sábado, 12 de setembro de 2009

Arrependimento

Esta semana vou postar três brindes para vocês, além da crônica normal, porque tenho me esquecido de postar as que foram publicadas no jornal ( que já somam três), então, acho que vão ter bastante material para passar o fim de semana. Ainda bem que a internet voltou a funcionar, porque até ontem estava em greve total. Acho que os últimos temporais devem ter derrubado ou danificado algumas torres ou algo assim... Todo mundo já estava começando a subir pelas paredes!... Eu nem sequer tentei ligar o computador ontem, para não passar raiva. Preferi deixar a coisa para hoje mesmo, que está um sol de rachar e ninguém falou uma palavra sobre temporais ou coisa parecida... Olha que você acabar de digitar um texto e a rede cair é quase motivo para suicídio!... Talvez comece hoje e termine amanhã, porque perdi boa parte da manhã com assuntos domésticos (é i-na-cre-di-tá-vel o tempo que este tipo de coisa leva!) e à tarde a minha filha vem aqui, então... Mas vamos começar de uma vez, antes que alguém toque a campainha, apareça algum vizinho querendo papo ou o souflé comece a cheirar a queimado...

Estava começando a fritar o arroz para o almoço quando o interfone tocou; um toque longo, insolente, irritante. Segurei a panela acima do fogo e fiquei escutando por alguns segundos, soltando um suspiro de desgosto. O toque se repetiu, mais abusado ainda.
-Nossa!...- exclamei em voz alta -Parece que vai tirar o pai da forca! Calma aí!...
Larguei a panela em cima da pia e atendi, já querendo xingar quem estava no portão interrompendo meus afazeres.
-Oi, tia!...- exclamou uma voz infantil, ardida e imperativa. -Ô, tia, não tem nada aí para me dar?.
Resfoleguei de novo e me armei de paciência. Jà tinha visto a queles pivetes correndo e gritando pelo meio da rua enquanto arrumava a sala mais cedo, e não tinham cara de bem educados.
- Hoje não tem, filho.- lhe respondi, com meu tom mais polido e firme.
-Mas, não tem nada para me ajudar?.- insistiu a voz, com ar de ceticismo, o que me deixou ainda mais irritada.
Dei uma olhadela na panela e na boca do fogão acessa. A água fervia em desespero na caneca ao lado. Será que o moleque estava surdo? Teria de ver a água evaporar antes de conseguir terminar aquela conversa?.
-Hoje não tenho, filho.- repeti com mais firmeza.
-Mas nem um pedaço de pão, tia?...- exclamou ele, insolente -Tô com fome!.
-Hoje não tenho, tá bom?- disse eu, como se, na verdade, estivesse xingando-o ou dando-lhe um tabefe. Agora sim, fim de papo.
Então, com uma voz surpreendentemente dócil e inocente, ele me respondeu:
-Tá bom.- e desligou o interfone.
Aliviada, coloquei o aparelho no gancho y voltei ao meu almoço, botando a panela no fogo e mexendo com força o alho e o arroz, jogando um punhado de sal e desligando a jarra com água antes que virasse uma nuvem e fugisse pela janela aberta... Porém, no instante em que ia despejá-la na xícara, parei, e a lembrança do garoto no portão veio à minha mente. Mas não foi seu rosto o que apareceu diante de mim e sim a sua voz dizendo: "Tô com fome!" e em seguida, tão resignada e gentil: "Tá bom."... Num impulso instantâneo, larguei a xícara e a caneca e fui rapidamente até o balcão onde guardamos os mantimentos. Lembrei que no dia anterior havia despejado umas bolachas de mel com chocolate no vidro e que sobraram algumas no saco. Abri a porta, me abaixei e apanhei o restante do pacote, corri até o portão, torcendo para que os moleques estivessem por ali ainda, o abri e saí à rua. Um deles já estava no portão da casa da outra calçada, e o outro se afastava correndo e piruetando em direção à próxima, depois das datas vazias. O menino virou, como se soubesse que eu estava ali, e seu rosto moreno e magro, dentuço e de grandes olhos escuros iluminou-se com um sorriso. Girou num pulo e veio saltitando em minha direção. Eu, completamente sem graça -não sei bem por quê- estendi o pacote de bolachas para ele e sorri.
-Encontrei estas bolachas que sobraram de ontem. Nâo são muitas, mas...- gaguejei, e acrescentei, tomada agora por uma curiosa e leve sensação de felicidade: -Putz, mas você corre rápido, hein? Já estava quase na esquina!...
O menino soltou uma risadinha e apanhou as bolachas, seus olhos pretos brilhando sob as sobrancelhas despenteadas.
-Obrigado, tia!...- ajuntou, com aquele mesmo tom de voz de antes: -adoro bolacha de chocolate.- deu meia volta e saiu em disparada em direção ao outro menino, que já se aproximava.
Eu sorri, vendo-os mergulhar, felizes, no pacote de bolachas, e entrei em casa para terminar meu arroz. No entanto, tinha a sensação de que aquele episódio já tinha me alimentado o suficiente para o resto do dia. Logo, cortei o alface, a rúcula e o repolho, ralei a cenoura, piquei a cebolinha e o coentro, descasquei e fatiei o tomate e pus as bacias verdes e coloridas na mesa. Mexi as coxinhas de frango, refoguei o brócolis na manteiga e no alho e o tampei para que não esfriasse, dei uma espiada no arroz, macio e cheiroso, e coloquei o suco na mesa... Tudo isto com aquele sorriso de gratidão e serena felicidade estampado na face, o coração leve e um quê de asas de anjo adejando pela cozinha iluminada... E de repente pensei: "Como é bom o arrependimento! Quanta coisa boa nasce dele!"... E me lembrei de todas as vezes em que, num impulso além da razão, da comodidade, da segurança, me arrependi de uma atitiude e decidi ajudar alguém, me aproximar, escutar, abraçar, falar, doar ao invés de me fechar e deixar algém com a mão estendida. E como foi boa a sensação que se seguiu a minha mudança! Como ficou claro o poder que possuímos de decidir, de reconsiderar, de tomar outras atitudes, de mudar de opinião para ajudar outros com gestos que, às vezes, para nós, não significam grande coisa e nos custam quase nada, apenas alguns minutos de boa vontade.
Se arrepender é abrir novas portas, optar por outros caminhos, oferecer chances, é voltar atrás sem retroceder. Se é verdade que o nosso coração tem dois lados -um bom e outro mau- que temos a chance a cada momento de escolher qual destes dois lados deve agir e que possuímos a consciência do que é certo ou errado, então, as nossas oportunidades de fazer o bem são infinitas, mesmo que comecemos o dia errando, pois sempre teremos a chance de de nos redimir e nos renovar no segundo em que nos arrependermos... Às vezes, a ação movida pelo arrependimento é mais verdadeira ainda do que aquela que nasceu da bondade natural, pois vencer o equívoco e transformar o coração pode ser mais corajoso e meritório do que agir com retidão de imediato... Pois é dos pecadores de quem Deus está mais perto.

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