terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

"Anjos"

    Os nós vão se desfazendo, os caminhos clareando, as portas se abrindo e Deus está sempre ali, na soleira, cuidando para que tudo saia  da melhor forma possível. Bom, eu não posso reclamar, porque as etapas da minha própria história estão indo de vento em popa, com momentos difíceis, é claro, porque as perdas e mudanças nunca são fáceis -como a saída definitiva do meu esposo de casa- mas se não passamos por elas ficaremos estagnados e morreremos. Há uma quota de sofrimento em todo processo, porém não precisa insuportável nem insuperável, sobretudo se o encaramos com otimismo e fé, como uma nova oportunidade de crescer e encontrar a felicidade. Pelo menos, é assim que eu estou levando as coisas e gostaria que meu esposo fizesse o mesmo, mas, por enquanto, não parece estar lidando muito bem com os acontecimentos. Acho que ainda está em estado de choque. Está se comportando feito um cavaleiro, é verdade, e eu fico feliz por isto, mas nada tira a angústia e a incredulidade estampadas em sua face... De qualquer jeito, espero que o fato de assinarmos os derradeiros e definitivos papéis do divórcio o tragam à realidade e à tomada de novas atitudes, novos caminhos, à procura da sua própria felicidade.
    A casa está meio vazia e quieta, porém tranquila, sem tensão nem mágoa. O ar parece mais claro e leve, não há nada para esconder, para segredar, para disputar. Tudo está claro e definido. Avançamos mais um passo rumo à nova vida.
    Então, aproveitando esta gloriosa manhã livre e serena, aqui vai a crônica desta semana -ou da passada, porque o fim de semana voou e nem tive tempo de sentar aqui para escrever.


    "Através dos anos e das experiências tenho aprendido -não sem certo espanto- que as mensagens divinas nem sempre vêm embrulhadas  em lindas cores, com música, anjos e luzes ou arroubos espirituais. Para falar a verdade, são poucas as ocasiões em que elas nos pegam em momentos chamados "adequados" (meditando, rezando, contemplando um pôr-de-sol...) e às vezes são tão desconcertantes que demoramos um tempo para perceber que se trata efetivamente de uma mensagem direta para nós e que deveríamos desvendá-la e pô-la em prática... Não, às vezes, e para que não nos esqueçamos de que o mal e a desgraça caminham lado a lado com o bem e a felicidade, e que todos podemos ser vítimas delas, os recados de Deus interceptam nosso caminho mostrando-nos a dor, a solidão, a fome, a pobreza, a morte, porém não para nos assustar ou ameaçar, mas para que saibamos ser compassivos, pacientes, humildes e generosos sempre com aqueles que passam por estas dificuldades, vencendo qualquer aparência, pois o que os outros necessitam de nós hoje também podemos necessitar deles um dia.
    Definitivamente, os anjos não são todos criaturas celestiais à salvo de todo mal ou contrariedade, pelo  contrário, acho que eles gostam de assumir a nossa forma humana, falível e fraca, sujeita a erros e maldades, para se aproximar sem nos assustar e nos dar os recados de Deus de uma forma mais próxima e compreensível, pois assim recebemos as palavras divinas de alguém feito nós ao invés de uma criatura perfeita e inatingível, o que poderia fazer-nos desconfiar ou desanimar... Então, vamos prestar mais atenção à nossa volta porque, quem sabe não há um anjo justamente do nosso lado agora? Quem pode dizer e a balconista que nos atendeu ontem na loja não era um? Com quantos deles cruzamos em nosso dia-a-dia, no meio dos nossos afazeres, distraídos e preocupados, e os deixamos passar em branco?... Quem sabe, meu Deus, eu própria não sou um anjo escondido dentro desta pessoa tão imperfeita mesmo cheia de boas intenções? Será que as boas intenções não são um sintoma, uma pista?... Então, como talvez eu traga alguma mensagem para alguém, terei muito cuidado com as minhas palavras e ações, pois elas podem se tornar exemplo ou inspiração para os outros, talvez até a chave para a libertação de alguém.
    É assim que começam as verdadeiras "correntes do bem" que podem, um dia, transformar este mundo e esta vida em algo muito parecido com o paraiso."

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

"Teria a coragem?"

    E depois da folia, de volta à realidade, infelizmente... Não que eu tenha curtido o carnaval em si, mas sim os quatro maravilhosos dias de folga, que estava mesmo precisando, então para mim também é chato retornar ao trabalho, sobretudo devido à minha situação de "quase-saindo", o que significa nada muito definido para fazer. Ainda bem que meu chefe me arrumou esta substituição na loja de artesanato, porque a moça de lá vai pegar férias, senão acho que ia passar estes dois últimos mêses hibernando na minha sala vazia. Isso até começarem as aulas de teatro. Aí não iria ter onde ficar porque não pretendo ficar assistindo as aulas dos novos professores, né?... Mas em fim, tudo é para um bem maior, então encaro todo este processo final com bom astral,  serenidade e paciência. Só espero que depois de toda esta festa os papéis do meu divórcio voltem a correr e este imbróglio se resolva de uma vez. Não estou desesperada, mas... Já faz um bom tempo que estamos com isto, não é mesmo? E quanto mais tempo, mais caro e, sinceramente, não estou muito a fim de gastar mais do necessário porque vou precisar de todo o dinheiro que conseguir reunir para começar a minha nova vida... Paciência não me falta, nem fé ou persistência, tenho certeza de que tudo vai sair como espero e da melhor forma para todos, então não fico mais angustiada com as demoras... Mas que gostaria que tudo se resolvesse logo, ah, isso gostaria...
    E aproveitando esta última manhã livre, aqui vai a crônica da semana, meio atrasada, mas... Coisas do carnaval!.


    De longe reconheço a sua silhueta magra, de passadas entre resolutas e ziguezagueantes, as abas do cardigã deformado esvoaçando ao lado do corpo feito duas asas quebradas (e usado tanto no impiedoso frio do inverno quanto no calor escaldante do verão) cabelos longos e ouriçados feito um bom-bril surrado e barba por fazer, rosto encovado e queimado pela intempérie, costas semi curvadas em direção do chão, acompanhando os olhos escuros e meio alienados que percorrem com obcecada teimosia cada centímetro da calçada à procura de bitucas que, sem a menor cerimônia e com uma vaga expressão de deleite, vai apanhando, limpando cuidadosamente e guardando no bolso da blusa. Passa pelos transeuntes meio que esquivando-os, sempre apressado, com gestos pesados, como querendo avisar para não ser perturbado ou interrompido em sua missão. Feito um cão de caça experiente, parece farejar a nicotina a distância, seja no pé de uma árvore, no meio do mato, na saída do bar, embaixo das mesinhas da lanchonete, junto do banco do ponto de ônibus... Não é a primeira vez que cruzo com ele nas minhas caminhadas, e sempre tento não fazer contato visual, pois da primeira vez que o fiz ele pareceu sentir-se profundamente insultado e agredido, e me devolveu um olhar ao mesmo tempo tão bravo e envergonhado, que à partir de então decidi desviar os olhos dele toda vez que chegasse perto... Porém, mesmo assim não consigo ignorá-lo, tão forte é a impressão que causa em mim.
    Um pouco antes de cruzar comigo, passa em frente a uma padaria e, de repente, pára diante do lixo colocado na rua e, abaixando-se bruscamente, não pega uma bituca, mas uma embalagem de iogurte descartada que, num gesto intempestivo, quase que inconsciente, leva à boca, bebendo de um gole o que restou nela. Em seguida, a joga de volta no latão e continua seu caminho, dando uma furtiva olhada em volta como para verificar se ninguém estava observando-o...
    Ao ver isto, quase paro, tão espantada fico com a sua atitude, porque até agora só tinha-o visto pegar guimbas, nunca comida, o que significa que não só adora fumar e não tem dinheiro para comprar cigarros, mas que também passa fome... Não consigo evitar um aperto no coração quando ele passa por mim deixando aquele rastro que cheira a miséria e desencanto, a escura revolta e indiferença contra tudo e todos, e que penetra pelas minhas narinas até meu cérebro desenhando imagens sombrias e sem esperança. Porque apesar da sua expressão de orgulhoso desgosto, eu posso adivinhar a loucura sem destino que o cerca, e um estranho sentimento de culpa toma conta de mim porque nesse instante lembro da minha mesa farta e do meu armário bem sortido, do teto que me abriga, da cama que a cada noite me acolhe... E de repente me pergunto o que ele acharia se eu o levasse até a minha casa e lhe mostrasse as minhas poses, se lhe oferecesse uma parte delas. Será que ele acreditaria? Será que aceitaria? Será que conseguiria se adaptar?... Porém, há outra pergunta mais importante ainda: Será que eu teria mesmo a coragem de levá-lo até lá e abrir-lhe as minhas portas? E as portas do meu coração?...
    Então abaixo a cabeça, envergonhada.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

"Ataques de felicidade"

    Bom, o retorno ao trabalho não foi tão traumatizante assim, porque como não vou ficar por muito tempo, não serei incluida em nenhum dos projetos da Fundação, o que é realmente um alívio porque se aproxima o famigerado carnaval brasileiro -que nunca consegui entender- e todo mundo começa a pirar e a querer fazer desfile, matiné e brincadeiras para as crianças, formar blocos com nomes esdrúxulos, costurar fantasias, comprar cervejas e passagens para Rio ou Salvador ou inventar barracas típicas na praça até tarde da noite... E, claro, a Fundação não escapa à tradição, então já estamos todos nos preparando para quatro dias infernais entre foliões, bandas ensurdecedoras, trenzinhos, sambinhas e etc. e, para coroar, muita, muita sujeira e confusão... Mas fazer o quê, é tradição popular, né?...
    E então, antes que a loucura se estabeleça, aqui vai a crônica da semana, desta vez postada no sábado, porque não sei o que será da minha vida na próxima semana. Estão para acontecer coisas vitais, divisoras de águas, ações que vão abrir as portas da minha nova existência, coisa que aguardo ansiosamente há tanto tempo que nem eu mesma tinha percebido... Está tudo nas mãos de Deus e tenho certeza de que Ele estará comigo, com todos nós, neste capítulo tão importante das nossas vidas. E não se preocuppem, que vocês vão ficar sabendo de tudo, ok?
    Então, aqui vai:

    Podem acontecer nos momentos mais inesperados, quase sempre banais, quando estou totalmente desprevenida (parece que quanto mais desprevenida melhor) e duram apenas alguns segundos, mas me deixam uma sensação tão boa, a minha alma e meu coração se enchem de tal alegria, leveza e gratidão, de um otimismo tão brilhante, que parecem limpar por completo tudo de ruim que há dentro de mim. De fato, quando eles se desvanecem parece que me torno capaz de enxergar o mundo, as pessoas e as situações -até as mais problemáticas- com novos olhos, frescos e claros. Parece que uma rajada de ar perfumado e poderoso varresse todas as minhas angústias, todas as minhas ansiedades e eu ficasse livre, nua e iluminada diante da minha própria vida, tomada pela mais absoluta gratidão. De repente, quando esta sensação me invade, consigo perceber a simplicidade e a maravilha da existencia, os detalhes preciosos, os milagres que me rodeiam, a sorte que tenho, os sucessos que alcancei, o futuo feliz que posso constuir se me mantiver neste estado de espírito positivo e confiante, sem complicações desnecessárias; percebo e agradeço meus talentos, as experiências pelas quais passei e estou passando, porque reconheço claramente as lições que cada uma delas contém, e fico feliz por conseguir absorver grande parte delas -mesmo que às vezes demore um pouco- aproveitá-las e passá-las adiante através dos meus textos e das aulas que ministro. Estes são instantes de clareza e segurança absolutas, de uma certeza sobrenatural sobre as verdades que  devem guiar a minha vida, de uma felicidade tão intensa, profunda e real, gratuita, que só posso acreditar que vêm de Deus, ou do meu anjo da guarda, ou então do próprio coração da criação que nesse instante escolhe conectar-se comigo e me revelar os seus segredos... Sei que parece bem ingenuo, mas, pensem um pouco... E por que não? Não somos por acaso parte de uma mesma manifestação?  Não possuímos uns as qualidades físicas e espirituais dos outros? Não existe uma linguagem que torna possível a nossa comunicação e interação?... Por quê, então, seria algo tão improvável?
    Estes são o que eu chamo de meus "ataques de felicidade", mas acho que não devo ser a única a sofrê-los, pois todos temos a chance de abrir-nos, de entregar-nos, de optar por senti-los e desfrutá-los para depois guardar em nossos corações e mentes essa sensação magnífica de dita e clareza, de otimismo, de gratidão e fé absolutas, que nos servirão de suporte e consolo quando vierem dias difíceis. É só nos afastar por alguns momentos dos nossos problemas, dúvidas e receios e permitir que o vento nos acaricie, o sol nos aqueça, os pássaros cantem para nós, a água mate a nossa sede, o céu desanuvie ou a chuva nos embale na hora de dormir... A felicidade está aqui, do nosso lado, rodeando-nos, falando conosco constantemente, na simplicidade do nosso dia-a-dia, dos nossos afazeres quotidianos, dos encontros que temos, das ações, olhares e palavras positivas que distribuímos ou recebemos ao longo da cada jornada. Todas estas boas ações das quais temos tão pouca consciência são recompensadas, mas precisamos prestar atenção para não perder estas recompensas, porque elas quase sempre estão escondidas naqueles detalhes que nós costumamos deixar passar, achando que só poderemos encontrar a nossa quota de alegria na grandiosidade, no excesso, na notoriedade, nas grandes empreitadas e sucessos. Alguns têm mesmo esta missão e é assim que se realizam, mas, e nós, reles mortais que levamos a nossa vidinha modesta e anônima? Será que temos esta chance?... Pois eu estou convencida de que nós, mais do que aqueles que têm tanta responsabilidade e sofrem tantos ataques justamente por serem notórios demais, temos muitas mais chances de encontrar e desfrutar a felicidade, de sermos atacados por ela a qualquer hora, em qualquer lugar, pelos motivos mais simples... A felicidade é semelhante a um alicerce que sustenta o nosso viver o tempo todo. Basta que, de vez em quando, a deixemos aflorar e tomar conta para que possamos nos renovar, nos reciclar e aprender a olhar o mundo com mais compaixão, paciência, otimismo e confiança. Porque é disto que o mundo precisa.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

"A Brasilia do pedreiro"

E com as idílicas férias quase acabando -retorno ao trabalho amanhã- e simplesmemnte aterrorizada com estas temperaturas enlouquecedoramente altas e sufocantes, cá estou de novo, escrevendo na terça ao invés de tê-lo feito na sexta ou no sábado, mas pelo menos, escrevendo. É que a simples idéia de voltar à Fundação me deixa totalmente desanimada, sobretudo porque ela já não significa nada para mim e porque com certreza não vou ter nada para fazer, já que duvido que meu chefe -outra razão para estar deprimida com a volta- não vai me botar em nenhum projeto sabendo que vou sair em abril. Aliás, conhecendo-o, não sei se escolheria me judiar até o último dia ou então, ignorar-me solenemente, coisa que eu preferiria... Não tiro um segundo do aprendizado, a realização e a felicidade que vivi na fundação, porém, agora as coisas mudaram tanto que não existe mais nada para me segurar ali. Acho que, como tudo em nossa existência, o ciclo aqui terminou, então é chegada a hora de procurar novos caminhos e experiências que continúem a me enriquecer e ensinar, pois sem isto estagnamos, apodrecemos, morremos, e eu estou nova demais (só 55!) para permitir que uma coisa destas aconteça comigo!.
    Então, aqui vai a última das férias! Também é looonga, mas espero que tenham paciência e a desfrutem.


    Saí para dar a minha caminhada vespertina pela vizinhança (agora que estou de férias caminho pela manhã, como exercício, e à tarde como passeio) aproveitando que tinha chovido e estava um ouco mais fresco, e decidi fazer um trajeto diferente, indo por ruas pelas quais não costumo passar, para conferir as novidades nas casas e quintais. Escolhi uma rua menor, virei a esquina e me deparei com várias residências em reforma, todas com pilhas de tijolos, tábuas, ferros e montanhas de areia e pedregulho ocupando a calçada e pedreiros indo daqui para lá com mangueiras, tambores, pás e carriolas com cimento e pedras, falando alto e rindo. O som esganiçado de um rádio ecoava pelo ar e os cachorros das outras casas acompanhavam a música sertaneja com seus latidos zangados.. No primeiro momento pensei em voltar atrás. Fiquei por alguns instantes parada na esquina, contemplando aquele campo de batalha e seus soldados esfarrapados e barulhentos, pensando que não era um cenário muito apropriado para as minhas meditações, mas, no fim, conclui que se tinha escolhido aquele percurso diferente, não devia fugir dele, pois novidades são sempre revigorantes e cheias de surpresas. Retomei a caminhada então, e fui me aproximando dos pedreiros. Quase chegando no primeiro grupo e por estar distraída olhando para o interior da casa que eles estavam reformando, meti o joelho num carro estacionado, provávelmente de algum deles: uma Brasília velha e esculhambada, de um amarelo desbotado, a carroceria cheia de remendos, com somente duas poltronas na frente, de um vinil marrom e esbranquiçado todo rasgado e sujo, pneus gastos e vidros cheios de poeira. A traseira estava tomada por todo tipo de tralha: pás, rastelos, sacos de cimento, espátulas, caixas com lajotas, vidros de pregos e líquidos turvos, latas de cerveja, botinas tortas, jornais, trapos e algumas tábuas empenadas. Nâo tinha pára-choques nem espelho retrovisor... Afastando-me dignamente do carro e torcendo para que ninguém tivesse reparado em meu esbarrão- dei uma olhada nos pedreiros, tentando adivinhar de quem seria aquela relíquia do século passado. Talvez daquele mais velho, que parecia ser quem comandava o trabalho. Ou então daquele outro em cima do telhado, com a cabeça enfaixada com a camiseta para enxugar o suor, que ria e fazia palhaçadas com um par de telhas nas mãos. Poderia ser o típico carro de segunda (neste caso de terceira ou quarta) que alguém como ele compraria só para ter como se locomover e dar carona aos colegas ou levar a família na missa ou no almoço na casa da sogra...
    Olhei para o automóvel, decrépito e de pneus carecas, e pensei que com certeza o rapaz gastaria mais do que ganhava fazendo reparos e trocando peças naquele dinossauro amarelo, mas acho que, mais importante do que este tipo de despesa, era o status que ele lhe dava. Era o único carro estacionado na frente da casa, então era óbvio que somente um destes era o orgulhoso proprietário... Ainda tentando adivinhar qual seria o afortunado, passei pelo carro e dei uma última olhada nele. Foi então que reparei que no pára-brisas tinha coladas umas palavras, e decidi diminuir o passo para lê-las. Eram só duas, muito simples, numa cor dourada já meio acinzentada, colocadas meio tortas: "Obrigado Deus"... E no primeiro momento me pareceram meio absurdas, quase cômicas, entronizadas logo ali, no alto do vidro imundo de uma Brasília caindo aos pedaços. Qualquer um poderia pensar: "O que esse cara tem para agradecer a Deus? Olha só o estado desse carro!"... E apesar disso, as palavras estavam ali. O dono tinha gasto algumas moedas do seu salário para comprar o adesivo e fez questão de colá-lo bem na frente, para que todo mundo visse. Era seu modesto testemunho, sem dúvida, a sua ingênua gratidão estampada no vidro do carro decadente... Mas pelo quê ele estava tão grato? E por que fazia tanta questão de mostrar para todos   esta gratidão? O carro era mesmo uma piada e a casa onde ele e a sua família moravam não devia ser grande coisa também, talvez  nem tivesse água encanada e, no entanto ali estava ele, agradecendo, contradizendo todas as aparências...
    Suspirei profundamente e continuei meu caminho, não sem antes dar uma derradeira olhada no carro e esboçar um sorriso meio amarelo e emocionado, pois de repente pensei em como somos tão frívolos e ingratos, como não aproveitamos o que conseguimos, como não damos mérito aos pequenos sucessos -nossos e dos outros- e nos esquecemos de agradecer por eles, de desfrutá-los e compartilhá-los somente porque são modestos, simples, porque não aparecem no jornal nem são o comentário da cidade. Pensei como aquele carro arruinado era um tesouro para aquele homem e o imaginei cuidando dele, lavando-o, engraxando-o, protegendo-o do sereno, dirigindo-o pelas ruas da cidade como quem dirige um BMW. Percebi, mais uma vez, como precisamos realmente de pouca coisa para sermos felizes e gratos com a vida... Então, se este humilde pedreiro podia agradecer as bondades de Deus no pára-brisas do seu carro de terceira, por que não poderia eu me sentir grata também por tudo que tenho, por tudo que sou, por tudo que posso conquistar?
    Quem poderia imaginar que diante de uma casa em reforma, acompanhada pela música esganiçada do rádio e os latidos dos cachorros, iria encontrar este recado de Deus?...E se eu tivesse decidido voltar atrás e fazer um caminho diferente? Haveria uma outra mensagem, ou simplesmente teria perdido esta?... Mas Deus está bem mais atento do que eu, e me fez esbarrar numa Brasilia velha e enferrujada para acordar e começar a prestar mesmo atenção nos bens -materiais e espirituais- com que sou agraciada a cada dia, porque cada um deles é um tesouro que merece ser cuidado, amado, desfrutado e compartilhado com os outros.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

"Ele nos ama"

Pelo que estou percebendo, as coisas caminham para um desfecho feliz, com calma, lógica e clareza, como devem acontecer as grandes mudanças, então me sinto tranqüila e confiante, mais segura a cada dia que passa, mais perto da felicidade e da paz. Não digo que tudo vai virar um mar de rosas, mas acho que tudo vai valer a pena se conseguir viver a minha vida do meu jeito, com as minhas regras, escolhas e iniciativas, pelo menos nesta segunda metade. As tempestades passaram, assim como as vaidades, a futilidade e os delírios que exaurem a nossa energia e criatividade para não resultarem em nada além de decepção e mágoa... Isto é uma das coisas positivas de se ficar mais velha, e se você é esperta e presta atenção nos sinais e oportunidades, você começa a enxergar o que realmente importa, a correr atrás dele e a vivenciá-lo. A existência se torna então rica, produtiva, feliz, completa. Agora sei o que desejo, estou disposta a lutar por isso e, melhor ainda, tenho certeza de que vou conseguir. Todos os sinais, os encontros, os acontecimentos me dizem isto. E com certeza, não importa quanto demore mas espero que possamos fazer tudo no prazo que estipulamos- isto não vai mudar. As decisões já estão tomadas, as atitudes planejadas, então, graças à Deus, não há como -nem por quê- voltar atrás.
    Já sei que estou bem misteriosa com este assunto do meu futuro e que já devem estar começando a ficar de saco cheio, mas acho que, se as coisas continúam neste ritmo, em breve poderei contar-lhes tudo. Paciência!... E para preencher a espera, aqui vai a crônica da semana que, irónicamente, é enooorme!.

    Eu esparramada no sofá, de shorts e camiseta, dominada por completo pela preguiça, incapaz de raciocinar feito um ser humano, afim da mais absoluta alienação dos sentidos, e nada para ver na televisão... Já faz mais de dez minutos que os canais passam sem parar na minha frente e eu não consigo decidir qual programa é o menos ruim para assistir. A maioria são repetidos, ou então filmes dublados de quinta categoria com os quais nem sequer é possível dar risada pela má qualidade e os efeitos especiais de araque. Passo uma e outra vez os números do conrole de trás para frente e vice-versa. Nada... Até topar com uma cena na qual um coral nada convencional se prepara para fazer uma apresentação. Não reconheço nenhum ator (o que é um péssimo sinal, diga-se de passagem) a não ser o que interpreta o regente, e ainda por cima não é um dos meus preferidos, pois exceto um par de filmes medianamente legais e superficiais, só tem feito porcaria de mal gosto. Mas como estão prestes a se apresentarem, decido para aí e ver no que dá; de repente têm algo bom para mostrar. Ao que tudo indica, é uma daquelas histórias em que ocorre alguma grande transformação por causa de música ou dança e o protagonista -que no início mostrou-se um calhorda calculista e ganancioso- acaba rendendo-se ao encanto peculiar da pequena cidade e seus habitantes, sobretudo daqueles que integram o tal coral. Há velhos, jovens, presidiários, negros e brancos, todos formando parte da ecumênica grei de um pastor engraçado e idealista que pega no pé do protagonista até convencê-lo a reger o coro e participar de um concurso que, se ganharem, possibilitará que invistam o dinheiro do prêmio em melhorias para a igreja -que, é claro, ajuda todo mundo- e na manutenção do coral...
    "Bom", penso, "eu já vi esta história uma centena de vezes e sei perfeitamente como termina, mas vamos lá, de repente o número musical vale a pena"... Me acomodo no sofá, afofo as almofadas e me preparo para curtir, até porque descubro que entre os integrantes do elenco está uma cantora que hoje é muito famosa e canta divinamente, então, não pode ser tão ruim assim... Os apresentadores anunciam o coral: "Fighting Temptation" (Resistindo à tentação) e as luzes se acendem, mas eles, envolvidos numa discussão sobre usar o uniforme ou não, não aparecem. Instantes de desconcerto e suspense... Finalmente, o regente os manda ir ao palco assim mesmo e eles vão entrando, atrapalhados e tímidos, e tomando seus lugares. O público, frio, nem aplaude a sua aparição... E então, a música começa, com um solo masculino, e eu penso: "Estes caras são mesmo cantores profissionais!"... Enquanto a música transcorre, com um arranjo de arrepiar os cabelos e vozes estupendas e cheias de sentimento, na tela da tevê aparece também a legenda dos versos e eu, que no início só queria escutar uma boa música, começo a prestar atenção de verdade, pois parecem dirigidos especialmente a mim. (Quantas vezes já não me aconteceu a mesma coisas com cenas ou falas de filmes, canções, fotografias ou textos de livros e revistas! Deus não perde mesmo uma só chance!) A letra diz: "Eu não sou bom o bastante, mas mesmo assim Ele me ama. Eu não sou nenhuma estrela nem faço grandes coisas, eu vivo errando e todos riem de mim, mas mesmo assim Ele me ama. Eu não valho nada, e mesmo assim Deus me ama"... Num instante, antes deles terminarem o estribilho, meus olhos já estão cheios de lágrimas e meu coração bate, acelerado, por rtás das minhas costelas... "Ah!", penso, respirando fundo "Por que Deus gosta de me presentear com estas coisinhas encantadoras bem quando meu ânimo está pelo chão?" E em seguida respondo  à minha própria pergunta: "É claro, porque Ele é meu pai! Que pai não faria de tudo para alegrar seu filho quando este está triste e desanimado?"... E chego à conclusão -mais uma vez, porém sempre como se fosse a primeira- de que Ele realmente está olhando por mim o tempo todo, colocando respostas, pistas, pessoas e todo tipo de situações que fazem com que eu O escute e aprenda, saiba como agir e cresça para assim cumprir mais cabalmente meu papel nesta vida. No entanto, também tenho consciência de que, se eu não estiver ligada e atenta, todos os seus recados passarão em branco, por isso, e apesar de tantas vezes estar tomada pela angústia, a mágoa ou os problemas no trabalho e na vida familiar, sempre tento manter uma parte da minha mente e do meu espírito abertos, atentos à tudo que sucede à minha volta, porque sei que ali mesmo podem estar as respostas que estou procurando. Meus sentimentos pessoais não podem atrapalhar esta comunicação, senão estarei perdida!...
    Como disse antes, quantos destes episódios já me aconteceram? Quantas situações, pessoas e visões foram colocadas em meu caminho para me ensinar ou responder às minhas interrogantes, para inspirar-me e tornar-me uma pessoa melhor?... Acho que perdi a conta (isso sem incluir aqueles que deixei passar) mas posso afirmar que em todos estes episódios estava contida uma lição vital para meu amadurecimento que eu tentei aproveitar ao máximo. O que acho legal deste "método" que Deus escolheu para se comunicar é que Ele o utuiliza como se fosse uma espécie de jogo, de desafio constante, pois para não perder as mensagens é necessário que eu esteja sempre ligada e atenta e que descubra a lição, a pista, a resposta sozinha. Definitivamente, parece que Deus não gosta de "pratos feitos" quando se trata de ensinar -e acredito que isto deve acontecer com todos- ou de responder, e prefere deixar em nossa mão o trabalho de traduzir e levar à ação as suas mensagens, sem prepocupar-se se de repente interpretamos as coisas de modo errado e acabamos metendo os pés pelas mãos... Acho que aqui se aplica peprfeitamente a letra da música do filme, porque mesmo que erremos, que não brilhemos e sejamos julgados e condenados por sermos falíveis, Deus continua a amar-nos e a dar-nos mais uma chance para acertar. Mesmo que não consigamos entender ou agir da maneira certa, Ele continua do nosso lado, falando conosco, mostrando-se de todas as formas possíveis para que acreditemos em seu amor e na sua presença constante. Acho que para cada um de nós Ele escolheu uma forma toda especial e personalizada de se comunicar, algo que tem a ver com a nossa personalidade, nosso trabalho, nossos sonhos; um estilo que respeita o patamar espiritual, cultural e afetivo em que nos encontramos, para que assim possamos compreender o que nos diz e agir de acordo... Nada de violência ou imposição, nada de enigmas ou tabus. Deus está aqui, ali, neste cenário, naquela pessoa, nessas palavras, num encontro, numa despedida. Basta acreditar nisto e manter-se alerta e aberto, bem disposto, porque a nossa fé e a nossa disposição para os milagres é tudo que Ele precisa para entrar em nossa vida e transformá-la por completo.