terça-feira, 29 de setembro de 2009

Uma gota do nosso espírito

Definitivamente, estou começando a acreditar piamente que nestes últimos mêses o clima não anda muito interessado em manifestações artísticas. Este final de semana, bem na hora em que finalmente tive um tempo para sentar aqui e postar as crônicas e enviar o texto para o jornal, caiu um temporal tão grande que a cidade simplesmente parou. Ficamos horas a fio sem água nem energia, só escutando a ventania, os galhos das árvores quebrando e sendo arrastados pela rua, os fios elétricos zunindo e batendo-se uns contra outros e a chuva despencando implacávelmente sobre telhados, muros e calçadas. Ilhados em nossas casas, só nos restava imaginar a catástrofe que estava acontecendo lá fora... A água escorria sorrateira e silenciosa pelas paredes da minha sala e invadia o chão por baixo da porta com insistente insolência, os sofás e as almofadas brilhavam, salpicados pelas gotas furiosas que penetravam através das frestas da janela que, apesar de estar fechada, tornou-se incapaz de conter a crescente fúria dos céus. O temporal durou -em sua força máxima- uns cinco ou dez minutos, mas foi o suficiente para quase destruir a cidade e demonstrar-nos que não somos nada e que toda a nossa tecnologia é inútil quando a natureza resolve fazer birra; então só nos resta esconder-nos em nossas frágeis casinhas e aguardar a que ela se acalme... O cenário, quando fui trabalhar ontem, era dessolador; pior: assustador. Mais da metade das árvores caiu por terra, levando junto postes e fios elétricos, danificando carros, grades e muros. As ruas estavam feito um mar de folhas, lixo, galhos, barro e pedaços de telhas e tijolos. Mal se conseguia andar e os carros tinham que trafegar com todo cuidado para não sofrer algum acidente ou atropelar os pedestres que eram obrigados a andar pelo meio da rua...
Então - e com as coisas ainda funcionando pela metade- é por isso que somente hoje estou conseguindo postar a minha crônica, aproveitando que, apesar das nuvens, não há nenhum temporal à vista... pelo menos por enquanto. Mas a meteorologia já anunciou que a primavera vai ser deste jeito, então vamos nos preparar e aproveitar os dias de sol e calma e comprar um bom estoque de rodinhos, panos, vassouras e telhas.
E, antes que algo aconteça e sâo Pedro mude de idéia, aqui vai a crônica desta semana:

Abria-se uma pequena porta de metal, que gemia vergonhosamente em seus gonzos enferrujados, meio escondida entre as imensas paredes dos prédios vizinhos, e virando à esquerda, adentrava-se por aquele longo e estreito corredor de muros nus e carcomidos, de uma altura que parecia tocar o céu. Os passos ecoavam sinistramente e ao longo do percorrido e, não sei por quê, só se falava em cochichos. O estrondo do centro ia ficando lentamente para atrás, como que engolido por aquele espaço que parecia suspenso nalguma outra dimensão. À noite, só uma lâmpada amarelada iluminava mesquinhamente aquele túnel vazio e medonho. Tinha-se a impressão de que qualquer coisa poderia acontecer ali! Era tão comprido e silencioso, tão severo e irreál!... Caminhava-se durante uma eternidade até avistar um sobrado de pedra negra; janela com as cortinas brancas sempre fechadas e a imponente porta de madeira maciça e pregos de ferro em imperturbável silêncio. A garagem vazia me dava a impressão de ser a negra bocarra de algum monstro. Tudo tinha uma cor diferente, um som distante e oco... O que nos aguardava?...
Então, virando novamente à esquerda -e desviando das mandíbulas de metal da garagem- nos deparávamos com a grade do portão da casa da tia Virgínia... E que surpresa agradável era aquela!... A campainha ecoava lá no fundo e, após alguns momentos, lá vinha ela por entre as rosas e videiras, pálida e sofisticada, envolta em seus vestidos esvoaçantes e discretamente floridos, para receber-nos. O portão de metal abria-se com um longo chiado e então o sol voltava a brilhar, e havia pardais, pombas, zorzales e chincoles, borboletas e abelhas zunindo como num carnaval. O céu estava lá em cima novamente, flanqueado pelos prédios de mil janelas, sacadas e outdoors. Não retornávamos à realidade, mas, na verdade, entrávamos num outro mundo. Era como um presente dentro de várias caixas enfeitadas. Tínhamos de cruzar um labirinto para chegar até ele, mas a aventura valia a pena, com certeza. Ali dentro era tudo tão leve e nostálgico, tão velho e frágil! O tempo transcorria num outro ritmo, com uma intensidade e um sabor diferentes. Havia uma preguiça, uma aristocrática sensualidade que nos envolvia, nos beijava docemente. Cada quarto escondia uma deliciosa surpresa: um vaso de cristal com uma única rosa em todo seu esplendor. Um velho e parrudo fogão à lenha. Um polido piano vertical com a sua toalha de renda lilás. Um sofá de seda listrada. Uma cadeira de balanço. Revistas antigas, taças de sorvete de nescafé com leite, e colheres de prata trabalhada... A velha dama e a sua ainda mais velha babá -a mama Carmela- nos atendiam com uma classe indiscutível, suas vozes ressoando harmoniosamente na atmosfera lânguida e perfumada.
Todos os quartos davam para o jardim -uma típica casa da época da colônia- e tinham paredes de uma cor indefinida, janelas enfeitadas com cortinas de renda e primorosas molduras de madeira esculpida. Um regador levantava da terra molhada aroma de cravos e violetas, de hortelã e jasmim. As roseiras cintilavam ao sol, sob a parreira generosa e carregada de cachos escuros. Ao longo da tarde, histórias e mais histórias se sucediam. Nossa curiosidade não estava nunca satisfeita, assim como a vontade da tia de contar-nos as suas peripécias de juventude. Ela e a sua babá habitavam num mundo já desaparecido, de glamour e tabús, mas que elas conseguiam resguardar perfeitamente dentro daquelas paredes descascadas, no meio da enorme e feroz metrópole. Eu ficava admirada contemplando aquele cenário e as suas personagens, sentindo como o clima me envolvia feito um longo e cálido abraço do passado... Mas era tudo completamente real. Aquele era o precioso segredo da nossa tia, o tesouro que ela escondia e cultivava no fim daquele medonho e interminável corredor, bem no meio de uma selva de pedra. Aquilo era de uma beleza, de uma delicadeza estonteantes, tão oposto à pressa e à brevidade do exterior, quase como um mosteiro no qual só ficassem as duas últimas moradoras, encarregadas de preservar seu espírito até o derradeiro instante...
Eu sempre me perguntei como foi que a tia conseguiu criar e manter aquel ambiente surrealmente perfeito, aquela aura de serena distinção e felicidade, de aristocrática firmeza e lealdade... E então percebi que ela própria estava em cada detalhe ali dentro: era ela transformada em parede, em vaso, em janela, cortina, seda, tapete, rosa, videira, quadro. Tudo que havia sido e ainda era se espalhava por cada canto, tinha a sua cor, a sua voz, a sua risada cantarina, o brilho do seu olhar.
Nós, seres humanos, possuímos o dom de refletir o que somos em tudo que nos rodeia, em nossas roupas, em nossa comida, em cada escolha do nosso cenário pessoal. Damos à tudo que nos pertence o nosso único e original, insubstituível carisma, e é assim que se cria um ambiente, um universo pessoal. Era assim que a tia Virgínia tinha construido e conservado o seu. Posso afirmar hoje que é deste jeito que o nosso lar tem de ser, que em cada partícula precisa levar uma gota do nosso espírito, tornando-se uma expressão da nossa própria identidade. Por isso ele é só nosso, único, intransferível. Definitivamente, somos o lugar onde estamos; temos o poder de transformar um cenário naquilo que somos e assim contar a nossa história e deixar o nosso legado.

sábado, 19 de setembro de 2009

Escolher o caminho

Às vezes fico parada pensando na quantidade de coisas que já me aconteceram, por escolha própria ou pela mão do destino, e começo a achar que a minha vida daria uma boa novela, daquelas que têm mil reviravoltas e um monte de personagens fascinantes. Como é que a gente pode experimentar tanta coisa -voluntária ou involuntáriamente- ao longo da vida, que parece tão curta e transcorre tão rapidamente?... Olhando assim, percebo de repente a quantidade de oportunidades que nos são oferecidas para aprender, crescer, amadurecer, nos aperfeiçoar como seres humanos e levar adiante a tarefa que viemos realizar neste planeta. O mundo está cheio de pessoas, cenários, acontecimentos, ciclos, processos e oportunidades que podem nos ajudar a descobrir a verdade dentro de nós mesmos; esta verdade individual que forma parte indivisível da verdade de todos e que é a que faz com que a história aconteça... E às vezes, como já aconteceu comigo, vamos descobri-la e experimentá-la nos lugares ou situações mais inesperados, junto de pessoas que jamais sonhamos fossem formar parte da nossa vida, mas que no fim, acabam se tornando verdadeiras revelações que nos acompanham pelo resto da nossa existência.
Como as freiras desta crônica, por exemplo, a quem, como um presente totalmente fora de todas as regras e convenções, me foi permitido conhecer...



Me lembro do perfume do jasmim pairando no ar enquanto caminhava lentamente pelo pátio florido do convento. O Sagrado Coração abria seus braços sobre nós como que a receber-nos, a alentar-nos, a consolar-nos. Aquela estátua no meio do pátio principal era como uma promessa, uma lembrança do amor e a dedicação das mulheres que ali viviam as suas vidas silenciosas e singelas, de su amor e fidelidade, da sua luta e seu sacrifício... Eu olhava tudo em volta, sem acreditar que, por alguma daquelas linhas muito tortas que Deus às vezes costuma escrever, eu estava mesmo ali dentro, atrás dos altos e severos muros do mosteiro, convivendo com as freiras e a sua rotina, mesmo sem ter certeza de por quanto tempo ficaria ali. Por algum motivo -que até hoje me surpreende e me encanta, pois estar dentro de um convento de clausura era algo que me atraia desde criança- este privilégio tinha me sido concedido logo na primeira entrevista que tive com a madre superiora, e eu me sentia tremendamente grata e feliz, maravilhada, já que aquele era um fato completamente fora do normal para as regras da ordem... Mas, a despeito de tudo isto, lá estava eu, passeando -quase que dançando, para ser sincera- pelas dependências do convento, cruzando com aquelas mulheres de hábito preto e andar silencioso, olhar discreto e sereno, vozes pequenas e gestos contidos, uma tranqüila e inegável felicidade estampada em seus rostos, embriagada por aquela força doce e invisível, porém quase palpável, que dominava o lugar todo, tal como eu imaginava que seria... O sol, o céu azul, as pombas no telhado e no campanário; as pequenas, sombreadas e perfumadas ermidas onde podíamos nos ocultar para ter o nosso encontro com o divino, os lençóis brancos estendidos no varal, brilhando sob os raios especialmente luminosos do sol, o cheiro de pão vindo da cozinha... Tudo parecia diferente, tão claro e próximo, tão poderoso. Eu não me cansava de contemplar aquela paisagem, aquele universo regido pela força espiritual, e podia sentir de maneira quase concreta aquela espécie de fronteira que demarcava o limite entre o convento e a sua atmosfera sobrenatural e o mundo lá fora. De repente, ele parecia tão distante e irreal, tão desnecessário! Não precisávamos dele!... O mesmo acontecia com as grades quadriculadas do coro e da sala de visitas. Víamos as pessoas e até conversávamos com elas, mas pareciam estar tão longe! Enraizavam-se em nossos corações e os sentíamos ainda mais perto, nosso amor ultrapassava as fronteiras de amizade ou parentesco, pois entendíamos então que não havia mais que escolher quem amar, que todos mereciam ser amados e que podiamos fazer isto através a força do nosso espírito. Era um presente fantástico!.
Existia ali dentro um algo todo especial, zelosamente guardado, resguardado, cultivado, partilhado - e o exterior não conseguia penetrá-lo. Não havia temor, mas uma poderosa e inabalável convição. Nâo vivíamos num clima irreal, mas sobrenatural.
Ás vezes, deitada no colchão de palha enquanto olhava a luz da lua e as estrelas no límpido céu noturno, me perguntava, espantada: "Mas, como pode?"... Levava-se uma vida ordinária, cheia de afazeres domésticos e obrigações religiosas. Tinha-se horário rígido para tudo, inclusive para o silêncio, não existiam preferências ou mordomias. Trabalhava-se na horta, no bordado, na cozinha, na lavanderia, na faxina, no jardim, na decoração da igreja; e todas faziam um pouco de cada coisa com alegria e disposição. Não havia desafetos, mágoas ou invejas, mas diferenças que eram sanadas pela sabedoroia da madre superiora e a obediência e humildade das irmãs. A vida transcorria da maneira mais prosaica possível!... E no entanto, tinha algo no ar, nos prédios imponentes e severos, nos jardins perfumados e nos corredores; nos gestos, olhares e tons das freiras, que me transportava para uma outra dimensão. Me perguntava como isto era possível, pois no fundo eram mulheres iguais a mim em tudo -e eu não sou nenhuma santa!- com seu caráter, seus problemas, seus medos e fraquezas, suas vitórias e derrotas, fadadas a errar mil vezes ao longo do dia... Então, de onde provinha aquela aura poderosa e transparente que permeava todos e cada um dos seus atos, pensamentos e intenções e todo o ambiente no qual se movimentavam?...
Até hoje não tinha conseguido responder a esta interrogante, mas agora começo a entender o que era aquela força, esse carisma inegável que guiava cada gesto, cada passo, cada pensamento e palavra destas mulheres. Essa força extraordinária vinha do peso, da lealdade, da perseverança da sua escolha, da consciência e responsabilidade que cada uma delas tinha com respeito a este caminho chamado vocação. Agora que eu mesma escolhi meu caminho, aceitando -mesmo sem saber, num ato de pura fé e amor- tudo que ele implica, sinto-me de alguma forma abençoada, fortificada, inspirada e resguardada -ou ao menos, alerta- contra as ilusões do mundo. Não preciso das paredes do convento -se bem às vezes sinto muita saudade delas- pois boa parte das vezes consigo (mesmo que demore um pouco e passe uns maus bocados) enxergar aquela fronteira que as grades delimitavam e que nos lembrava o que é verdadeiramente importante. A minha vida continua cheia de banalidades, de equívocos, de preguiças, vaidades e fraquezas, porém, há algo, esta percepção, esta clareza, esta tranqüilidade que permeia todos meus momentos, mesmo os mais sombrios e solitários.
Escolher um caminho, depois de tê-lo enxergado e compreendido, e trilhá-lo tal como aquelas freiras faziam, nos dá uma força descomunal, uma fé inabalável. Ao fazer a opção abrimos portas, descerramos janelas, encontramos caminhos e os meios para percorrê-los. E não falo só de opções profissionais, mas de vida, de humanidade, de crescimento. As primeiras fazem parte das segundas. Dentro de um mosteiro, todos os que estão ali fizeram a mesma opção e agem com um mesmo objetivo, por isso sentimos essa força imensa, essa clareza e convicção. Há que se viver para ser capaz de fazer a escolha. Depois, há que se viver essa escolha.
Porém, não se enganem, porque optar não traz paz nem felicidade instantaneamente. Não, pelo contrário: o tempo que se segue é de sofrimento -pois devemos cortar velhos laços e encontrar outros para que qualquer mudança verdadeira aconteça- é de lapidação no crisol do abandono à verdade que sabemos ser a nossa. É um tempo de pura perseverança, de provação, de luta contra as nossas própias mentiras e armadilhas. É tempo de trevas profundas e, ao mesmo tempo, de segundos de graça infinita. Tempo de misericórdia, de nudez, de feiúra, de transformação, de perdão, de revelação... No entanto em meio a todo este aparente cataclismo, algo sobrevive, martela sem cessar em nosso coração atormentado: a certeza da nossa opção. Ela nunca nos abandona. É feito um farol, uma rocha, o alicerce indestrutível sobre o qual estamos construindo os resultados da nossa escolha. Optar e agir é se tornar finalmente alguém, tomar seu lugar na história da criação. É ser humano com todas as oportunidades que lhe foram destinadas.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Mas eu não acredito em Deus!

E por último, a terceira crônica. Tomara que não tenham uma indigestão!...

"Mas eu não acredito em Deus!", exclama o advogado sentado diante do sábio chinês. E o sábio, sorrindo gentilmente, como todos os sábios, lhe responde: "Você acredita na justiça? Acredita na compaixão, na bondade, na alegria de viver? Acredita na solidariedade, no perdão, na honestidade?"... E o advogado, um pouco surpreso, exclama: "Mas é claro que acredito!". O sábio, então, acrescenta: "Você acredita no amor?". E o advogado, sorrindo, responde: "Nisso eu acredito acima de tudo!". O sábio, colocando uma mão no ombro do advogado diz, com os olhos brilhando e um sorriso meio maroto em seus lábios enrugados: "Então, meu filho, você acredita em Deus, porque Ele é tudo isso."
"Pois é...", pensei, quando a câmera fechou no rosto surpreso e iluminado do advogado, protagonista um tanto quanto "sui géneris" do seriado que leva seu nome. "Pois é, Deus é tudo isso, esses são seus mil nomes e rostos, suas inúmeras vozes e movimentos." Não é preciso freqüentar uma igreja ou seguir uma religião, vestir um hábito ou se trancar num mosteiro -mesmo se essas opções são tão válidas quanto as daqueles que se dizem ateus mas praticam o bem e levam uma vida digna e honesta- para proclamar que se acredita em Deus ou em qualquer força divina superior. Levante uma pedra e você encontrará Deus, tenha ele um nome ou não! Pois o divino impregna cada segundo da nossa história, quer percebamos ou não, cada um dos nossos impulsos gerados pelo amor, grandes ou pequenos, divulgados ou não.
O bem nunca passa despercebido, nunca acontece sem deixar alguma conseqüência. A sua semente, mesmo microscópics, sempre criará raízes, não importa quanto tempo demore, e acabará por dar frutos que serão capazes de saciar a fome do mundo. Deus não tem nome, não tem rosto, não tem voz, porque Ele é todos os nomes, todos os rostos e as vozes ao nosso redor, agora e sempre, e quem escolher o bem em qualquer uma das suas manifestações, estará escolhendo e testemunhando Deus, não importa se jamais pôs um pé dentro de uma igreja.

Surpresas e milagres

E aqui vai o segundo brinde, espero que gostem.

Animais e plantas são sempre uma surpresa e um milagre. Por exemplo: chove tanto nestes dias que o verde começa a explodir por entre as frestas da calçada e das paredes, ameaçando tomar conta de tudo feito un carnaval fora de época. O milagre da vida que espia e nos chama por trás das grades das nossas prisões... A esperança que nunca morre. O gato, acaçapado atrás da moita, que espia a enorme e suculenta borboleta amarela, avança em câmera lenta, com a pança arrastando no chão, olhos fixos no inseto. Pára, preparando o bote, e finalmente dá um pulo, uma pirueta e a sua garra quase a alcança... Mas ela escapa, dançando zombeteira pelo ar. Dou risada do seu fracaso enquanto ele senta e suspira, decepcionado, olhando de longe as asas amarelas que parecem rir dele... Um show e tanto!.
A natureza sempre nos presenteia com coisas que não esperamos ver ou perceber, encontros e episódios cheios de revelações e dicas para que vivamos melhor. Tem que se prestar atenção, então, e parar de olhar só para o próprio umbigo!... O João-de-barro construindo a sua casinha, o pinheiro coberto de gotas de chuva, brilhando feito uma árvore de natal antecipada. Entrar embaixo dele e olhar seus galhos molhados é uma festa para os sentidos!... Os dois cachorros vira-latas brincando na grama da praça feito crianças. Correm, pulam, rolam, latem, alheios a todo o resto... As tartarugas tomando sol nas pedras do laguinho artificial, vindo comer biscoito na minha mão, me encarando com aqueles olhinhos pretos e brilhantes, sem perder um só dos meus movimentos...
Há uma tal inocência e serenidade nessas imagens, um sentido de realidade e certeza tão grandes -pois não visam convencer nem vender nada para ninguém, estão ali de graça, simplesmente porque é seu momento de acontecer- que adquirem um valor inestimável. São o que são em seu presente e esse é seu maior mérito. Cabe a nós ter a percepção disto e usufruir delas, pois são as coisas que acontecem ao nosso redor que nos fazem sentir-nos vivos, conectados, amados e abertos a todas as possibilidades e desafios, desde que participemos delas.

Manhãs

Bom, e aqui vai o primeiro dos três brindes que lhes prometi. Em geral, as crônicas que são publicadas no jornal são muito curtas (eles ainda insistem naquelas mutiladoras 30 linhas!) então vou colocá-las como brindes junto com os textos mais longos toda vez que forem publicadas. Não tenho nada contra textos curtos, mas não é muito legal ter a inspiração restringida por espaços ou número de linhas. Tenho crônicas curtas que foram escritas espontáneamente, mas, se forem me deixar escolher, prefiro não ter limite para redigir até conseguir deixar o conceito o mais perto possível da perfeição... Coisa que, claro, é impossível para qualquer artista, pois as nossas obras nunca estão realmente acabadas, já que o nosso próprio amadurecimento faz com que sempre deitemos sobre elas um novo olhar que as transforma, as renova, as reinventa... mas aí é que está a graça, não é mesmo?

As manhãs são, definitivamente, gloriosas. Gloriosas em qualquer lugar, em qualquer estação, em todas as idades. Manhãs significam novos começos, novas oportunidades, novas experiências, promessas a se cumprirem, esperanças renascendo. Sâo a luz do arrependimento, a ação reparadora, a palavra de alento, o afago da fé, o perdão para nós mesmos. Os anjos viram pardais, vem-te-vis, andorinhas, sanhaços e sabiás que cantam ao amanhecer, chamando-nos para presenciar mais uma aurora de expectativas. O sol invade as nossas vidas sem pedir licença, até ontem miseráveis e escuras, e o ar frio renova os nossos sentidos, chacoalha nossos sentimentos... Somos santos pela manhã!... É como se tudo acontecesse pela primeira vez. Tornamos a ser crianças, virgens, corajosos, crédulos, alegres e inocentes como o céu que se anuncia. Nada existe ainda fora dos limites do nosso coração intocado, então é o tempo de criar, de planejar, de aprender e assumir, de enxergar e compreender. De começar a amar e a sermos amados.
Deveríamos viver todo dia, o dia todo, de manhã, sempre atentos e otimistas, expectantes; deveríamos conservar o frescor, o vigor, a paciência e a consciência do amanhecer... Como Deus e os anjos estão perto pela manhã! Nada temos senão a eles nesta hora. Se vivéssemos de manhã os sentiríamos sempre junto de nós, dentro de nós, em tudo que nos rodeia... Como seria morrer quando o dia nasce? Seria como dizer adeus à noite, abrir as asas e voar em direção da vida que se avizinha? Ou seria como entrar no sol e se espalhar pelo mundo com a sua luz?...

sábado, 12 de setembro de 2009

Arrependimento

Esta semana vou postar três brindes para vocês, além da crônica normal, porque tenho me esquecido de postar as que foram publicadas no jornal ( que já somam três), então, acho que vão ter bastante material para passar o fim de semana. Ainda bem que a internet voltou a funcionar, porque até ontem estava em greve total. Acho que os últimos temporais devem ter derrubado ou danificado algumas torres ou algo assim... Todo mundo já estava começando a subir pelas paredes!... Eu nem sequer tentei ligar o computador ontem, para não passar raiva. Preferi deixar a coisa para hoje mesmo, que está um sol de rachar e ninguém falou uma palavra sobre temporais ou coisa parecida... Olha que você acabar de digitar um texto e a rede cair é quase motivo para suicídio!... Talvez comece hoje e termine amanhã, porque perdi boa parte da manhã com assuntos domésticos (é i-na-cre-di-tá-vel o tempo que este tipo de coisa leva!) e à tarde a minha filha vem aqui, então... Mas vamos começar de uma vez, antes que alguém toque a campainha, apareça algum vizinho querendo papo ou o souflé comece a cheirar a queimado...

Estava começando a fritar o arroz para o almoço quando o interfone tocou; um toque longo, insolente, irritante. Segurei a panela acima do fogo e fiquei escutando por alguns segundos, soltando um suspiro de desgosto. O toque se repetiu, mais abusado ainda.
-Nossa!...- exclamei em voz alta -Parece que vai tirar o pai da forca! Calma aí!...
Larguei a panela em cima da pia e atendi, já querendo xingar quem estava no portão interrompendo meus afazeres.
-Oi, tia!...- exclamou uma voz infantil, ardida e imperativa. -Ô, tia, não tem nada aí para me dar?.
Resfoleguei de novo e me armei de paciência. Jà tinha visto a queles pivetes correndo e gritando pelo meio da rua enquanto arrumava a sala mais cedo, e não tinham cara de bem educados.
- Hoje não tem, filho.- lhe respondi, com meu tom mais polido e firme.
-Mas, não tem nada para me ajudar?.- insistiu a voz, com ar de ceticismo, o que me deixou ainda mais irritada.
Dei uma olhadela na panela e na boca do fogão acessa. A água fervia em desespero na caneca ao lado. Será que o moleque estava surdo? Teria de ver a água evaporar antes de conseguir terminar aquela conversa?.
-Hoje não tenho, filho.- repeti com mais firmeza.
-Mas nem um pedaço de pão, tia?...- exclamou ele, insolente -Tô com fome!.
-Hoje não tenho, tá bom?- disse eu, como se, na verdade, estivesse xingando-o ou dando-lhe um tabefe. Agora sim, fim de papo.
Então, com uma voz surpreendentemente dócil e inocente, ele me respondeu:
-Tá bom.- e desligou o interfone.
Aliviada, coloquei o aparelho no gancho y voltei ao meu almoço, botando a panela no fogo e mexendo com força o alho e o arroz, jogando um punhado de sal e desligando a jarra com água antes que virasse uma nuvem e fugisse pela janela aberta... Porém, no instante em que ia despejá-la na xícara, parei, e a lembrança do garoto no portão veio à minha mente. Mas não foi seu rosto o que apareceu diante de mim e sim a sua voz dizendo: "Tô com fome!" e em seguida, tão resignada e gentil: "Tá bom."... Num impulso instantâneo, larguei a xícara e a caneca e fui rapidamente até o balcão onde guardamos os mantimentos. Lembrei que no dia anterior havia despejado umas bolachas de mel com chocolate no vidro e que sobraram algumas no saco. Abri a porta, me abaixei e apanhei o restante do pacote, corri até o portão, torcendo para que os moleques estivessem por ali ainda, o abri e saí à rua. Um deles já estava no portão da casa da outra calçada, e o outro se afastava correndo e piruetando em direção à próxima, depois das datas vazias. O menino virou, como se soubesse que eu estava ali, e seu rosto moreno e magro, dentuço e de grandes olhos escuros iluminou-se com um sorriso. Girou num pulo e veio saltitando em minha direção. Eu, completamente sem graça -não sei bem por quê- estendi o pacote de bolachas para ele e sorri.
-Encontrei estas bolachas que sobraram de ontem. Nâo são muitas, mas...- gaguejei, e acrescentei, tomada agora por uma curiosa e leve sensação de felicidade: -Putz, mas você corre rápido, hein? Já estava quase na esquina!...
O menino soltou uma risadinha e apanhou as bolachas, seus olhos pretos brilhando sob as sobrancelhas despenteadas.
-Obrigado, tia!...- ajuntou, com aquele mesmo tom de voz de antes: -adoro bolacha de chocolate.- deu meia volta e saiu em disparada em direção ao outro menino, que já se aproximava.
Eu sorri, vendo-os mergulhar, felizes, no pacote de bolachas, e entrei em casa para terminar meu arroz. No entanto, tinha a sensação de que aquele episódio já tinha me alimentado o suficiente para o resto do dia. Logo, cortei o alface, a rúcula e o repolho, ralei a cenoura, piquei a cebolinha e o coentro, descasquei e fatiei o tomate e pus as bacias verdes e coloridas na mesa. Mexi as coxinhas de frango, refoguei o brócolis na manteiga e no alho e o tampei para que não esfriasse, dei uma espiada no arroz, macio e cheiroso, e coloquei o suco na mesa... Tudo isto com aquele sorriso de gratidão e serena felicidade estampado na face, o coração leve e um quê de asas de anjo adejando pela cozinha iluminada... E de repente pensei: "Como é bom o arrependimento! Quanta coisa boa nasce dele!"... E me lembrei de todas as vezes em que, num impulso além da razão, da comodidade, da segurança, me arrependi de uma atitiude e decidi ajudar alguém, me aproximar, escutar, abraçar, falar, doar ao invés de me fechar e deixar algém com a mão estendida. E como foi boa a sensação que se seguiu a minha mudança! Como ficou claro o poder que possuímos de decidir, de reconsiderar, de tomar outras atitudes, de mudar de opinião para ajudar outros com gestos que, às vezes, para nós, não significam grande coisa e nos custam quase nada, apenas alguns minutos de boa vontade.
Se arrepender é abrir novas portas, optar por outros caminhos, oferecer chances, é voltar atrás sem retroceder. Se é verdade que o nosso coração tem dois lados -um bom e outro mau- que temos a chance a cada momento de escolher qual destes dois lados deve agir e que possuímos a consciência do que é certo ou errado, então, as nossas oportunidades de fazer o bem são infinitas, mesmo que comecemos o dia errando, pois sempre teremos a chance de de nos redimir e nos renovar no segundo em que nos arrependermos... Às vezes, a ação movida pelo arrependimento é mais verdadeira ainda do que aquela que nasceu da bondade natural, pois vencer o equívoco e transformar o coração pode ser mais corajoso e meritório do que agir com retidão de imediato... Pois é dos pecadores de quem Deus está mais perto.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Universo rural

É quase um milagre que esteja, finalmente, conseguindo postar esta crônica, porque parece que por causa dos dois temporais que desabaram por acá a internet ficou uma porcaria (ou então, meu servidor está ficando relaxado) e está leeeeenta ou então, simplesmente, não conecta... Faz dois dias que estou tentando publicar as minhas crônicas e dar uma olhada no meu corréio, e nada!... Então, aproveitando que hoje o sol está brilhando com total insolência e glória -pelo menos por enquanto, porque anunciaram mais chuva- vou postar os textos, porque se esperar e começar a chover, a coisa vai ficar féia. Então, sem mais delongas -apesar de que, no momento, não há nuvens ameaçadoras- aqui vai a crônica desta semana.

Só quando leio os contos ou romances de Oscar Castro -um dos meus escritores chilenos preferidos, junto com Daniel de la Vega- é que consigo perceber o tamanho da saudade que tenho do campo chileno, das suas cores, dos seus perfumes e vozes, das suas lembranças... Cholqui, Melipilla, Maipú, Pomaire, El Carmen Alto... Estradas flanqueadas por álamos, casinhas de adobe e cercas de madeira enfeitadas com malvas e roseiras, cheiro de alfavaca e mato no ar, os raios do sol filtrando-se por entre os galhos dos eucaliptos e as parreiras, espalhando-se generosamente pelas plantações de trigo que ondulam feito um oceano dourado sob o impulsos do vento constante e brincalhão. As fazendas mais abastadas com as suas galerias de madeira e suas poltronas de madeira e palha enfileiradas contra a parede, o delicado bordado das cortinas brancas em portas e janelas, as cozinhas com seus fogões a lenha; réstias de alho, pimentão, pimenta vermelha e verde, charque e lingüiça penduradas do teto, os cachorros deitados ao sol, o compasso lento e poderoso, quase majestoso, dos homens em suas cavalgaduras. Cheiro de empada, de cazuela, de enrolado de carne, de terra e bosque... A praça central do povo, verde e meio desorganizada, um pouco pretensiosa, barulhenta e animada, os velhos na porta dos bares ou sentados nos bancos de madeira botando conversa fora e contando causos. A igreja de primoroso campanário, escura e fresca, de coloridos santos de gesso e altares esculpidos, reina soberana sobre os jardins, os transeúntes, os carros e as crianças que correm e gritam entre os canteiros floridos. Lojas modestas, baratas, coloridas, quitandas exibindo seus produtos frescos em grandes cestas de vime, ainda sujos de terra; a sorveteria, a padaria, o posto dos bombeiros que, todo dia, anuncia pontualmente o meio da jornada com a sua sirene escandalosa. Ruas estreitas, casas silenciosas, discretas, palpitar de vida, de simplicidade, de tranqüilidade, um quê de inocência que já se perdeu na cidade grande...
O pátio central da casa dos meus tios, onde todos os quartos desembocam, atravesando a galeria de lajotas e janelas retangulares de cortinas brancas de filô. O quintal do fundo, onde tem ordenados e viçosos canteiros de cebolinha, salsinha, alfavaca, coentro, alface e pimenta. Os pés de abacate e pêssego, de cheirosas laranjas e limões, a parreira em sua armação de vigas já descoloridas pelo sol. Perambulando entre a horta e a terra, entre as malvas, copos de leite e violetas, as galinhas e os cachorros dividem o espaço e o sol, as bacias de água e comida, os cantos frescos e tranqüilos perto do velho forno de barro e a cobertura onde se armazena a lenha... São animais satisfeitos, preguiçosos, alegres, encardidos e felizes... E aquela imensidão verde em volta, coroada pela massa lilás, soberana e protetora, da cordilheira e as suas neves eternas, e sobre ela um céu limpo e sem segredos. A terra salpicada aqui e ali pelas típicas moradas dos colonos, por tratores amarelos e vermelhos, rebanhos pastando e grupos de chorões que indicam a presença de algum curso de água...
Adentrando pelas estradas de terra sente-se um ar de mistério, de expectativa, de força virgem e prestes a explodir em mil formas de vida. Na mata, as vozes mudan, tornam-se mais intensas e próximas, de uma realidade desconcertante, um aroma selvagem toma conta da paisagem e parece que nosso coração se enche de liberdade e paz, de certeza, de poder, pois tudo ali parece acolher, convidar, se revelar, nos invadir, transformando-nos no que realmente somos: filhos da natureza. É sempre como regressar a um lugar conhecido, ancestral, não contaminado. Às vezes, quando viajamos de carro nas férias, passamos por cenários tão parecidos com os do campo chileno, que chego a me emocionar e quase peço para pararmos por alguns momentos, pois trazem à minha mente todas aquelas imagens, que guardo tão zelosamente em meu coração, da terra na qual estão plantadas as minhas raizes. O mesmo me acontece quando começo a ler os contos ou romances de Oscar Castro. Descreve com tanta fidelidade e paixão aquelas pequenas vilas de casas de adobe e ruelas de terra, as personagens singelas e rudes, as crenças, o folclore e todo aquele encanto quase mágico na sua simplicidade e autenticidade, que sinto como se estivesse bem no meio de cada cenário, de cada história, no coração de cada personagem, totalmente imersa naquele universo rural que tão bem cheguei a conhecer e que hoje me provoca tanta saudade...
Porque, no fim das contas, a gente não retorna à pátria por causa da família ou os amigos -pois eles vão desaparecendo com o passar do tempo- pelo clima ou pela comida. A gente volta por causa da terra, pelas paisagens, pelas raizes que mantêm intacta a nossa identidade e a nossa integridade.