sábado, 26 de dezembro de 2009

Eu quero é ser feliz!

Bom, passados os inevitáveis excessos da ceia com a família e do almoço no dia seguinte na casa da sogra com aquele monte de parentes que mais parecem uma das pragas bíblicas, recomeçamos a vida no dia 26, entre antiácidos e dietas de desintoxicação, lânguidos e trêmulos olhares para o cake de nozes e uma absoluta falta de imaginação para reaproveitar as sobras de tanta comilança... No entanto, apesar do estômago em frangalhos, o ponteiro acusador da balança e a empregada nova, nada pode me abater hoje. Não pretendo descumprir as minhas promessas de fim de ano, então acredito que a minha ceia de ano novo consistirá em algumas folhas de alface e agrião, sete tomatinhos cereja, peito de frango grelhado com batatas cozidas e um potinho de sorvete diet que devorarei na mais santa alegria. Acho que isto é suficiente para me alimentar (e ainda tenho o bônus de um sorvete!) deixar meu espírito -e meu intestino- leve e me deixar pronta para encarar o que me aguarda em 2010. Por um lado, o ponteiro da balança vai descer, e pelo outro, o da minha felicidade vai subir, e espero que seja bastante!...
E aqui vai a desta semana, a última do ano, porque a próxima já será no ano novo.

Gosto que meu dia seja ocupado, ativo, uma hora envolvido com os alunos, outra com meus textos, ou então com filmes, passeios, meditações, panelas, pássaros, cachorros e plantas, com compras e contas, com cochilos e mudanças na decoração. Gosto de estar em constante contemplação para assim aprender; adoro viver criando, ensinando, refletindo. Gosto de perceber tudo que me rodeia e de estar sempre nesta luta pelo aperfeiçoamento, pela melhora da minha saúde física e espiritual e, especialmente, pelo crescimento e consciência da minha felicidade, pois tenho certeza de que todo e qualquer bem que eu consiga irá se refletir automaticamente no ambiente e nas pessoas que estão à minha volta. No fundo, todos somos geradores e propagadores do bem, do crescimento, da saúde, da sabedoria, do consolo e da compaixão, mas nem sempre temos uma consciência clara deste fato e assim, o deixamos passar como se sequer existisse, perdendo chances únicas e irrepetíveis de experimentar esta sensação maravilhosa, diferente de todas as outras, mágica e renovadora, que é a felicidade. Porém, e mesmo apesar disto, somos nós mesmos quem propiciamos e espalhamos o paraiso ao nosso redor, esta é a verdade, e o toque do amor com que fazemos isto pode verdadeiramente ser capaz de transformar os outros e de resolver as situações mais difíceis das formas mais impensadas. Nós temos este poder!... Céu e inferno habitam dentro de nós, tornando-nos mortais e eternos ao mesmo tempo, mas cabe a nós fazer a escolha e aceitar as suas conseqüências. Ser feliz ou infeliz é, afinal de contas, uma opção somente nossa, que pode aparecer diante de nós a qualquer hora, em qualquer lugar, pois nada é definitivo e sempre podemos mudar o nosso caminho.
Lembro-me de quando era adolescente e todos na família me perguntavam o que planejava ser quando terminasse meus estúdios, tremendamente preocupados com a minha aparente falta de ambição e definição nesta área. "O que você quer ser? O que vai estudar? Onde vai trabalhar? Quanto pretende ganhar? E o que vai fazer com o salário?"... Era a ladainha de todo dia, e eu, invariavelmente, tinha sempre a mesma resposta: "Eu quero é ser feliz!", o que era um agourento despropósito para os tempos que estávamos vivendo, exigentes e ferozmente competitivos, onde o que valia era o status, a especialização, a pós-graduação, a ambição... "Mas ser feliz não é uma profissão! Não dá dinheiro! Nós estamos falando de algo concreto e não desses teus sonhos utópicos!", retrucavam, escandalizados. E eu alegava, perplexa diante da sua total falta de lógica: "Mas, existe algo mais concreto e importante na vida do que a felicidade? Nada vai valer a pena se você não for feliz! Não quero um futuro próspero e infeliz!"...
E ainda acredito piamente nisto, hoje mais do que nunca, sobretudo vendo tudo que consegui me entregando sem reservas a esta empreitada, pois a minha convicção nesta premisa era tão grande que conseguiu mudar a minha vida, traçou meus caminhos e ditou as regras, que eu não hesitei em seguir. Ser e fazer a felicidade é o que realmente nos realiza, não importa como, onde ou com quem. O verdadeiro anseio pela felicidade nos mostra os caminhos, nos abre as portas, nos coloca nos lugares certos, nos apresenta ás pessoas e ás situações que irão aprimorar as nossas potencialidades e acelerar o nosso crescimento para assim podermos seguir o rumo certo e atingir os nossos objetivos de vida. Com certeza, a vontade de ser feliz é sempre a luz que podemos acender na mais profunda escuridão. Acredito totalmente que perseguir e alcançar a felicidade é o "bom encontro", como diria Spinosa, pois é encontrar Deus em si mesmo, é encontrar a si mesmo e isto pode modificar tudo em nosso interior e à nossa volta. Apoiados no desejo de ser felizes nos tornamos capazes de encarar cualquer desafio ou provação, já que à felicidade se alia naturalmente o otimismo e a fé, que permearão os nossos atos, as nossa decisões e processos, facilitando assím a descoberta de soluções para os problemas... E se por ventura fracassarmos, a felicidade ainda nos sustentará e nos fará reunir novas forças para continuar a lutar, fazendo com que deste fracasso tiremos uma lição valiosa que irá nos ajudar em outras situações difíceis. Não existe só um motivo que nos deixe felizes, a felicidade não se baseia numa única coisa, situação ou pessoa, mas sim num conjunto de todas elas, que estão espalhadas em todas as áreas da nossa existência. Então, se não temos sucesso numa, ainda nos restam todas as outras para nos manter felizes e dispostos a abrir novas portas e percorrer novos caminhos.
Não interessa quanto se tem, ou o que se faz, onde se mora, quem se é. Vivendo em felicidade, a realização é certa, mesmo que ela não signifique riqueza, fama ou poder, porque ser feliz não é uma profissão, mas uma escolha de vida.
"O que nos define não são as nossas habilidades, mas as nossas escolhas" (Dumbledore, Harry Potter)

domingo, 20 de dezembro de 2009

Manhã, tarde e noite

Finalmente de férias (agora sim podem fazer carinha de inveja!) e acho que vou poder começar a cuidar um pouco mais de mim mesma, coisa que estou precisando um bocado. Pretendo voltar às minhas caminhadas matinais, à dieta certa e à produção literária, que anda bastante prejudicada com tanto desgosto, trabalho e doença. Não vou esperar o dia de ano novo para fazer as minhas promessas, vou começar a cumpri-las a partir de hoje mesmo!... Afinal, fim de ano não é só para avaliações, cobranças, arrependimentos ou críticas, mas também -e principalmente, acho eu- para novos começos, para reciclagem, para renovação física e espiritual, para limpeza e renovação da fé e do otimismo. E se posso começar agora, por que aguardar até o dia 31?... Meu ano novo já está correndo!.

É tão diferente sentar-se aqui fora ao entardecer para escrever!... É incrível como o cenário muda da manhã para esta hora! No fim do dia vem a penumbra, rápida e bela, dramática, e em seguida a escuridão, povoada de sombras, mistérios e insetos que sonham com beijar a luz dos postes e das garagens e, qual Romeus desenganados, acabam morrendo no instante em que o conseguem. À noite a cidade se enche de luzes artificiais, de uma expectativa sem respostas, daquela languidez que chama a janta, a novela, o banho, a cama... Os sons e os movimentos são outros. Os pássaros, vibrantes e velozes pela manhã, desaparecem, confundindo-se com a folhagem escura e silenciosa das árvores; o frescor é diferente, cansado e denso, impregnado de perfumes e suor; a paisagem se mostra menos nítida, algo mórbida, sem definições... Este não é, definitivamente, o melhor periodo para eu produzir qualquer coisa, mesmo se, raramente, tem as suas excelentes exceções. Sou uma pessoa totalmente diurna, adoro o amanhecer, a manhã, o sol, os pássaros e a sua algaravia, a energia do novo dia e seu frescor -mesmo no nosso verão escaldante- a expectativa, os desafios que ainda nos aguardam, aquela incomparável sensação de constante renascimento, de possibilidades criativas, de estar acordada e viva... Já o fim do dia me leva ao repouso, a uma certa letargia, a um quê de inquietação, de avaliação -quase sempre positiva, graças à Deus- de término. É um apagar-se, esvair-se, um diluir-se no sono que começa a rondar os nossos gestos, palavras e pensamentos, nossos olhares e intenções. É aquela preguiça gostosa e cheia de dengo que não quer saber de mais nada. Logo depois de almoço começo a ser tomada por esta sensação de que tudo vai parando -pois a minha mente já está cheia de imagens, vozes, acontecimentos, revelações e conclusões, o que significa que é hora de parar e começar a refletir- adormecendo, de que o periodo de atividade foi encerrado uma vez que a última garfada de comida caiu no estômago. Faço a minha antológica sesta e vou para o trabalho, onde sou obrigada a produzir, a me mexer, falar, tomar decisões e encarar turmas de alunos irrequietos e barulhentos, ansiosos para aprender, mas estou convencida de que se ficasse em casa e tentasse criar alguma coisa meu cérebro simplesmente se negaria a funcionar. Precisaria de um esforço enorme para programar meu corpo e a minha mente para se acostumarem a produzir às tardes... Na verdade, estou sempre tentando, mas até agora não obtive muito sucesso na empreitada...
Gosto da noite para me despir de tudo e me preparar para o constante e novo amanhã, para seus desafios e descobertas, seus encontros e lições, para o diário renascer e refazer. A luz se vá, as imagens mergulham na escuridão imóvel do céu, a definição esvanece, os contornos tornam-se incertos... No ar cheiro de janta, chuveiros ligados, carros voltando para casa, música e vozes de jornal, de novela... O mundo se recolhe, adentra no silêncio do seu cansaço e, finalmente, adormece. Tudo acaba, mais uma vez... Para recomeçar amanhã, e amanhã, e amanhã de novo. Amanhã para sempre, quer estejamos ainda aqui ou não.

sábado, 12 de dezembro de 2009

A experiência

E como prometido, aqui vai a segunda crônica, para ficarmos em dia... Mas na verdade estou tão contente que seria capaz de postar algumas outras por puro prazer; porém, como não pretendo que tenham uma indigestão, não vou exagerar, então, serão somente estas duas neste final de semana.

Chego à conclusão, após mais um ano de trabalho duro e nem sempre muito gratificante em todas as áreas, de que o que realmente importa nesta vida é a experiência, a vivência; são os processos de descoberta, compreensão e conclusão pelos quais passamos ao longo dos anos, pois é só através deles que nós crescemos e amadurecemos, que aprendemos a conviver, a interagir, a aceitar e a nos doar para o bem do outro. Agora, para medir o sucesso destas experiências não é necessário que tenhamos nos tornado ricos, famosos ou poderosos, pois não é por estes motivos que passamos por elas, mas para nos tornar mais sábios, compassivos e pacíficos. A experiência é composta por uma série de processos que podem ser sumamente enriquecedores, portanto, não devemos subestimá-lo ou tentar minimizá-lo, menos ainda esquivar-nos dela ou descartá-la. Pena que, com demasiada freqüência, as pessoas só se preocupam com os resultados, sem importar-se muito com a qualidade da experiência, com os detalhes, os sinais, as mensagens, o percurso em si. Querem mais é mostrar do que são capazes, mas eu acho que não é preciso montar uma exposição no Louvre para dizer que pintamos, ou publicar um best-seller mundial para chamar-nos de escritores. Não temos que subir ao palco da Ópera de Paris para provar que cantamos nem fazer piruetas espantosas sob os holofotes do Bolshoi... Mas, por que será que sempre procuramos mais uma experiência limite, que fique conhecida e nos dê prestígio perante a mídia ao invés de investir em ações mais discretas, porém efetivas e que, de qualquer forma, poderiam nos levar aos mesmos resultados? Acho que é porque este é o comportamento padrão, aquele que é aceito pela sociedade e ninguém está disposto a correr o risco de ficar à margem dela... Mas a intenção primordial da nossa existência é poder compartilhar a felicidade da nossa experiência e assim animar outros a se aventurarem por estas veredas tão gratificantes e cheias de descobertas e emoções únicas e transformadoras. O pequeno também tem seu mérito -que, por sinal, é enorme- e não podemos esquecer que a grandes coisas são formadas por partículas minúsculas, as obras mais célebres por palavras, notas, grãos de areia, passos e frases.
Uma experiência vivida plenamente pode, efetivamente, transformar a nossa existência, abrindo portas e desvendando caminhos impensados e bem mais duradouros e enriquecedores do que os conhecidos e percorridos pela maioria

A grande performance

Bom, e para começar a recuperar o tempo perdido por causa de viroses, apresentações, ensaios e reuniões de todo tipo, visitas ao médico e à oficina técnica da loja de computadores, aqui vai a primeira crônica das que estou devendo-lhes. Hoje, amanhã e até quinta-feira da semana que vem ainda estarei bastante ocupada, pois, ao invés de sair de férias (mas podem continuar com inveja porque sairei na próxima sexta) como eu pensava, vou ter de apresentar uma peça para arrecadar dinheiro e pagar umas contas da fundação, porque o orçamento ficou curto este ano -coisas da oposição, dizem eles- e só sobramos nós para dar conta deste recado. Em todo caso, ao invés disto estar sendo algum tipo de punição extra, na verdade mais parece um presentão de natal porque, finalmente, estou fazendo aquilo que mais gosto: teatro adulto. Estou cansada (ando por aí durmindo em pé) com a glicemia disparada e uma anemia meio séria, mas estou completa e absurdamente feliz por esta chance bem no fim do que eu achei -e ainda acho- ser o pior ano que já vivi na fundação. Tudo parece estar se recompondo, voltando aos eixos, retomando o rumo lógico... Só espero que a coisa continue assim o ano que vem e que todo este esforço valha a pena. Em todo caso, de qualquer forma terei meu grupo de teatro de novo, o que vai compensar qualquer desgosto que possa aparecer... Como podem perceber, então, meu ano novo já começou, e da melhor forma possível!...
E aqui vai a primeira crônica, que foi publicada esta semana no jornal:

Olho em minha volta e percebo -suponho que como artista que sou- que é tudo uma grande, interminável e perfeita performance. Cenários, personagens e histórias transcorrem sem cessar; alguns são protagonistas, outros coadjuvantes, iluminadores, figurinistas, maquiadores. Algumas vezes somos público, outras atores; outras poucas nos aventuramos a escrever roteiros, a criar textos e viver personagens e ilusões que nem sempre acabam em aplausos ou elogios, nem nos tornam ricos ou famosos. Às vezes nos perdemos entre os cenários, as máscaras e a maquiagem, nos enganamos -e tentamos enganar os outros- com falas e marcações que não sentimos, esquecemos o diálogo. Nos deixamos seduzir pela luz dos holofotes, pelo barulho ensurdecedor dos aplausos, nos envolvemos numa história que não é a nossa.
Quase sempre esquecemos que o ator precisa ser dirigido por alguém mais sábio, precisa aprender, precisa adquirir técnica, desenvoltura, domínio, equilíbrio; precisa trabalhar a sua criatividade, a sua humanidade, tem que investir em seu talento com afinco e perseverança, pois um diamante sem lapidar é tão somente uma pedra e um ator que só decora e repete falas e gestos não passa de um papagaio. A terra é um palco de infinitos cenários pelos quais vamos passando, feito os personagens de um roteiro, nos quais interagimos, crescemos e temos a oportunidade de acrescentar preciosos detalhes à trama. Encontramos nesta história incontáveis ajudantes, protagonistas, mocinhos e bandidos, princesas em perigo, ladrões bons e rainhas más, nos deparamos com heróis e traidores, com sábios e idiotas, somos envolvidos pelo amor e pelo ódio, pela cobiça, pela compaixão, pelas mentiras que nos confundem e escurecem nosso caminho e pela verdade que tudo revela e tudo desimpede, mesmo diante dos maiores desafios.
Olho em volta e me sinto parte real e viva desta peça fantástica que é a existência, com todos seus altos e baixos, seus incontáveis finais e recomeços, suas mil faces e vozes, os encontros e desencontros, os fracassos e as vitórias, a glória e a miséria, e uma imensa onda de gratidão me arrasta para o seio infinito e cálido de Deus que, apesar de ser o criador e o diretor, sempre nos brinda a possibilidade de escolher nosso papel e de improvisar.

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Mudanças

Atrasada por falhas técnicas e humanas, porém, fiel e inspirada, aqui vai a crônica da semana passada, e na sexta postarei a desta semana, prometo. Acho que tudo vai voltar ao normal agora que já melhorei -e meu velho samurai (leia-se:computador) também- e como estou prestes a, finalmente, sair de férias (vi alguma carinha de inveja?) agora terei tempo de escrever, de passear, de observar e refletir com calma e profundidade para me renovar e me encher de inspiração e paz. As coisas ruins serão esquecidas e aguardarei por felizes novidades para o ano que vem, que de desgraças este já encheu a sua quota e até extrapolou! Então, como o pêndulo vai e volta, acho que está chegando a hora dele voltar trazendo alegria, otimismo, novos desafios, abrindo portas e mostrando-me novos caminhos e possibilidades que não pretendo desaproveitar... E afinal, o que seria da nossa felicidade e o nosso sucesso se não conhecéssemos a tristeza e as dificuldades?...

Calça preta social, camiseta preta, sapatos fechados pretos e bolsa preta... A moça loira, de pele clara, olhos verdes e bastantes quilos a mais, atravessa com passo rápido e firme a rua em direção ao seu trabalho, uma escura lojinha de auto-peças quase no fim da avenida principal da cidade, espremida entre um lava-carros e um pequeno bar sempre lotado de trabalhadores barulhentos e suas bicicletas atravancando a calçada. Não olha a paisagem ou as outras pessoas, não cumprimenta ninguém, nada parece capaz de fazê-la mudar o ritmo da sua caminhada decidida e pesada, sem graça... Está tão absorta em algum pensamento grave que o mundo à sua volta deixou de existir ou, simplesmente, não tem interesse algum naquilo que a rodeia?...
Todo dia a vejo passar assim, rápida, séria e indiferente, sempre trajando preto -que não é o uniforme da loja, já investiguei- através do portão aberto da academia enquanto suo e ofego na esteira, e todo dia não posso evitar me perguntar por que só usa roupa preta, por que parece tão séria e por que anda tão rápido (será que todo dia perde a hora e precisa correr para chegar em tempo no trabalho?) Não me é totalmente desconhecida, pois faz parte do coral da Fundação Cultural onde trabalho -lá também só vai de roupa preta- e já me cumprimentou algumas vezes com um tímido sorriso ao cruzar comigo à caminho do seu ensaio, mas agora conseguiu despertar a minha curiosidade com seu comportamento, pois a sua presença passou a formar parte da minha rotina diária, o que para mim significa um tipo peculiar de intimidade e cumplicidade, de partilha, que me autoriza a tentar descobrir alguma coisa sobre ela e a sua vida... Nâo sei seu nome e, apesar do seu aspecto algo rude, na verdade é muito tímida e fala quase sempre num murmúrio que parece pedir licença para sair da sua boca e ser escutado... Tem uns dentes lindos, brancos e perfeitos, a cor dos seus cabelos é de um dourado luminoso e, quando solto, se espalha lindamente sobre seus ombros, feito uma cascata de cachos solares. Seus olhos são de um verde no qual se mistura um pouco de azul e, apesar de pequenos e de cílios curtos, se iluminam toda vez que ela sorri, o que é bastante raro... Eu a observo demoradamente, sem que ela perceba, e ao mesmo tempo observo o cenário em sua volta: ninguém parece notá-la, não faz nenhuma diferença no quadro, passa feito o ar, uma sobra fugidia, um vulto ignorado por todos... Será que ela se dá conta deste fato, ou, numa resposta inconsciente, também ignora o mundo ao seu redor? Ou então, realmente não percebe nada?.
Então, de repente me ocorre imaginá-la usando uma blusa com estampas claras, sandálias e calças jeans, uns brincos caprichados, batom e sombra nos olhos, talvez uma presilha colorida no cabelo. Pareceria tão diferente, tão mais leve e amigável! Realçaria a cor da sua pele, o cabelo, os olhos claros, suavizaria as feições tão sérias e pouco graciosas... Será que nunca ninguém falou isso para ela? Será que quando se olha no espelho toda manhã não sente vontade de mudar, de se transformar, de fazer parte do mundo em que vive?... Bom, talvez não. Talvez nem sequer se olhe no espelho. Mas, com certeza, tudo isso seria uma ótima mudança. No entanto, o preto continua prevalecendo, junto com a minha curiosidade.
Falto alguns dias na academia por causa de uma gripe e quando retorno ao meu lugar na torturante esteira, me encontro com uma nova e inesperada visão. Eis que a moça surge no retângulo do portão, como todo dia, mas logo percebo a mudança: está vestindo uma camiseta marrom!... Nâo consigo segurar um sorriso e imediatamente me pergunto o que terá acontecido para ocasionar esta transformação. Será que conheceu alguém? Ou resolveu algum problema grave e isto deixou-a leve e disposta a arriscar alguma mudança, mesmo que pequena? Será que algo ou alguém a fez criar coragem para tomar uma atitude há tempos adiada?... Porque a cor a camiseta é somente o reflexo do que algo aconteceu dentro dela, fazendo-a rever a sua vida e optar por novas atitudes. E em seguida me pergunto: mas, e os outros? Será que eles notaram a diferença? Será que vão falar alguma coisa para ela, elogiá-la, incentivá-la?... Ah, se eu pudesse pular desta esteira neste instante, o faria, para ela perceber que a sua mudança não passou em branco e deixou alguém contente. E me deixou mesmo, pois gosto de ver mudanças positivas acontecendo na vida das pessoas que me rodeiam, quer as conheça ou não! Gosto de alegrar-me com elas e por elas, pois sinto como se fossem minhas também.
A moça desaparece do espaço do portão poucos instantes depois (será que também estava caminhando mais devagar, ou foi impressão minha?) e eu fico sorrindo na minha esteira, suando às bicas e aturando papo furado dos monitores, mas com o coração leve e agradecido, sentindo-me de alguma forma importante no dia dela pelo fato de ter notado seu discreto, porém ousado feito... E enquanto me enxugo perto do bebedouro, penso em todas as mudanças pelas quais passamos ao longo das nossas vidas, essas que são conseqüência de nossas próprias decisões, nosso risco e nosso jeito de manifestar a nossa liberdade de escolha, a nossa responsabilidade, o nosso anseio por melhorar e ser felizes, e me pergunto quantas delas são realmente percebidas e incentivadas por aqueles que nos rodeiam, sem importar seu tamanho ou a sua obviedade; quantas são sinceramente comemoradas por quem nos ama e compartilha a nossa vida, quantas são usadas como exemplo, como porta para maiores transformações. É tão importante recebermos essa força nesses momentos! Mudar é tão sofrido, tão difícil, requer de tanta coragem e perseverança, de tanta fé e força de vontade, que cada passo rumo à transformação tinha que valer um carnaval!... Na verdade, é bem isto que tenho vontade de fazer. Sair correndo atás da moça e abraçá-la, dar-lhe os parabéns e encorajá-la a continuar, pois com certeza, a sua mudança pessoal é também parte da uma mudança na história da humanidade, não importa quão diminuta ela possa parecer. Não se pode esquecer que é de minúsculos grãos que um deserto é formado e é deles que depende a sua beleza, a sua forma, a sua duração... Hoje, a camiseta marrom; amanhã, quem sabe, um batom transparente, uma sandália verde, ou branca, um brinquinho discreto, e a imagem irá se transformando até virar um ponto de luz no quadrado do portão da academia.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Nossa expressão

Bom, dizem que as desgraças nunca vêm sozinhas, e é justamente por isto que esta semana estou tããããão atrasada para postar a minha crônica. Acontece que na quinta-feira passada roubaram a minha bolsa com todos meus documentos, dinheiro, cartões, medidor de glicemia, chaves e agenda, mais meu precioso celular novo, que nem comecei a pagar ainda!... Imaginem como fiquei!... Totalmente desesperada, porque para tirar a segunda via da minha identidade de estrangeira residente é um tremendo rolo e sai super caro; e furiosa pela absoluta impotência diante de alguém que -não sei por que cargas d'água- acha que tem o direito de pegar as minhas coisas, ficar com as que gosta ou podem lhe ser úteis e jogar o resto fora em qualquer data vazia sem o menor escrúpulo... Confesso que ainda tenho a esperança (afinal, é o último que morre) de ter me deparado com um ladrão piedoso e gentil -se é que eles existem- que tenha dó de mim e me devolva, pelo menos, os documentos, evitando-me assim um pouco de transtorno... Vamos ver se santa Rita de Cássia quebra meu galho neste problemão...
A segunda desgraça é um vírus que peguei, por causa del tremendo calor que anda fazendo, e que me tem feito um pinto molhado, murcho e sonolento. Como tive que apresentar dois espetáculos para encerrar meu ano de trabalho na fundação, não consegui me cuidar direito e acabei desidratada e debilitada, então estou de repouso por dois dias inteirinhos... que pretendo aproveitar para pôr meus blogs em dia (que já ultrapassaram as mil visitas, vocês viram?) assim como meus outros escritos... Bom, e aproveitando os últimos vestígios de frescor antes que o sol comece a derreter os nossos cérebros -com sombrinha ou não- aqui vai a crônica da semana passada... Na sexta posto a desta semana, assim vocês têm mais para ler. E obrigada pelas mais de mil visitas!...

Cabecinhas abaixadas, olhar compenetrado, pincéis ou lápis na mão, costas curvadas sobre a mesa... Às vezes param, se endireitam, mãos no ar, e ladeando a cabeça permanecem durante alguns instantes apreciando seu trabalho. Uns sorriem, outros franzem a testa, não muito contentes com o que vêem; já outros ficam pensativos, à procura do próximo traço, da cor perfeita, da forma que dança em suas cabeças. Uns poucos estão tão compenetrados que não prestam atenção em mais nada. Já outros rabiscam distraidamente na folha branca do bloco, sem nenhuma vontade, ou dão uma espiada nos trabalhos dos outros para ver o que é mais fácil de copiar ou aproveitar como idéia básica (Estes, eu me pergunto uma e outra vez, o que estão fazendo aqui, mas com certeza a sua presença em minha sala deve ser culpa dos pais, que querem uma folga das suas peraltices)
A cada certo tempo, se viram e me mostram o trabalho, perguntam a minha opinião, pedem para corrigir alguns traços ou passar um risco preto em volta do desenho, para fazer a margem ou misturar uma cor... Damos muita risada, escutamos música, fofocamos, criamos, analisamos. A hora e meia de aula passa ora rápido, ora com uma lentidão desesperadora, e me deixa invariavelmente muito cansada, mas contente e satisfeita, pois os resultados estão sendo excelentes e elogiados por quem vê os trabalhos. No entanto, não é somente por iste motivo que me sinto realizada, mas principalmente pela experiência sobre a expressão da alma, da linguagem peculiar de cada um que estes alunos estão vivenciando. Isto é o que realmente tem valor para mim: a liberdade e o auto-conhecimento, o despertar da consciência do universo interno e externo no qual existimos e a expressão das imagens e conclusões a que isto nos leva. A busca de uma linguagem pessoal, única, a experimentação sem compromisso, o prazer do ato criador, a descoberta e desenvolvimento das próprias capacidades de expressão e a aceitação da diversidade que existe entre as pessoas são as matérias mais importantes em minha aula. Estas experiências e seus resultados são o que fazem tudo valer a pena. Imagino o que estes alunos sentem quando contemplam a sua obra terminada: são seus traços ali no papel, as cores que eles escolheram, as formas e texturas, a interpretação que deram ao tema, ou a livre escolha dele... Eu as vejo penduradas na parede ou em cima das prateleiras e me parecem maravilhosas, a despeito de qualquer "defeito técnico", pois tenho certeza de que são o fiel reflexo de uma experiência única e verdadeira. São brilhantes, espontáneas, graciosas, originais, ousadas, puras. Possuem uma beleza intrínseca que desafia qualquer padrão estabelecido ou crítica, porque foram criadas com amor, com cuidado, sem medo, sempre perseguindo a expressão mais íntima. Assim, elas são tão valiosas quanto aquelas que estão expostas nas paredes dos grandes museus protegidas por vidros, grades, lasers e alarmes, valorizadas com uma iluminação especial e com confortáveis poltronas ou bancos na frente para que o público possa tomar seu tempo para contemplá-las, copiá-las ou analisá-las.
No entanto, o mais importante na produção destas obras é a adquisição da consciência de que cada coisa que produzimos é uma parte vital da nossa existência, até a mais banal e breve, pois expressa o que somos e o que queremos dizer, o que sonhamos, o que desejamos partilhar com o mundo. Comida, roupa, decoração, jardins, objetos, textos, quadros, músicas, poesias, esculturas, palavras, gestos, tudo é parte do que somos, tudo que produzimos nos revela diante dos outros, por isso todo ato de expressão é tão valioso e precisa ser levado em conta, não importa se ele provém de uma criança, de uma dona de casa, de um velho, de um mendigo ou de um príncipe... Estes alunos em minha sala estão dando os primeiros passos não só no caminho da arte, do desenho, mas da expressão pessoal, e não interessa se irão se tornar grandes artistas ou simples pedreiros, executivos, balconistas, donas de casa ou arquitetos, o importante é terem esta experiência e se tornarem capazes de levá-la adiante pela vida afora, enriquecendo assim a história da humanidade da qual formam parte.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Pessoas e animais

Hoje estou extraordináriamente contente, cheia de novas e positivas resoluções -por que ser desagradável e destilar mágoa quando se tem a capacidade de ser amável e espalhar gestos de simpatia e solidariedade, de compreensão e aceitação?- muito animada pela possível volta à ativa do meu grupo de teatro (saberei neste domingo) inspirada, segura com respeito às apresentações dos meus alunos no encerramento das atividades anuais (na sexta, dia 27 e na segunda, dia 30) e muito feliz porque a minha filha vem neste fim de semana, coisa que não esperava, pois está de plantão na tevê... Porém, o que me deixou mais contente e até me emocionou foi ver, ao abrir este blog para conferir se havia comentários, que meu filho havia lido a minha última crônica e postado um comentário muito bonito. É a primeira vez que ele visita meu blog! Imaginem a minha alegria! (Por sinal, ele escreve muito bem também. Acho que é coisa de família) Fiquei sorrindo que nem boba e estou doida para encontrá-lo e dar-lhe um daqueles abraços!... Como vêem, a opinião e participação da família é sempre o que mais importa para a gente. Acho que mesmo se o presidente da república elogiasse meus textos, eu não ficaria tão feliz assim... Olhem a minha cara de boba!...
E depois deste montanha de felicidade, amor, ânimo e otimismo, aqui vai a crônica desta semana, mais inspirada do que nunca.

Acredito que aquilo que fazemos aos animais, bom ou ruim, pode ser um reflexo do que somos capazes de fazer aos seres humanos, queiramos admiti-lo ou não. Bater num cachorro ou botar umas migalhas para os passarinhos, demonstra o que temos no coração e o que estamos dispostos e fazer pelos outros... Pessoalmente, eu dou biscoito para cachorros que nem conheço, boto pão em cima do muro para os passarinhos e até comprei um bebedouro para que eles bebam e se refresquem neste calor assassino... Meditando sobre isto, chego à conclusão de que gostaria de poder fazer a mesma coisa pelas pessoas, mas não com pão e água, é claro, e sim com ações, com palavras, com paciência e cratividade, com persistência e humildade, com otimismo. Se não desisto de um cachorro bravo até conseguir a sua amizade, por que desistir de me aproximar de um ser humano, mesmo que problemático ou fora dos padrões?...Bom, neste ponto tenho que confessar que tenho mais sucesso com pardais e filas, pois eles são bem menos complicados de satisfazer do que os homens, e que quando os vejo pousar no muro ou descer até o bebedouro, ou então se aproximar até a grade balançando o rabo de alegria, não sei por quê, me sinto tomada por novos ânimos para agir amorosamente com meus semelhantes, por isso acho que ambas coisas estão ligadas. Nos animais me comove especialmente a simplicidade das suas necessidades e a sua irrestrita gratidão, então, por tabela, também busco nas pessoas a mesma necessidade primordial. Mas esta, para nós, é talvez a mais difícil de preencher: o amor. Assim como para o animal domesticado, a necessidade mais urgente e vital do homem é o amor, então, tento sempre guiar as minhas ações nessa direção, preocupada em que meus gestos e palavras sejam destinados a despertar, a tocar, a partilhar o amor que às vezes sinto transbordar em mim... O pão não custa caro -ou então usamos o de ontem, que é de graça- O bebedouro precisa ser lavado uma vez por semana e a água trocada todo dia. O cheirinho dos biscoitos em minha bolsa não é dos melhores... Mas é o preço para manter os passarinhos e cachorros por perto, para entrar em contato, para desenvolver uma relação. Alguns sacrifícios valem a pena... Mas, e para amar meus irmãos? Qual é o preço? Será que é necessário muito sacrifício?...
Bom, sem dúvida precisamos fazer alguns. É um exercício diário que requer de perseverança e otimismo, coisa que às vezes é difícil de sustentar, sobretudo levando em conta quão complicados, receosos e ignorantes somos. Mas se eu pico pão todo dia, troco a água, espalho as migalhas no muro e assobio; se coloco biscoitos dentro da minha bolsa e tenho sempre um sorriso e um cumprimento alegre para os cães, faça frio ou calor, não poderia fazer o mesm esforço em se tratando dos homens? Talvez a mesma beatitude que me invade ao deitar na rede para observar os passarinhos tome conta de mim ao contemplar àqueles por quem me esforcei hoje, mesmo não vendo o resultado das minhas ações, porém, tendo quase certeza de que meu pequeno ato de amor pode ter pintado um sorriso -mesmo que amarelo- no rosto de alguém, ou desanuviado um ambiente sombrio.
Pão e água: alimento essencia. Amor, amar: estado essencial.

sábado, 14 de novembro de 2009

Sementes

Como hoje é o dia mundial do diabetes e eu faço parte deste contingente devorador de doces e refrigerantes dietéticos, espetador de dedos e horários rígidos para cada refeição -incluindo porções bem específicas de cada alimento- e, ainda por cima, estou de ótimo humor porque a minha glicemia finalmente está onde eu queria e a minha filha vem me visitar este fim de semana, decidi postar uma outra crônica em homenagem aos possíveis diabéticos que lêem estes textos... Irmãos, a luta continua! Vamos ser fiéis e honestos, perseverantes e otimistas porque, afinal, existem os produtos dietéticos! O mundo não nos esqueceu! Vamos fazer a nossa parte para viver bem e mais porque vale a pena, mesmo!...
E após este ato cívico, aqui vai a outra crônica, que é a mesma que enviei para o jornal semana passada.

Sementes caídas no chão, centenas delas espalhadas em volta da árvore formando um rangente tapete de biscoitinhos marrom com pintinhas avermelhadas... Reparei nelas porque começaram a estalar sob meus sapatos feito pequenos fogos de artifício quando passei embaixo daquela árvore. Então, curiosa e surpresa, parei e e observei em volta: as bolinhas achatadas cobriam quase por completo o cimento da calçada ao redor do tronco, o que fazia com que parecesse que eu estava no meio de uma ilha perfumada... Fiquei alguns instantes a contemplá-las, enquanto um pensamento vinha à minha cabeça: "Que desperdiço estas sementes caírem na calçada! Com certeza vão ser pisoteadas e esmigalhadas ou vão torrar neste sol inclemente. Que destino diferente teriam se caíssem na terra e fossem regadas e adubadas! Quantas novas árvores perfumariam o ar! Provavelmente um bosque inteiro! No entanto, jogadas nesta calçada, não frutificarão, que pena! Todo o trabalho da natureza perdido!"...
Continuei meu caminho, sempre com a imagem das sementes na cabeça, e de repente me ocorreu que acontece a mesma coisa com os nossos atos, pensamentos e palavras. Se forem semeados em solo fértil, regados e cuidados, eles prosperam, florescem, dão frutos. Porém, se lançados no asfalto, de qualquer maneira, sem água nem adubo, acabam por morrer e desaparecer, transformando-se numa perda de tempo e energia. Então, com quanto cuidado teremos de escolher o terreno onde semearemos a nossa existência para que, desta forma, esta seja valiosa e deixe algum legado para os que virão depois de nós! Caso contrário, seremos como aquelas sementes que foram esmagadas na calçada em volta da árvore. Só fizeram barulho, mas nada produziram.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

O coração dos homens

Bom, a não ser por algumas manhãs brevemente frescas e nubladas, por acá continuamos a cozinhar impiedosamente, mesmo sob sombrinhas, com ventiladores e ar condicionado ligados, muitas chuveradas, litros de água, suco, chá gelado e refrigerante, toneladas de sorvete e roupas leves e quase escandalosas... Estou realmente preocupada com o que vai ser de nós no verão. Acho que vou ficar com medo de sair na rua e acabar virando uma mancha no asfalto, incapaz de resistir aos raios calcinantes do sol... A não ser, é claro, que tenhamos algum tipo de desarranjo climático e o verão se transforme em algum tipo de outono ou pseudo-inverno de temperaturas agradáveis. Isso seria um ponto favorável neste apocalipse climático que estamos vivendo...
E aproveitando antes de que a coisa esquente ainda mais -porque o pc ligado emite um calor desgraçado- já vou postar a crônica de hoje. Depois posso derreter tranqüilamente em algum canto da casa junto com a minha cadela e as minhas plantas...

O coração dos homens pode, às vezes, parecer seco, endurecido e escuro e nos encher de desânimo e pessimismo, tentando-nos a desistir de amá-lo e de lutar por ele e a sua redenção... Porém, toda vez que isto acontecer, o que devemos fazer é olhar em volta, para as infinitas manifestações de amor, de renascimento, de perdão e fé que Deus coloca diante de nós, demonstrando-nos assim como Ele próprio ainda acredita e espera de nós um sinal, uma palavra, um pensamento, a mera intenção do bem. É como se Ele soubesse que somos capazes disto e por isso estivesse a todo instante oferecendo-nos esta chance... Eu acho que nos envia estas mostras da sua fé em nós imaginando que, certamente, em algum momento das nossas vidas, encontraremos nelas as respostas e a coragem para continuar a acreditar no homem e seu coração potencialmente perfeito, apesar de todas as provas em contrário... Mas eu penso: se até no meio das rochas nasce musgo e das frestas do asfalto se erguem pequenas flores, se o deserto de Atacama guarda em suas entranhas ressequidas o milagre da floração, por que não pode acontecer o mesmo no coração do ser humano? Não é para isto que ele existe, para se transformar e florescer, para dar frutos que podem alimentar a todos?... Olhando a história da humanidade, podemos comprovar que o coração do homem é a raiz de todos os milagres, de todas as mudanças, de todas as conquistas, de toda a felicidade, mesmo que às vezes esteja recoberto pela amargura e a cobiça, pela ignorância e o medo, pela vaidade, pelo ódio... Mas, por que ele é um tesouro tão grande, um bem tão inestimável, um dom tão precioso? Pois simplesmente, porque é nele que está plantada a semente de Deus. E se a raiz subsistir, de qualquer tronco mutilado nascerão, com o tempo, novos brotos, galhos e folhas que talvez cresçam em outras direções, com outras formas e tamanhos, mas que serão sempre mais fortes, mais resistentes e belos, pois foram gerados contra todas as expectativas. Assim também, da aparente maldade que domina o coração de tantos, pode surgir o milagre da transformação, da redenção, de um amor ainda mais forte e fiel porque emergido da dor e da escuridão. A nossa raiz é o amor e ela é eterna, nunca nos abandona, não permite que a esqueçamos, por mais relegada que esteja. É ela que devemos procurar quando nos sentirmos secos e exaustos, vazios, abandonados sob o sol de tantas provações. Ela nos ajudará a produzir o perene milagre da renovação, do recomeço.
Na natureza e na vida do homem, é a manifestação do amor divino o que torna possível a existência.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Pérolas

Bom, ao contrário da última vez que sentei para escrever, hoje não está caindo o segundo dilúvio, mas estamos simplesmente fritando, derretendo, cozinhando. O calor de 38 graus deixa todos nós aflitos, desanimados, irritados, quase doentes, sobretudo se começamos a imaginar como vai ser o verão, levando em conta estas temperaturas absurdas para a primavera. Definitivamente, este é um país de extremos. Ou será que o planeta todo está virando um lugar de extremos?... Estamos pagando o pato pelo nosso descuido e abuso com ele?... Com certeza, e agora vamos ter de agüentar as conseqüências de bico fechado ou sair por aí inventando ar condicionado portátil, ventilador portátil ou roupa com refrigeração incluida nas fibras do tecido, sapatos com solas isolantes e ventilação extra e sombrinhas que criem um agradável clima templado embaixo delas quando abertas, mesmo em meio ao mais escaldante dia de verão... Parece absurdo, né? Pura ficção científica, exagero, fatalismo, mas, sinceramente, acho que é o único que vai nos restando por fazer, já que estragamos todo o resto.
Como vêem, hoje estou meio fúnebre, mas acho que de aqui a pouco passa. É que a situação no meu trabalho continua a sabotar todas as minhas tentativas de otimismo e coragem... Mas talvez escrever esta crônica me devolva um pouco da fé e da alegria que preciso para continuar adiante e parar de xingar até o coitado do meu anjo da guarda. Ainda bem que ele é muito compreensivo e paciente, mesmo que eu esteja deixando-o com as asas meio chamuscadas de tanto desgosto... Até Deus andou levando uns olhares tortos da minha parte nestes últimos dias!... Mas já, já voltamos às boas, não se preocupem...
E aqui vai a crônica desta semana. Nâo tenho muita certeza de se já a publiquei, porque meus textos estão uma bagunça e não consigo terminar de corrigir os diários antigos para colocar as coisas na ordem cronológica certa, então fico pegando daqui e dali e, como não anoto qual texto já enviei para o jornal ou postei aqui, posso acabar postando o mesmo texto duas vezes... Em fim, quem não leu pode gostar, e quem já leu, pode gostar de novo...

Sentada sozinha na sala pequena e quente onde ministro as aulas de desenho, me inclinava sobre um prato de cerâmica pintado por um aluno naquela mesma tarde, passando cuidadosamente um fino risco preto em volta do desenho -coisa que só eu consigo fazer porque a maioria deles não possui ainda a coordenação motora suficiente como para executar esta tarefa- ventilador ligado, barulhento e quase inútil, luz ligada, cheiro de tinta e argila no ar... Estava totalmente concentrada e muito satisfeita ao perceber como alguns detalhes ou pequenas correções que eu fizera nos trabalhos haviam-nos melhorado bastante, dando-lhes maior definição e qualidade. Tinha vários vasos sobre a mesa, de diferentes formas e tamanhos, com os mais diversos desenhos e cores, que ainda precisavam de alguns retoques. A coisa ia longe, com certeza, mas os próprios alunos haviam me pedido para fazer aqueles consertos usando a minha criativivdade e habilidade motora, para que assim eles ficassem mais bonitos com vistas à exposição que montaríamos em breve... Alguns quase não precisavam de melhorias, já outros eram um verdadeiro desafio. Nestes, meu empenho e meu carinho eram maiores, mesmo se a minha criatividade era duramente testada, pois devia procurar formas e cores que dessem a harmonia que faltava aos traços originais, porém sem desvirtuá-los, caso contrário, o trabalho não seria mais obra do aluno... Ambiente abafado, dor nas costas, banquinho incômodo, dedos sujos, olhos começando a lacrimejar, ninguém além de mim no prédio... E eu ali, sem me importar com nada disto, fascinada, tomada por aquela emoção que me fazia esquecer todo o resto, feliz.
Então, de repente, parei, com o pincel no ar, e fiquei olhando fixo para o traço inacabado, preto e brilhante, no fundo do prato em minha mão. Por que estava me sentindo assim, tão contente? Muitos estariam chateados por ter de ficar após o expediente para corrigir trabalhos -às vezes francamente catastróficos- ao invés de ir para casa assistir a novela, tomar um bom banho refrescante e sentar à mesa com a família para jantar algo gostoso. No entanto, aí estava eu, sozinha e com uma tremenda dor nas costas se anunciando, tomada completamente por aquela sensação de paz e alegria, de realização, de trunfo até, apesar de saber que ao chegar em casa teria de lidar com os pavores, inseguranças, o desânimo e a auto-compaixão que, dia após dia, minavam o espírito e o corpo do meu esposo e que tanto me doíam... Então, qual o motivo desta alegria, desta tranqüilidade, deste sorriso que se estampava em meu rosto feito um ventinho maroto?... Depositei lentamente o pincel sobre a mesa coberta pela toalha de plástico, enquanto sentia alguma coisa se formando em minha mente, abrindo uma porta, balbuciando palavras ainda desconexas, e olhei por um instante para o prato em que estava trabalhando, percebendo de uma forma totalmente consciente as mudanças que eu estava provocando nele somente com algumas pinceladas... Então, me dei conta de que todo meu sentimento, toda a revelação que se descortinava diante de mim naquele instante, estava ligada à transformação, à minha capacidade instintiva e irreprimível de melhorar as coisas, de procurar e encontrar a beleza que nelas se escondie para fazê-la transparecer, se manifestar mesmo nos trabalhos mais comprometidos. E esta sensação transformou-se aos poucos numa espécie de confirmação, na certeza incontestável de que sempre existe um meio de achá-la e colocá-la em evidência, de fazê-la ser percebida e apreciada por todos. E como conseqüência desta conclusão, ficou então mais claro que aquela era a minha tarefa: a busca, o ensino, a revelação e a partilha da beleza, a demonstração de que ela sempre existe, não importa quão contrárias possam ser as aparências, e que possui uma diversidade infinita de expressões, sem padrões nem regras. Entendi naquele momento que o aluno, ao vê-la surgir em seu trabalho -que antes podia parecer feio e sem graça, indefinido, mal acabado ou sujo- ao constatar que ela estava efetivamente ali e que só era preciso um pouco de trabalho a mais e de boa vontade para fazê-la vir à tona, ele se sentiria incentivado a praticar este exercício -que tem um inspirador e gratificante retorno espiritual-, esta busca pela beleza em tudo que existe, a desenvolver a habilidade para revelá-la e desfrutá-la não somente em seus trabalhos, mas em sua vida.
Nunca me esqueço de uma historinha que li uma vez em alguma revista, e que fala justamente disto: Caminhavam Jesus e seus discípulos por uma estrada, rindo e comentando os acontecimentos do dia, quando numa curva, depararam-se com um cão morto, já em avançado estado de decomposição, jogado entre umas pedras. Imediatamente, todos se afastaram, cobrindo o nariz e amaldiçoando o animal e seu fedor. Jesus, porém, ao invés de agir da mesma forma, ficou parado diante do cadáver, contemplando-o com um sorriso no rosto. Escandalizados, os discípulos se aproximaram, exclamando: "Mestre, como ficas perto deste animal morto, inchado e já fedendo, sem sentir náusea?" E um outro falou: "Os corvos já arrancaram seus olhos e as feras devoraram parte das suas tripas, como estás aí a contemplar tal carniça?"... Então Jesus virou-se para eles, ainda sorrindo, e apontando para os restos do cachorro, disse: "Mas vocês já viram os dentes dele? Juro que nunca vi pérolas tão brancas!".
Encontrar a beleza é um dom, uma vocação, uma qualidade que todos possuímos e precisamos cultivar e praticar. Temos a missão de desencavá-la, não importa quão escondida se encontre, de despertá-la não importa quantos séculos tenha estado adormecida, de colocá-la diante dos olhos do mundo, não importa se só uns poucos podem percebê-la ou compreendê-la. Fazer as pessoas acreditarem que ela está sempre ali e que é real e poderosa é algo que pode fazer com que a humanidade consiga dar um passo maior, galgar um degrau mais alto, se aproximar mais depressa da felicidade... E então pensei, respirando fundo enquanto deitava os olhos nos trabalhos dos meus alunos espalhados em cima da mesa: "Pois enquanto eu for capaz de encontrar a beleza até nas menores coisas, serei também capaz de encarar todos os desafios da vida, pois a beleza traz felicidade quando descoberta e manifestada em nós mesmos, em nossos pensamentos e ações (pois ela não é só física, mas também espiritual) e a felicidade é uma das maiores forças da vida.
Mal sabia eu que nas singelas obras dos meus alunos estava contida semelhante revelação!...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Ave Fênix

Estava revisando meus diários corrigidos (de onde tiro estas crônicas) e comprovei, não sem preocupação, que estou começando a ficar sem material... E por que isto?... Pois, simplesmente, porque tenho estado ocupada demais tendo dó de mim mesma e reclamando, brigando com Deus e pedindo-lhe todo tipo de explicações, e imersa nos mais absurdos e desgastantes planos para voltar a ter meu lugar e meu prestígio na Fundação, fora aquelas invencíveis crises de preguiça e desânimo que às vezes me arrasam neste último tempo por conta de toda esta frustração e mágoa profissional, o que significou que nem escrevi novos textos -só os apontamentos básicos, ainda falta desenvolvê-los- e nem corrigi todos os que poderia. Então, como as férias estão quase aí, já que meu trabalho termina oficialmente no dia 27 de novembro com a apresentação dos espetáculos do projeto no qual trabalhamos ao longo do ano, pretendo parar com esta frescura toda e dedicar todo o tempo que tiver disponível -ou quase, que ninguém é de ferro também- a pôr em dia tudo isto. Não sei exatamente quando vão me mandar para casa, mas como já não vou ter a pressão nem o cansaço das aulas, acho que vai ser bem mais fácil chegar em casa e sentar aqui para produzir. E como já o tenho comprovado, o ato de escrever, a energia e o tempo gastos nisto e a entrega total à inspiração são absolutamente capazes de tirar qualquer frustração, amargura ou desânimo do meu coração, então, não existe melhor cura para mim do que produzir um texto... Portanto, vamos lá!...
E aqui vai a desta semana:

Ainda me lembro claramente do terrível temporal que derrubou as minhas duas trepadeiras, arrancou um monte de telhas, inundou a minha laje e entortou a atena da televisão; desgalhou e derrubou sem piedade árvores e muros com a sua força raivosa e descontrolada, espalhou sujeira pelas ruas e mudou para sempre a paisagem na qual nos movimentávamos. O vento, feito um gigante enlouquecido, rugia estrondodamente, açoitando com fúria as árvores e fios de alta tensão, e os raios iluminavam o céu carregado com as suas explosões de luz, seguidas pelo som medonho e ensurdecedor dos trovões. Anoiteceu súbitamente e a chuva despencou com uma violência assustadora, apagando por completo a paisagem. Pouco depois, o granizo, do tamanho de bolas de pingue-pongue, descia também, esmagando as plantas e atravessando folhagens e telhas feito projéteis mortíferos... Galhos, folhas, papéis, flores, terra e mato voavam pelos ares e caiam no chão, confundindo-se num emaranhado de formas e cores impregnados de lama...
Então nós, os homens poderosos e arrogantes, que tudo sabemos e em tudo queremos mandar, nos encolhemos e calamos, impotentes diante desta natureza desgovernada. Perdemos o nosso poder e a nossa arrogância, ficamos ignorantes e frágeis, inválidos, paralisados. A nossa coragem esvaneceu, emudeceu, inútil diante do poder dos céus. Não tínhamos mais controle sobre nada. Tivemos de deixar acontecer e permanecer como meros observadores impotentes... E enquanto ficávamos assim, paralisados e incrêdulos, tivemos o vislumbre de uma revelação distante e nos preparamos, juntamos forças, medimos possibilidades, nos questionamos... E decidimos, ao invés de nos rebelar e partir para a briga, como sempre fazemos, mesmo sabendo que seremos derrotados ou que a razão não está do nosso lado, nos render e aguardar mansamente, cheios de expectativa, pelo fim do temporal. A paisagem que conhecíamos tão bem transformava-se pouco a pouco, de madeira radical e definitiva, diante dos nossos olhos, sem que pudéssemos fazer nada para impedi-lo. Sabíamos que as coisas não tornariam a ser como antes, sabíamos que teríamos de nos adaptar mais uma vez, encontrar e percorrer outros caminhos, aprender novos processos e talvez mudar muitos dos nossos métodos e objetivos... Seria como morrer e ressuscitar, como virar uma página sem olhar para atrás. E depois, ainda teríamos de prosseguir com a nossa existência, retomar rotinas, encontrar pessoas, falar, comer, dormir, trabalhar, comprar, ir em frente. Este era o grande desafio, no fim do qual nos aguardava a revelação que, naquele instante, nos parecia tão distante.
O temporal me ensinou esta lição: nas trepadeiras derrubadas, nos tocos que sobraram, nos muros nús e lascados e nos pássaros ausentes, na lama amontoada nos meio fios e nos quintais, nos galhos trágicamente pendurados de postes e telhados compreendi a transformação que as nossas vidas sofreriam após aquele temporal que trouxe a perda, o medo, a doença, a confusão, a revolta, a dor, a impotência e a inutilidade de todos os esforços para preservar o que era nosso... Quando a chuva se foi e o sol voltou a brilhar para aquecer o nosso novo cenário, ainda desestruturado, ensopado e cheio de sujeira, vi que, aos poucos, os pássaros foram voltando, a grama e as flores despontaram de novo, tímidamente, o muro pelado ainda tinha o encanto de seus tijolos harmoniosamente colocados, a rua podia ser varrida, a antena endireitada, as telhas recolocadas ou substituidas. A cidade, o mundo, o universo continuavam as suas existências, pois a vida é mais forte do que tudo e nós fomos abençoados com a maravilhosa capacidade de nos adaptar, de nos recriar, de nos reerguer e florescer após cada temporal. Agora eu tenho certeza disso. Somos capazes de ressurgir a despeito de tudo, tal qual a Ave Fênix, transformados, revigorados, pode até ser que deformados e com inúmeras cicatrizes, mas vivos e persistentes, sempre à procura de saidas, acendendo luzes, gerando nova vida e esperança, dispostos a percorrer os novos caminhos que Deus põe diante de nós com uma coragem que desmente o nosso tamanho.
É assim que me descubro hoje, após tudo que aconteceu, e me sinto feliz e grata por isto.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

A certeza de cada momento

Bom, por enquanto parece que são Pedro está de bom humor e deixa o sol brilhar sobre as nossas cabeças. O céu está de um azul radiante, sem nenhuma nuvem no horizonte e não há nem cheiro de chuva. O teto do meu quarto continua gotejando -uma gota a cada meia hora- pois a laje está completamente infiltrada e vou ter de esperar mais alguns dias de sol para que seque e possa colocar os móveis no lugar. Por enquanto, a estranha sensação de que há algo totalmente errado com a decoração do quarto -a cama, o criado mudo e a gaveteira estão fora do centro- me invade toda vez que entro ali, mas esto não irá durar muito, espero.
E com a esperança de alguns dias de sol e calor e o fim das goteiras em câmera lenta, aqui vai a crônica desta semana.

Tinha acabado de chover. Fim de tarde, aquela hora em que o sol, para se despedir, lança suas mais belas cores, dando à paisagem uma lumlinosidade única, doce e serena. O ar fresco parecia brilhar ao meu redor, vibrando feito uma suave sinfonía... Voltava para casa após o trabalho, respirando fundo aquele frescor que dissipara o tremendo calor do dia. O céu semeado de branquíssimas nuvens refletido nas poças de água. Gotas de água cintilando entre a folhagem das árvores. Terra escura e cheirosa, em beatífico repouso... Comecei a caminhar mais devagar, apesar do cansaço e da vontade de chegar logo em casa, tomar um banho e beber um copo de chá gelado. E fui percebendo aos poucos, em lentas e profundas vagas, que havia alguma coisa naquela paisagem que enchia a minha alma de alegría e paz. Mas, o que era?... A rua, as casas, as árvores, os carros, as pessoas voltando para casa como eu: aquela era uma cena banal, à qual assistia todo dia. Então, que felicidade inesperada era aquela?... Me peguei sorrindo, tomada por uma íntima satisfação que me desconcertou, pois nada de diferente tinha acontecido naquele dia como para despertar tais sensações dentro de mim. E de pronto, a pergunta surgiu na minha mente, assim do nada, nascida do último suspiro, do sorriso à toa, do cheiro no ar: "O que me basta para ser feliz?"... E a resposta veio imediatamente, como se já estivesse aguardando há muito tempo: "Me basta saber que depois da chuva a paisagem ficará assim, limpa e clara, o ar fresco e transparente, suavemente perfumado." Fiquei tão surpresa e espantada com estas palavras, que parei e, deslumbrada, olhei em volta como se fosse uma primeira vez, pois eram a mais pura verdade! Naquele preciso momento da minha existência saber aquele fato, ter consciência dele e vivenciá-lo era o bastante para me sentir completamente feliz, plena, viva, santificada. Amada. Não existia nada mais importante, nada melhor, nada que eu desejasse além daquilo. Não existiam as angústias nem as expectativas do passado ou do futuro. A certeza do acontecer daquele instante era suficiente para entender o universo todo e me sentir parte vital dele!... "Esta certeza me basta!", pensei, estupefata. "A certeza de cada momento e do que ocorre nele é o suficiente, não preciso de mais nada!"... E me dei conta, mais admirada ainda, de que todas as certezas são simples e diretas, visíveis, acontecem a todo momento. Não é quanto vou ganhar, quanto vou gastar, o que vou vestir, o que vou comer, com quem vou estar. A certeza é o que de fato acontece, é a realidade que nos rodeia e nos fala, nos toca, interage conosco... "Talvez, no fim das contas, não haja perguntas!", disse para mim mesma, sorrindo. "Talvez nem precisássemos perguntar, mas tão somente ouvir as respostas!".
É algo extremamente simples: o que deve ser feito, deve ser feito pois é necessário, faz parte de um plano, da sustentação da existência. Nada é inútil, perda de tempo, substituição. Há tempo para tudo. Viver "agora" significa fazer justamente o que estamos fazendo neste momento, porque precisa ser feito agora e não depois. Cada acontecimento tem seu momento exato. Por que angustiar-se porque estamos fazendo isto e não aquilo, que parece mais importante? Isto é negar a realidade. Nela há espaço e tempo para tudo que é necessário ao nosso crescimento. O que acontece é que a nossa vaidade usualmente agiganta as nossas expectativas e nos desvia do nosso verdadeiro caminho, tornando-nos então intransigentes e irritados, impacientes e amargos, pois passamos a acreditar que estaríamos melhor fazendo grandes coisas pela humanidade ao invés de realizar e desfrutar com perfeição as pequenas que, no fundo, são a base das grandes. A armadilha do inconformismo está sempre à espreita, fazendo-nos desejar sempre outras coisas, outros lugares, outras pessoas, às vezes totalmente incompatíveis com o que somos; desviando-nos do presente e a sua importância. Mas o que deve ser feito -cozinhar, varrer, ir ao mercado, assistir um filme, lavar a calçada, digitar uma carta- forma parte do que somos, do que viemos fazer, e ninguém realizará jamais estas coisas como nós mesmos, assim como nós nunca seremos capazes de executar o que não é da nossa alçada. Pois tudo é parte da imensa e perfeita iluminação que é a nossa existência. As freiras também lavam roupa, trabalham na horta, descascam batatas e ministram aula! Os santos sempre nos falam da sobrenaturalidade que existe no dia-a-dia. E, de fato, é um desafio fascinante permanecer em união com o divino ao longo dos afazeres quotidianos. Os ermitães russos abandonam prestamente seus retiros sempre que são chamados para ajudar nas colheitas ou para receber pessoas que precisam de seu conselho. Isto é uma ótima mostra de docilidade para com o acontecer da existência, pois eles não se rebelam por ter de abandonar a sua missão de oração, jejum e solidão pelo mundo e a sua salvação para arregaçar as mangas e caminhar o dia todo atrás de um arado sob o sol. E é disto mesmo que se trata: não desprezar nem descumprir nenhuma ação, nenhum momento, nenhum encontro que por ventura surja em nosso caminho, porque tudo é ensinamento, tudo é crescimento, é iluminação.
Quem sabe a revelação da nossa existência não nos assalte lavando o uma pilha de roupa suja ao invés de na meditação mais profunda!...

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O poeta

Ainda viva após mais um temporal e com a internet milagrosamente funcionando, cá estou de novo, pronta para mais uma, mesmo que atrasada... Nossa, ontem achei que iria ter que começar a tirar os botes infláveis do armário!... Olhando para o rio de águas marrons e cheias de galhos e folhas que o vento arrancara sem piedade das árvores, realmente cheguei a sentir medo (eu, que adoro chuva porque me relaxa e me inspira!) pois podia ver e escutar a tempestade se debatendo e golpeando a casa, tentando invadi-la por qualquer fresta, as pedras de granizo chocando-se contra os vidros e persianas e a paisagem executando uma espécie de dança frenética, como se quisesse fugir da fúria vingativa dos céus... Fiquei imaginando como encontraria a cidade hoje, quando fosse trabalhar. Aqui já estão falando que Deus está, por algum motivo inexplicável, extremamente chateado com a gente, pois já restam poucas árvores e telhados intatos e, mesmo assim, Ele continua a enviar temporais quase apocalípticos pelo menos uma vez por semana. A este passo, não restarão árvores que nos protejam do sol escaldante do verão -Isso SE tivermos um verão, é claro- nem negócios ou casas inteiros... Bom, suponho que é justo a natureza se rebelar contra as cagadas que andamos fazendo, mas estou começando a acreditar que vai nos fazer pagar um preço bem mais alto e em um prazo de tempo bem mais próximo do que gostaríamos de admitir...
Bom, e abandonando um pouco o pessimismo com respeito a este pobre planeta assolado pelos seus próprios habitantes, aqui vai a crônica desta semana. Espero poder conclui-la antes de que comece o próximo temporal -e já está chovendo e trovejando- e fiquemos sem energia novamente...

Todo mundo dava aqueles olhares de dissimulada zombaria e tédio quando ele aparecia com as suas roupas surradas, seus sapatos velhos e a sua decrépita pasta daquele marrom esbranquiçado, já sem forma, para falar daquelas coisas que a ninguém interessavam. Todos cochichavam pelas suas costas e soltavam uns intermináveis suspiros de impaciência e falsa cortesia assim que ele começava a falar pedindo isto e aquilo: mais espaço no jornal local, a divulgação de um concurso de poesia de cordel, a colocação de um cartaz -feito e impresso por ele mesmo com seus parcos recursos- sobre tabagismo no mural da secretaria, uma entrevista com os chefes para agendar uma noite de trovas no teatro, palestras sobre os poetas nacionais e regionais nas escolas, encontros de trovadores, discussões entre professores sobre a divulgação e os rumos da poseia entre os jovens e oportunidades para eles mostrarem seus trabalhos, talvez uma modesta revista para dar espaço aos poetas desconhecidos... Seu rosto magro e sulcado por mil finas rugas (com certeza produto de todas as negativas, delongas, promessas não cumpridas e humilhações que sofrera por causa da sua lealdade à vocação) de olhos cansados porém ainda brilhantes, seu cabelo tingido de preto e a sua vozinha afônica e sem autoridade, sempre tomada por aquele entusiasmo doentio que nada parecia abalar, tinha o poder de irritar quase todo mundo, que, à sua presença, fechava-se como um só, feito um muro de cimento, duro e insensível, diante do qual ele falava e falava, como se nada percebesse, tentando envolver uma sociedade enfastiada e superficial em suas cruzadas poéticas... Eu olhava para ele e não podia evitar me perguntar, cheia de lástima e uma estranha vergonha: "Será que ele acredita mesmo que vai conseguir alguma coisa desta gente?"... Ele não percebia seus olhares, seus gestos, as costas viradas para ele, aquela súbita azáfama que tomava conta da sala assim que ele cruzava a porta?...
-Vixe, lá vem o poeta!...- avisava alguém da janela, com voz de autêntico pavor -Pelo amor de Deus, o que será que esta criatura quer desta vez?...
E todos riam, sentindo-se superiores e mais importantes do que aquele pobre poeta avoado e mal vestido, sempre carregando aquela pilha de papéis datilografados -porque nem sequer tinha um computador- e discursando sobre coisas que ninguém estava a fim de escutar e menos ainda de entender. Faziam até apostas sobre qual seria a chateação da vez e empurravam uns para os outros o ingrato prazer de recebê-lo e esmolár-lhe alguns minutos de hipócrita atenção... Será que ele pressentia o que o aguardava? Será que seu coração infantil e desprotegido criava uma couraça de fé e teimosia toda vez que virava a esquina e começava a se aproximar do nosso prédio? Será que era capaz de perceber a hipocrisia, a burla, o descaso e, mesmo assim continuar com a sua missão, engolindo os falsos sorrisos, as desculpas, os olhares de menosprezo e as mentiras porque a sua cruzada, a sua vocação, eram maiores do que tudo aquilo?.
-Quando é que este cara vai desistir, heim? Aqui ninguém se interessa por poesia!- comentavam, impacientes com a sua persistência -Temos coisa melhor para fazer!
Mas ele escrevia, não cansava de escrever, e sonhava, e divulgava seus versos nas esquinas, nas praças, nos bancos e mercados, na feira, encadernados com barbante e papel reciclado, escritos à mão com nanquim, com ilustrações saídas da sua própria imaginação. Por algumas moedas as pessoas podiam levar um pedacinho da sua vida para casa, mas, com certeza, acabaria no lixo sem sequer ter sido aberto. Alguns nem esperavam e já o jogavam no meio-fio, achando que o que importava para o poeta eram as moedas que pagariam o pão de amanhã e não a leitura da sua arte, a partilha dos seus sentimentos e experiências, a aceitação das lições que ele tinha a oferecer para o mundo... Este mundo ingrato e superficial, de coração vazio e mente fechada, de sentimentos aturdidos, deturpados, breves e egoistas... "Será que é para o poeta viver nele?", me perguntava muitas vezes, "Será que a sua missão não está fadada ao fracasso? Será que não é melhor ele desistir e ficar em seu próprio universo para não continuar sofrendo com a indiferença e a ferocidade dos homens?"...
No entanto, para espanto e talvez um pingo de admiração do mundo -inclusive eu- o poeta continuava entre nós, espalhando as suas folhas baratas e seus discursos utópicos sem sinal de cansaço ou decepção; continuava a invadir os nossos escritórios e corações pedindo mais espaço, mais entendimento, mais humanidade, mais esperança, mais justiça. Ele persistia, feito erva daninha, espicaçando-nos com as suas palavras rimadas, suas trovas e hai-kais, seus cartazes, suas composições às vezes tão ingênuas, tão óbvias, tão verdadeiras... Ele persistia e, ao invés de considerar o favor de se aposentar ao envelhecer, parecia tomado por um maior fervor a cada ano que passava, por uma força que não sabíamos de onde vinha, porque seu corpo encolhia, seus cabelos raleavam, a sua voz enrouquecia, as suas mãos perdiam firmeza e a sua pele mais parecia um velho pergaminho do mar morto, mas, toda vez que alguém lhe perguntava por que não sossegava e ia para casa descansar, ele invariavelmente respondia, abrindo aquele seu sorriso já meio desdentado:
-Eu sou um poeta, meu amigo, um filho da grande arte, e a arte nunca morre!... Só se transforma...- e mostrando as suas mãos enrugadas e artríticas, acrescentava: -Está vendo? Eu estou virando uma árvore! Olha os meus galhos! Olha as minhas folhas!...- e rindo, abria as abas do seu paletó e sacudia os bolsos, onde se podia ouvir o som alegre das canetas e lápis entrechocando-se. Então, pegando um deles, o aproximava do rosto do seu interlocutor e dizia, baixinho: -Estas são as minhas sementes. Tome uma. Talvez você faça dela uma outra árvore.
E se afastava pela rua, sua silhueta curvada, de andar meio desequilibrado, sempre com a pressa de quem tem um lugar onde chegar, com a pasta numa mão e as abas da jaqueta esvoaçando feito asas esfarrapadas, deixando para atrás alguém com uma caneta e talvez um pensamento a mais.
O poeta não ficou famoso, não ganhou dinheiro, não publicou nenhuma coletânea, não recebeu ofertas de grandes editoras, não deu autógrafos nem promoveu uma revolução no mundo. Morreu, simplesmente, na aurora de um dia qualquer, já muito velho, rodeado pelos poucos e fiéis amigos, pela sua mulher e seus filhos, que sabiam que o montante da herança não seria contada em notas ou moedas, mas em versos e rimas. Morreu enquanto o sol nascia, e tenho certeza de que, com seu último suspiro, compôs uma poesia dedicada àqueles raios dourados que entravam pela sua mesquinha janela para beijar-lhe a testa e aquecer-lhe o coração pela última vez. E deixou aquele ouro levá-lo embora com a docilidade e a paz de quem foi sempre fiel a um ideal e fez de tudo para torná-lo realidade. Porque o poeta nunca deixa de acreditar, de desejar, de falar, de esperar.
Quisera eu ser feito ele, que nunca desistiu, que a cada instante se deixou iluminar e aquecer pela sua inspiração, seguindo-a por todos os lugares, que considerou seu dom algo divino pelo qual valia a pena lutar, que descobriu em suas próprias palavras mensagens que precisavam ser semeadas, compartilhadas, passadas adiante, que não se importou com o que o mundo pensava e foi fiel à sua vocação, à sua missão... Quisera eu ser feito este poeta, de quem aprendi que toda grande transformação começa dentro de nós mesmos e, aos poucos, vai se alastrando ao nosso redor, chegando a ser capaz de transformar uma partícula do mundo, o que é suficiente para fazer valer a pena a existência de uma vida. Pois eu sou a partícula que ele transformou, deixando-me como legado o compromisso de ser fiel à minha vocação e de transformar um outra partícula.

sábado, 10 de outubro de 2009

Mestres da vizinhança

Quatro dias de folga!... É muita bondade dos céus! Não estou nem acreditando!... Quatro dias inteirinhos aqui, relaxada e sem preocupações, dedicada exclusivamente a escrever, ver televisão e comer muita salada e fruta. É verdade que ontem acabei perdendo boa parte de dia porque surgiram alguns imprevistos -entre eles uma tremenda dor de dente que, ao que parece (Deus me livre!) vai acabar num daqueles famigerados tratamentos de canal, e um começo de crise de rinite que me obrigou a tomar antialérgico o que, é claro, me deixou sonolenta e estupidificada por algumas horas- mas hoje já estou recuperada e pronta para produzir, produzir e produzir. Afinal, não é sempre que acontece um feriado de segunda-feira para esticar o final de semana e dar-nos um pouco mais de fôlego para encarar ensaios, eventos, aulas, reuniões e toda essa agenta maluca de final de ano.
Então, aproveitando este tempo delicioso (o sol está esplendoroso hoje, acompanhado de um vento frio que dá vontade de sair caminhando por aí de braços abertos e cabeça jogada para atrás) já vou começar a trabalhar. Só espero que meu dente não me incomode até terça-feira -dia da consulta com a dentista- e que assim possa tirar o máximo de proveito deste feriado fabuloso...

Nunca questionei aquela regra de ouro que diz que, para alguém ser capaz de ajudar os outros, tem de levar uma vida exemplar, deve ter sempre a resposta certa para tudo que lhe for perguntado, não pode quebrar regras ou cometer enganos, não pode fracassar nem ter dúvidas. Segundo esta regra, uma pessoa que possui a sabedoria e a inspiração para guiar outros, para despertar-lhes a consciência e mostrar-lhes saídas, caminhos ou novas possibilidades, para ensinar-lhes a compaixão, a justiça, o equilíbrio e o valor da existência não pode, em hipótese alguma, manifestar nenhuma pontinha de mesquinharia, inveja ou vaidade. Não lhe é permitido sentir ira, mágoa, remorso ou desprezo. Não faz parte do ícone de "mestre" ser alguém sem cultura, com um comportamento duvidoso ou sem uma percepção absoluta e clara das coisas. Aquele a quem acudimos em busca de respostas tem de ser ilibado, estar acima do resto, não ter nenhuma nódoa que empane a sua figura e sem dom; não pode ser impulsivo nem ter atitudes medíocres, confusas, reprováveis... Praticamente um santo!... No entanto, nestes últimos tempos tenho me deparado com uma quantidade absolutamente surpreendente de pessoas que, mesmo fracas e imperfeitas feito eu mesma, demonstraram em certos momentos uma percepção, uma bondade e uma sabedoria perfeitas e totalmente inesperadas; gente à qual jamais teria me ocorrido acudir em busca de auxílio têm me oferecido as respostas que estava procurando, têm me dado conselhos acertados, têm aberto meus olhos e meu coração para acontecimentos e atitudes que não estava conseguindo enxergar, têm me mostrado caminhos e soluções para encruzilhadas das quais eu achava que não seria capaz de sair... Então, de repente sou obrigada a parar e olhar bem em minha volta, para toda esta gente à qual, geralmente, não damos nenhum crédito por serem pobres, ignorantes, estarem cheios de problemas ou terem um comportamento singular, e começar a refletir sobre quem é que realmente merece a nossa confiança, os nossos ouvidos e e espíritos abertos e, contradizendo tudo que aprendi até agora, chego à conclusão de que esta regra não é tão válida assim, pois tenho descoberto, com espanto e não pouca alegria, que não é em absoluto imprescindível qualquer tipo de perfeição para ter a chance ou a capacidade de ajudar os outros. Nenhum tipo de superioridade ou propaganda é um passaporte inapelável para dar uma mão na hora certa ou uma resposta sábia para quem está perdido. Não há condições, méritos ou requisitos para isto; mesmo assolados pela indisciplina, a vaidade, a inveja, o ciúme e todo tipo de tropeços e fracassos, nada nos impede de deixar a nossa divindade falar através de nós e realizar seus pequenos milagres...
O constante e quase sempre surpreendente encontro com estes "mestres da vizinhança" acabou por me convencer de que, sem exceção, todos temos a nossa quota de sabedoria, de compaixão, de percepção e, mesmo que estejamos longe de qualquer perfeição, até afundados nas mais negras trevas, temos em algum momento mágico, a nossa oportunidade de falar, de agir, de tocar os corações, de apaziguar as dores e cicatrizar as feridas. Ainda podemos, mesmo em meio aos nossos problemas e conflitos, aos nossos erros e e fracassos, às nossas fraquezas e ignorância, acender uma luz na escuridão do outro, mostrar-lhe um caminho, abrir-lhe uma porta e fazê-lo enxergar o que realmente importa para que assim ele possa dar o próximo passo. Todos podemos ser fortes, generosos e iluminados quando for preciso, sem importar o que fazemos, onde estamos ou quantas vezes já tropeçamos e caimos por terra, pois é justamente da consciência da nossa própria fragilidade, da experiência do erro, que nasce a solidariedade com o outro, a paciência, a sabedoria e a compreensão que nos tornam capazes de estender-lhe a mão. Os pecados que todos cometemos nos tornam irmãos e mestres uns dos outros, e nos fazem manter vivas a fé e a vontade de alcançar a felicidade ao longo desta breve e às vezes tão confusa caminhada pela terra.

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A árvore torta

Bom, acho que finalmente estamos voltando ao normal, apesar de algumas quedas esporádicas e extremamente irritantes da rede, mas considerando a catástrofe que assolou a região semana passada (ainda tem caminhão recolhendo troncos, telhas e tijolos!) dá para desculpar e exercitar a paciència e a boa vontade. Meus horários no trabalho também deram uma última -isso espero- mudada e o tempo ficou melhor distribuído, comecei a trabalhar com os bailarinos e a ensaiar para as apresentações de fim de ano, coisa que adoro fazer. Montar, ensaiar e apresentar faz valer a pena todos os desgostos que a gente passa ao longo do ano com alunos chatos, locais de aula apocalípticos, diretores que não estão nem aí, injustiças, retalhações, desistências, exigências e cobranças descabidas... Quando a gente vê no palco essa garotada toda apresentando quase exatamente o espetáculo que você idealizou -desculpando as pequenas falhas da inexperiência, o nervosismo ou a simples e completa falta de talento para a coisa- e escuta o aplauso forte, feliz e sincero do público ( e algum raro elogio da chefia), parece que o fracasso, a frustração, as mágoas, o cansaço e a glicemia escalando montanhas até o céu, não existem mais e que todo o processo que levou você até esse instante de felicidade e gratidão era necessário para o crescimento de todos... Sempre reflito sobre como somos cegos, teimosos e birrentos quando estamos passando por alguma experiência penosa, pois não conseguimos enxergar seu significado e nos dedicamos a praguejar e a ressistir, a nos lamentar e morrer de vontade de desistir para, no fim, perceber que não era nada do que pensávamos e que a experiência toda só nos enriqueceu e nos tornou mais sábios, compassivos, pacientes, dóceis e, acima de tudo, humildes. No último instante enxergamos as pessoas e os acontecimentos com novos olhos e sentimentos e aí, não nos resta senão agradecer e nos preparar para a próxima aventura, mais maduros e conscientes... Afinal, é assim que se aprende e se vive, não é mesmo?..
E antes de que vocês achem que isto aquí É a crônica, aqui vai a de verdade:

A primeira vez que a vi não passava de una varetinha raquítica e nua, com umas quatro folhas minúsculas de um verde pálido, quase transparentes, na ponta do seu único galho. Indefesa de dar dó e já levemente torta, parecia buscar apoio e proteção nas barras brancas da grade de metal que a rodeava para defendê-la do vento, dos cachorros e dos vândalos que, na minha cidade, costumam se divertir quebrando as mudas de árvores e plantas que a prefeitura ou os donos das casas plantam para sombrear e enfeitar as ruas e praças. De longe quase não dava para distingui-la, tão fina e descolorida era, e se não fosse o proprietário estar regando-a no dia em que passei, com certeza nem teria reparado nela, pois a grade de proteção a escondia quase por completo. Num relance, me pareceu uma princesa prisioneira numa torre à espera do príncipe libertador, agitando as suas folhinhas magricelas para chamar a sua atenção... Ao vê-la assim "engaiolada" refleti sobre o que somos obrigados a fazer se quisermos preservar um pouco do verde que a natureza tão generosamente nos oferece, a despeito da nossa indiferença e das nossas agressões.
As semanas passaram e a muda progredia mais um pouco a cada dia. Novas folhas surgiram, desta vez mais fortes, de um verde promissor e grossas nervuras, formando pequenos tufos nas pontas dos galhos que, por sua vez, também cresciam e apareciam com progressivo entusiasmo e robustez.
-Ah, que bom!...- dizia para mim mesma toda vez que passava diante dela - Ainda bem que esta aqui escapou dos moleques e dos cachorros! Vai dar uma árvore linda que vai nos salvar do sol assassino do verão com a sua sombra.
Porém, aos poucos, comecei a notar que, apesar da grade, a muda estava entortando, quase que imperceptivelmente, como se não quisesse que ninguém o notasse, em direção à casa na calçada. Passados alguns dias o dono, com certeza percebendo a mesma coisa, colocou um pedaço de bambú alto e forte, muito reto, ao lado dela, amarrando-o no tronco em várias partes com tiras de tecido para não machucá-lo, esperando que isto resolvesse o problema... "Bom", pensei ao ver a armação, "Pelo menos não usou arame. Isto acabaria degolando o tronco."
Aquela tarde fiquei observando de longe esta "operação resgate", com um sorriso de solidariedade e simpatia por aquele homem corpulento e careca que suava aos baldes sob o sol calcinante enquanto cortava e amarrava as tiras em volta do tronco e do bambu. Ele se importava mesmo com aquela muda!... Era quase cômico, pois a arvorezinha praticamente desaparecia entre a armação de metal, a vara de bambu e os pedaços de tecido, mas o homem parecia não estar em absoluto disposto a ter uma árvore torta na frente da sua casa. Afinal, se diz que só os poetas, os pintores e pessoas môrbidas e depressivas gostam de árvores retorcidas que parecem lutar contra a própria netureza para seguir inclinações inexplicáveis que resultam em formas novas e exóticas, desconcertantes e, por vezes, inconvenientes... E como fui comprovando ao longo dos meses, esta parecia ser uma delas. Vira e mexe a arvorezinha insistia em soltar uns galhos de formas esquisitas e nada harmoniosas que escapavam pelas fendas da grade e acabavam colidindo com algum transeunte desavisado. Então, o dono vinha com mais tecido ou as tesouras de podar e dava um jeito nesta manifestação de rebeldia do seu protegido; porém, dali a algumas semanas, ali estava outro galho retorcido assomando desafiador através da grade, quase que levando o bambu junto...
Estabeleceu-se então um tipo de guerra silenciosa e obstinada entre a árvore e o proprietário: assim que ela começava a querer fugir da verticalidade que ele tentava impor-lhe, era imediatamente admoestada e corrigida com um bambu maior ou tiras mais grossas e, às vezes, até com o serrote. Eu passava todo dia diante deste silencioso e encarniçado campo de batalha e não conseguia evitar me perguntar quem sairia vencedor, e a primeira resposta que vinha à minha mente era aquele velho ditado: "Árvore que nasce torta..." Com certeza, a árvore conseguiria burlar o homem com a sua interminável criatividade e capacidade de regeneração e ele teria de aceitar a visão daquela árvore torta exibindo-se com insolência diante da sua casa... E sempre me afastava dali com um sorrisinho maroto nos lábios.
Os meses transcorreram e eu mudei meu percorrido, pois na avenida havia mais sombra, e parei de acompanhar a guerra entre a árvore e o homem. No entanto, quando o verão acabou, voltei ao meu antigo percurso e, qual não seria a minha surpresa ao me deparar com a mudinha, agora uma árvore alta e esguia, de folhagem escura e viçosa, erguendo-se reta e majestosa um par de metros acima da borda da grade de proteção. A vara de bambu ainda estava ali, junto dela, amarrada com as tiras de tecido, como um apoio, uma certeza e um alerta, caso qualquer idéia de rebeldia pudesse por ventura insinuar-se na imaginação da árvore. Fiquei pasma. O homem tinha vencido então, contradizendo o velho ditado!...
Bem naquele momento, o proprietário surgiu da casa e veio abrir o portão para sair com o carro, me viu parada ali admirando a sua obra e, todo orgulhoso, se aproximou, sorridente.
-Mas como esta mudinha cresceu!.- exclamei eu -E está que parece uma régua de reta! Como foi que o senhor conseguiu?.- lhe perguntei, genuinamente curiosa -Porque eu vi como ela era teimosa...
-Foi difícil, mas no fim consegui endireitá-la. Gastei metros e metros de tecido e muitas varas de bambu, mas não deixei que crescesse torta.- me respondeu o homem, esticando uma mão para acariciar os galhos finos e fortes da sua árvore.
-Mas, por que não a deixou crescer à vontade?...- indaguei então, querendo saber o por quê desta sua teimosia, que a primeira vista podia passar por um gesto de repressão, uma pura demonstração de poder e cerceamento do percurso nantural das coisas.
O homem pegou uma folha entre os dedos e a afagou, olhando para a copa que se erguia lá em cima, balançando suavemente no vento de fim de tarde.
-Ah, minha filha...- disse, soltando um suspiro -Se eu deixasse ela crescer de qualquer jeito e invadir a calçada com os galhos, com certeza a prefeitura teria vindo para cortá-la, não importa o quanto eu gostasse dela e a quisesse na frente da minha casa. Se uma árvore está atrapalhando ou danificando a calçada ou oferecendo perigo para as pessoas, eles a derrubam sem pestanejar e nem sequer põem outra no lugar.
Olhei para ele, admirada, e uma sensação cálida me invadiu, como se me encontrasse diante de um verdadeiro herói.
-Mas, o senhor gosta tanto assim desta árvore?...
-É que eu trouxe a muda da minha fazenda, lá em Goiás, e é um tipo que gosto muito, porque dá umas flôres perfumadas e uma sombra gostosa... Não ia deixar que a cortassem por estar torta se eu podia fazer algo ao respeito!- me respondeu o homem, rindo - Imagine, a gente tem que lutar pelo que é certo e tem que se esforçar para proteger o que gosta!- acrescentou, com ar convicto.
-É, eu vi que o senhor usou todos os meios possíveis para mantê-la reta.- disse eu, agora olhando para a árvore com uma sensação diferente, como se o sussurro da sua folhagem confirmasse as palavras do homem.
-E funcionou!.- exclamou este, orgulhoso -Eu não ia largar a minha árvore, que me custou tanto trazer de tão longe, para que crescesse sozinha, de qualquer jeito, correndo o risco de acabar tendo que ser cortada!... Você viu? Já está dando as primeiras flôres!.- ajuntou, empinando-se e separando as folhas de um galho próximo. Pequenos brotos de cor lilás e amarelo apareceram, e um tênue perfume adocicado penetrou pelas minhas narinas - Não é bom?...- inquiriu ele, respirando fundo -Você vai ver no ano que vem! Isto vai ser uma belezura!.
Sentindo-me tomada por uma avalanche de sensações e pensamentos, concordei com ele e lhe assegurei que todo seu esforço tinha valido a pena, pois com certeza aquela árvore seria um regalo para a vista e o olfato. Em seguida, me despedi e fui caminhando devagar rua acima, enquanto escutava o ronco do motor do carro do homem saindo da garagem... Lembrei da primeira imagem que tive da árvore, aquela muda raquítica e nua, com algumas folhas pálidas e assustadas tremendo na ponta do seu único galho. Então, parei novamente e virei a cabeça para ver a sua imagem atual: uma árvore reta e orgulhosa, frondosa, sussurante, que com certeza iria se tornar pousada de pássaros e refresco dos homens, que sobrevivera incólume para além da grade e do bambu, do tecido, dos vândalos e cachorros... E quando o velho ditado veio de novo à minha mente, pensei: "Este homem, com seu amor e a sua perseverança, desafiou e quebrou a tradição. Agora posso afirmar -porque fui testemunha- que nem toda árvore que nasce torta morre torta."... Sorri e retomei meu caminho, e de repente me ocorreu que se pudéssemos usar o mesmo amor e a mesma perseverança, a mesma lealdade, retidão e paciência que este homem demonstrou com a sua árvore quando se trata de pessoas, sobretudo daquelas que parecem não ter jeito, que estão tortas ou soltam galhos sem propósito, perigosos até, que insistem em desafiar as regras, os objetivos, a bondade e a própria vida retorcendo-se à procura de ilusões que só as desapontam e as machucam, não teríamos tantos perdedores na história. Se tivéssemos a mesma criatividade e compreensão, o mesmo carinho e confiança daquele homem, se as considerássemos como seres preciosos que merecem ser endireitados e guiados para não serem derrubados, podados, mutilados, arrancados e jogados fora, quanta tristeza e fracassos seriam banidos das nossas vidas! Quantas lágrimas e angústias seriam poupados!... O homem não tinha sido aquiescente com os caprichos da árvore, ciente do que eles poderiam acarretar-lhe, e fizera de tudo para mantê-lo reto, salvando-lhe assim a vida, mas em nenhum momento esquecera o quanto gostava dele e a vontade que tinha de vê-lo crescer e frutificar... Não podemos ser coniventes com os erros, é claro, mas precisamos entendê-los -até porque ninguém erra de propósito- perdoá-los e abrir novas portas, mostrar outros caminhos e soluções para quem parece não ter saida. Pois esta árvore e este homem me ensinaram que um ser humano "torto" não é um caso perdido, e que não podemos abandoná-lo à sua sorte... Varas de bambu e tiras de tecido não faltarão para dar-lhe uma nova chance.

terça-feira, 29 de setembro de 2009

Uma gota do nosso espírito

Definitivamente, estou começando a acreditar piamente que nestes últimos mêses o clima não anda muito interessado em manifestações artísticas. Este final de semana, bem na hora em que finalmente tive um tempo para sentar aqui e postar as crônicas e enviar o texto para o jornal, caiu um temporal tão grande que a cidade simplesmente parou. Ficamos horas a fio sem água nem energia, só escutando a ventania, os galhos das árvores quebrando e sendo arrastados pela rua, os fios elétricos zunindo e batendo-se uns contra outros e a chuva despencando implacávelmente sobre telhados, muros e calçadas. Ilhados em nossas casas, só nos restava imaginar a catástrofe que estava acontecendo lá fora... A água escorria sorrateira e silenciosa pelas paredes da minha sala e invadia o chão por baixo da porta com insistente insolência, os sofás e as almofadas brilhavam, salpicados pelas gotas furiosas que penetravam através das frestas da janela que, apesar de estar fechada, tornou-se incapaz de conter a crescente fúria dos céus. O temporal durou -em sua força máxima- uns cinco ou dez minutos, mas foi o suficiente para quase destruir a cidade e demonstrar-nos que não somos nada e que toda a nossa tecnologia é inútil quando a natureza resolve fazer birra; então só nos resta esconder-nos em nossas frágeis casinhas e aguardar a que ela se acalme... O cenário, quando fui trabalhar ontem, era dessolador; pior: assustador. Mais da metade das árvores caiu por terra, levando junto postes e fios elétricos, danificando carros, grades e muros. As ruas estavam feito um mar de folhas, lixo, galhos, barro e pedaços de telhas e tijolos. Mal se conseguia andar e os carros tinham que trafegar com todo cuidado para não sofrer algum acidente ou atropelar os pedestres que eram obrigados a andar pelo meio da rua...
Então - e com as coisas ainda funcionando pela metade- é por isso que somente hoje estou conseguindo postar a minha crônica, aproveitando que, apesar das nuvens, não há nenhum temporal à vista... pelo menos por enquanto. Mas a meteorologia já anunciou que a primavera vai ser deste jeito, então vamos nos preparar e aproveitar os dias de sol e calma e comprar um bom estoque de rodinhos, panos, vassouras e telhas.
E, antes que algo aconteça e sâo Pedro mude de idéia, aqui vai a crônica desta semana:

Abria-se uma pequena porta de metal, que gemia vergonhosamente em seus gonzos enferrujados, meio escondida entre as imensas paredes dos prédios vizinhos, e virando à esquerda, adentrava-se por aquele longo e estreito corredor de muros nus e carcomidos, de uma altura que parecia tocar o céu. Os passos ecoavam sinistramente e ao longo do percorrido e, não sei por quê, só se falava em cochichos. O estrondo do centro ia ficando lentamente para atrás, como que engolido por aquele espaço que parecia suspenso nalguma outra dimensão. À noite, só uma lâmpada amarelada iluminava mesquinhamente aquele túnel vazio e medonho. Tinha-se a impressão de que qualquer coisa poderia acontecer ali! Era tão comprido e silencioso, tão severo e irreál!... Caminhava-se durante uma eternidade até avistar um sobrado de pedra negra; janela com as cortinas brancas sempre fechadas e a imponente porta de madeira maciça e pregos de ferro em imperturbável silêncio. A garagem vazia me dava a impressão de ser a negra bocarra de algum monstro. Tudo tinha uma cor diferente, um som distante e oco... O que nos aguardava?...
Então, virando novamente à esquerda -e desviando das mandíbulas de metal da garagem- nos deparávamos com a grade do portão da casa da tia Virgínia... E que surpresa agradável era aquela!... A campainha ecoava lá no fundo e, após alguns momentos, lá vinha ela por entre as rosas e videiras, pálida e sofisticada, envolta em seus vestidos esvoaçantes e discretamente floridos, para receber-nos. O portão de metal abria-se com um longo chiado e então o sol voltava a brilhar, e havia pardais, pombas, zorzales e chincoles, borboletas e abelhas zunindo como num carnaval. O céu estava lá em cima novamente, flanqueado pelos prédios de mil janelas, sacadas e outdoors. Não retornávamos à realidade, mas, na verdade, entrávamos num outro mundo. Era como um presente dentro de várias caixas enfeitadas. Tínhamos de cruzar um labirinto para chegar até ele, mas a aventura valia a pena, com certeza. Ali dentro era tudo tão leve e nostálgico, tão velho e frágil! O tempo transcorria num outro ritmo, com uma intensidade e um sabor diferentes. Havia uma preguiça, uma aristocrática sensualidade que nos envolvia, nos beijava docemente. Cada quarto escondia uma deliciosa surpresa: um vaso de cristal com uma única rosa em todo seu esplendor. Um velho e parrudo fogão à lenha. Um polido piano vertical com a sua toalha de renda lilás. Um sofá de seda listrada. Uma cadeira de balanço. Revistas antigas, taças de sorvete de nescafé com leite, e colheres de prata trabalhada... A velha dama e a sua ainda mais velha babá -a mama Carmela- nos atendiam com uma classe indiscutível, suas vozes ressoando harmoniosamente na atmosfera lânguida e perfumada.
Todos os quartos davam para o jardim -uma típica casa da época da colônia- e tinham paredes de uma cor indefinida, janelas enfeitadas com cortinas de renda e primorosas molduras de madeira esculpida. Um regador levantava da terra molhada aroma de cravos e violetas, de hortelã e jasmim. As roseiras cintilavam ao sol, sob a parreira generosa e carregada de cachos escuros. Ao longo da tarde, histórias e mais histórias se sucediam. Nossa curiosidade não estava nunca satisfeita, assim como a vontade da tia de contar-nos as suas peripécias de juventude. Ela e a sua babá habitavam num mundo já desaparecido, de glamour e tabús, mas que elas conseguiam resguardar perfeitamente dentro daquelas paredes descascadas, no meio da enorme e feroz metrópole. Eu ficava admirada contemplando aquele cenário e as suas personagens, sentindo como o clima me envolvia feito um longo e cálido abraço do passado... Mas era tudo completamente real. Aquele era o precioso segredo da nossa tia, o tesouro que ela escondia e cultivava no fim daquele medonho e interminável corredor, bem no meio de uma selva de pedra. Aquilo era de uma beleza, de uma delicadeza estonteantes, tão oposto à pressa e à brevidade do exterior, quase como um mosteiro no qual só ficassem as duas últimas moradoras, encarregadas de preservar seu espírito até o derradeiro instante...
Eu sempre me perguntei como foi que a tia conseguiu criar e manter aquel ambiente surrealmente perfeito, aquela aura de serena distinção e felicidade, de aristocrática firmeza e lealdade... E então percebi que ela própria estava em cada detalhe ali dentro: era ela transformada em parede, em vaso, em janela, cortina, seda, tapete, rosa, videira, quadro. Tudo que havia sido e ainda era se espalhava por cada canto, tinha a sua cor, a sua voz, a sua risada cantarina, o brilho do seu olhar.
Nós, seres humanos, possuímos o dom de refletir o que somos em tudo que nos rodeia, em nossas roupas, em nossa comida, em cada escolha do nosso cenário pessoal. Damos à tudo que nos pertence o nosso único e original, insubstituível carisma, e é assim que se cria um ambiente, um universo pessoal. Era assim que a tia Virgínia tinha construido e conservado o seu. Posso afirmar hoje que é deste jeito que o nosso lar tem de ser, que em cada partícula precisa levar uma gota do nosso espírito, tornando-se uma expressão da nossa própria identidade. Por isso ele é só nosso, único, intransferível. Definitivamente, somos o lugar onde estamos; temos o poder de transformar um cenário naquilo que somos e assim contar a nossa história e deixar o nosso legado.