segunda-feira, 19 de outubro de 2009

O poeta

Ainda viva após mais um temporal e com a internet milagrosamente funcionando, cá estou de novo, pronta para mais uma, mesmo que atrasada... Nossa, ontem achei que iria ter que começar a tirar os botes infláveis do armário!... Olhando para o rio de águas marrons e cheias de galhos e folhas que o vento arrancara sem piedade das árvores, realmente cheguei a sentir medo (eu, que adoro chuva porque me relaxa e me inspira!) pois podia ver e escutar a tempestade se debatendo e golpeando a casa, tentando invadi-la por qualquer fresta, as pedras de granizo chocando-se contra os vidros e persianas e a paisagem executando uma espécie de dança frenética, como se quisesse fugir da fúria vingativa dos céus... Fiquei imaginando como encontraria a cidade hoje, quando fosse trabalhar. Aqui já estão falando que Deus está, por algum motivo inexplicável, extremamente chateado com a gente, pois já restam poucas árvores e telhados intatos e, mesmo assim, Ele continua a enviar temporais quase apocalípticos pelo menos uma vez por semana. A este passo, não restarão árvores que nos protejam do sol escaldante do verão -Isso SE tivermos um verão, é claro- nem negócios ou casas inteiros... Bom, suponho que é justo a natureza se rebelar contra as cagadas que andamos fazendo, mas estou começando a acreditar que vai nos fazer pagar um preço bem mais alto e em um prazo de tempo bem mais próximo do que gostaríamos de admitir...
Bom, e abandonando um pouco o pessimismo com respeito a este pobre planeta assolado pelos seus próprios habitantes, aqui vai a crônica desta semana. Espero poder conclui-la antes de que comece o próximo temporal -e já está chovendo e trovejando- e fiquemos sem energia novamente...

Todo mundo dava aqueles olhares de dissimulada zombaria e tédio quando ele aparecia com as suas roupas surradas, seus sapatos velhos e a sua decrépita pasta daquele marrom esbranquiçado, já sem forma, para falar daquelas coisas que a ninguém interessavam. Todos cochichavam pelas suas costas e soltavam uns intermináveis suspiros de impaciência e falsa cortesia assim que ele começava a falar pedindo isto e aquilo: mais espaço no jornal local, a divulgação de um concurso de poesia de cordel, a colocação de um cartaz -feito e impresso por ele mesmo com seus parcos recursos- sobre tabagismo no mural da secretaria, uma entrevista com os chefes para agendar uma noite de trovas no teatro, palestras sobre os poetas nacionais e regionais nas escolas, encontros de trovadores, discussões entre professores sobre a divulgação e os rumos da poseia entre os jovens e oportunidades para eles mostrarem seus trabalhos, talvez uma modesta revista para dar espaço aos poetas desconhecidos... Seu rosto magro e sulcado por mil finas rugas (com certeza produto de todas as negativas, delongas, promessas não cumpridas e humilhações que sofrera por causa da sua lealdade à vocação) de olhos cansados porém ainda brilhantes, seu cabelo tingido de preto e a sua vozinha afônica e sem autoridade, sempre tomada por aquele entusiasmo doentio que nada parecia abalar, tinha o poder de irritar quase todo mundo, que, à sua presença, fechava-se como um só, feito um muro de cimento, duro e insensível, diante do qual ele falava e falava, como se nada percebesse, tentando envolver uma sociedade enfastiada e superficial em suas cruzadas poéticas... Eu olhava para ele e não podia evitar me perguntar, cheia de lástima e uma estranha vergonha: "Será que ele acredita mesmo que vai conseguir alguma coisa desta gente?"... Ele não percebia seus olhares, seus gestos, as costas viradas para ele, aquela súbita azáfama que tomava conta da sala assim que ele cruzava a porta?...
-Vixe, lá vem o poeta!...- avisava alguém da janela, com voz de autêntico pavor -Pelo amor de Deus, o que será que esta criatura quer desta vez?...
E todos riam, sentindo-se superiores e mais importantes do que aquele pobre poeta avoado e mal vestido, sempre carregando aquela pilha de papéis datilografados -porque nem sequer tinha um computador- e discursando sobre coisas que ninguém estava a fim de escutar e menos ainda de entender. Faziam até apostas sobre qual seria a chateação da vez e empurravam uns para os outros o ingrato prazer de recebê-lo e esmolár-lhe alguns minutos de hipócrita atenção... Será que ele pressentia o que o aguardava? Será que seu coração infantil e desprotegido criava uma couraça de fé e teimosia toda vez que virava a esquina e começava a se aproximar do nosso prédio? Será que era capaz de perceber a hipocrisia, a burla, o descaso e, mesmo assim continuar com a sua missão, engolindo os falsos sorrisos, as desculpas, os olhares de menosprezo e as mentiras porque a sua cruzada, a sua vocação, eram maiores do que tudo aquilo?.
-Quando é que este cara vai desistir, heim? Aqui ninguém se interessa por poesia!- comentavam, impacientes com a sua persistência -Temos coisa melhor para fazer!
Mas ele escrevia, não cansava de escrever, e sonhava, e divulgava seus versos nas esquinas, nas praças, nos bancos e mercados, na feira, encadernados com barbante e papel reciclado, escritos à mão com nanquim, com ilustrações saídas da sua própria imaginação. Por algumas moedas as pessoas podiam levar um pedacinho da sua vida para casa, mas, com certeza, acabaria no lixo sem sequer ter sido aberto. Alguns nem esperavam e já o jogavam no meio-fio, achando que o que importava para o poeta eram as moedas que pagariam o pão de amanhã e não a leitura da sua arte, a partilha dos seus sentimentos e experiências, a aceitação das lições que ele tinha a oferecer para o mundo... Este mundo ingrato e superficial, de coração vazio e mente fechada, de sentimentos aturdidos, deturpados, breves e egoistas... "Será que é para o poeta viver nele?", me perguntava muitas vezes, "Será que a sua missão não está fadada ao fracasso? Será que não é melhor ele desistir e ficar em seu próprio universo para não continuar sofrendo com a indiferença e a ferocidade dos homens?"...
No entanto, para espanto e talvez um pingo de admiração do mundo -inclusive eu- o poeta continuava entre nós, espalhando as suas folhas baratas e seus discursos utópicos sem sinal de cansaço ou decepção; continuava a invadir os nossos escritórios e corações pedindo mais espaço, mais entendimento, mais humanidade, mais esperança, mais justiça. Ele persistia, feito erva daninha, espicaçando-nos com as suas palavras rimadas, suas trovas e hai-kais, seus cartazes, suas composições às vezes tão ingênuas, tão óbvias, tão verdadeiras... Ele persistia e, ao invés de considerar o favor de se aposentar ao envelhecer, parecia tomado por um maior fervor a cada ano que passava, por uma força que não sabíamos de onde vinha, porque seu corpo encolhia, seus cabelos raleavam, a sua voz enrouquecia, as suas mãos perdiam firmeza e a sua pele mais parecia um velho pergaminho do mar morto, mas, toda vez que alguém lhe perguntava por que não sossegava e ia para casa descansar, ele invariavelmente respondia, abrindo aquele seu sorriso já meio desdentado:
-Eu sou um poeta, meu amigo, um filho da grande arte, e a arte nunca morre!... Só se transforma...- e mostrando as suas mãos enrugadas e artríticas, acrescentava: -Está vendo? Eu estou virando uma árvore! Olha os meus galhos! Olha as minhas folhas!...- e rindo, abria as abas do seu paletó e sacudia os bolsos, onde se podia ouvir o som alegre das canetas e lápis entrechocando-se. Então, pegando um deles, o aproximava do rosto do seu interlocutor e dizia, baixinho: -Estas são as minhas sementes. Tome uma. Talvez você faça dela uma outra árvore.
E se afastava pela rua, sua silhueta curvada, de andar meio desequilibrado, sempre com a pressa de quem tem um lugar onde chegar, com a pasta numa mão e as abas da jaqueta esvoaçando feito asas esfarrapadas, deixando para atrás alguém com uma caneta e talvez um pensamento a mais.
O poeta não ficou famoso, não ganhou dinheiro, não publicou nenhuma coletânea, não recebeu ofertas de grandes editoras, não deu autógrafos nem promoveu uma revolução no mundo. Morreu, simplesmente, na aurora de um dia qualquer, já muito velho, rodeado pelos poucos e fiéis amigos, pela sua mulher e seus filhos, que sabiam que o montante da herança não seria contada em notas ou moedas, mas em versos e rimas. Morreu enquanto o sol nascia, e tenho certeza de que, com seu último suspiro, compôs uma poesia dedicada àqueles raios dourados que entravam pela sua mesquinha janela para beijar-lhe a testa e aquecer-lhe o coração pela última vez. E deixou aquele ouro levá-lo embora com a docilidade e a paz de quem foi sempre fiel a um ideal e fez de tudo para torná-lo realidade. Porque o poeta nunca deixa de acreditar, de desejar, de falar, de esperar.
Quisera eu ser feito ele, que nunca desistiu, que a cada instante se deixou iluminar e aquecer pela sua inspiração, seguindo-a por todos os lugares, que considerou seu dom algo divino pelo qual valia a pena lutar, que descobriu em suas próprias palavras mensagens que precisavam ser semeadas, compartilhadas, passadas adiante, que não se importou com o que o mundo pensava e foi fiel à sua vocação, à sua missão... Quisera eu ser feito este poeta, de quem aprendi que toda grande transformação começa dentro de nós mesmos e, aos poucos, vai se alastrando ao nosso redor, chegando a ser capaz de transformar uma partícula do mundo, o que é suficiente para fazer valer a pena a existência de uma vida. Pois eu sou a partícula que ele transformou, deixando-me como legado o compromisso de ser fiel à minha vocação e de transformar um outra partícula.

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