos comentários humilhantes, os olhares de zombaria ou ceticismo e as broncas que deve aturar por conta dessas suas visões. Seu chefe, um homem ganancioso, cheio de vaidade e sedento de poder e fama, está aos poucos sendo conquistado pelas atitudes do seu funcionário que, de um dia para outro, abandonou os clientes de prestígio e as jogadas desonestas e preferiu dedicar-se a trabalhar em casos pro-bono sem importar-se com o que poderia lhe acontecer, o que deixou o homem totalmente desconcertado e curioso. Manteve Eli na firma, mesmo sob condições humilhantes, sem sala nem secretária, nem sequer um telefone, como punição pela sua mudança drástica e repentina, que ele temia prejudicasse o prestígio da sua firma, talvez para tentar fazê-lo desistir pela falta de condições decentes para desenvolver seu trabalho, mas com o passar do tempo e diante das atitudes extremamente honestas e idealistas do Eli, da sua fidelidade e sinceridade para com o modo de vida que decidiu seguir, está começando a admirá-lo e defendê-lo diante dos outros sócios, que só caçoam do Eli e das suas visões e arrancos de caridade para com os injustiçados que não têm a quem acudir...
Em fim, a coisa é que já faz muitos anos que não sentava para assistir um seriado com tanto prazer e esperança, porque a cada capítulo, invariavelmente, recebo uma lição, um lembrete sobre a bondade de que somos capazes apesar de todos nossos defeitos, uma frase que fica martelando em minha cabeça e me faz refletir sobre o quanto estamos dispostos a sacrificar para seguir um ideal no qual realmente acreditamos. Há sempre algo sobre a valorização dos valores básicos, da verdade, da justiça, da fé e não raro acabo com os olhos cheios de lágrimas por conta de cenas ou diálogos que parecem ser dirigidos exclusivamente a mim... Tenho consciência de que, na verdade, o responsável por estas pequenas obras de arte de uma hora sobre espiritualidade e retidão não é precisamente o ator que encarna o protagonista, mas o roteirista que redige a história a cada semana. Sei que o ator foi cuidadosamente escolhido pela sua figura, sua voz e seu carisma, assim como seus coadjuvantes, cenários e todo mais que implica montar um seriado que vise atingir o público e virar um sucesso de crítica. Sei que talvez seja tudo friamente calculado para produzir este efeito, mas mesmo assim, gostaria muito de encontrar a pessoa que escreve os roteiros para dizer-lhe que, acredite ela ou não, Deus age das formas mais misteriosas -e por vezes engraçadas, tal como acontece com o protagonista do seu seriado- para se aproximar de nós e mandar-nos seus recados.