quinta-feira, 25 de junho de 2009

O que me toca?

Nada melhor do que retomar velhos e saudáveis hábitos abandonados por inúmeras e não muito válidas razões: falta de tempo, frío, calor, chuva, tênis ruins, falta de dinheiro, estresse, demasiado trabalho, tristeza, desânimo, côlicas e todas essas coisas que inventamos para estragar um pouquinho mais a nossa vida a cada dia, achando que merecemos, que não temos jeito, que a felicidade não é para nós, que é um sonho impossível de atingir a não ser que tenhamos dinheiro, fama, poder ou qualquer outra coisa que nos destaque da multidão, porque alguém comum não é feliz, somente existe. Respira, come, caminha, trabalha -normalmente em algo que detesta- ganha salário miserável, não tem sonhos, não se diverte, não tem expectativas, não é amado... Mas quem raios foi que estabeleceu essas regras? E -pior ainda- por que tanta gente acredita nelas e as segue como se fossem algum tipo de dogma sagrado e sem espaço para discussão? Por que vivemos desprezando os presentes que Deus coloca em nosso caminho como se não fossem para nós, como se Ele tivesse errado o endereço ou estivesse de brincadeira conosco, e os deixamos passar batidos achando que isto não tem a menor importância? Por que insistimos em não enxergar as pessoas e os acontecimentos preciosos à nossa volta? Por que nos negamos a perceber e aceitar a quantidade inimaginável de milagres que presenciamos e que fariam da nossa existência um constante e maravilhoso aprendizado, se não estivéssemos sempre achando que, na verdade, milagres não existem? Mas, por que estamos tão convencidos disto? Será porque quando acontecem os céus não se abrem, a terra não treme nem somos tomados por transes sobrenaturais, não nos aparecem anjos nem temos visões arrebatadoras?... Mas a verdade é que os milagres quase nunca são feitos espantosos que deixam todo mundo de queixo caido. Eles são mais feitos de detalhes, gestos, encontros às vezes brevíssimos, são palavras, olhares, fatos aparentemente banais, mas que sob a superfície singela e casual escondem lições preciosas que podem nos tornar mais sábios, compassivos e felizes. E são exlcusivamente para nós, total e caprichadamente personalizados... E não é isto que almejamos? Então, por que não retomar aqueles velhos e saudáveis hábitos que nos fazem tão bem e que são os que geram estes milagres, como: conversar, observar, caminhar, respirar fundo o ar da manhã, sorrir, dizer um elogio, dar um abraço, apoiar com um olhar, escutar com paciência, sentir o sabor da sopa, brincar feito criança, abrir o coração e perdoar o inimigo, acariciar o cachorro, dizer "obrigado", "bom dia", "por favor", "precisa de ajuda?", olhar os desenhos que as nuvens fazem, apreciar o pôr-de-sol... Velhos e básicos hábitos que nos aproximam dos outros, que nos tornam cálidos e acolhedores, que nos dão luz interior, sabedoria, felicidade, equilíbrio, que nos tornam sensíveis e nos tiram do nosso pequeno e mesquinho universo pessoal para a percepção da história -nossa e daqueles que nos rodeiam- da nossa ligação com os outros, da importância da nossa participação no sucesso ou fracasso de cada dia, de cada capítulo que escrevemos; da presença constante do divino em cada passo que damos, atrás de cada porta que abrimos, em cada encontro que vivemos... Velhos e bons hábitos que nunca deveríamos abandonar, mesmo estando velhos e atarefados, cansados, doentes, desanimados, sem dinheiro. Pois nada é desculpa suficiente para não sermos felizes, ou ao menos, para não tentar sê-lo.
E depois deste prólogo que mais parece a própria crônica, aqui vai ela:
"É o que me toca?"... Pois se é assim, como diz a minha sábia manicure japonesa, então vamos levar a coisa adiante da melhor forma possível, porque agindo desta forma, grande parte do negativismo de uma situação pode ser eliminado. Por que resistir ao inevitável? Por que rebelar-se e praguejar? Por que fugir do que deve ser feito? Por que não aceitar que é isto e não aquilo o que nos cabe nesta história? Como sabemos se nesta aparente provação não se esconde um tesouro de paz e sabedoria?... Por que sermos infelizes se existe uma chance, por menor que seja, de sermos felizes em qualquer situação?... Isto se tornou uma regra em minha vida, uma resolução que nunca deve ser quebrada, um propósito do qual jamais devo desistir. Devo isto à minha amiga Marilene (minha terapeuta por quase dez anos) e a atitude de aceitação positiva diante das dificuldades à minha manicure japonesa que, enquanto lixava as minhas unhas, cortava as cutículas e passava o esmalte, me contou a anedota de "O que me toca"; uma lição impagável de como viver a vida segundo ela se nos apresenta ao invés de travar um combate à morte com os acontecimentos.
Darcy e a sua irmã Akiko têm um salão de beleza numa rua lateral da avenida principal da cidade, uma casa acolhedora e confortável onde as clientes são recebidas feito amigas de longa data -o que na verdade são- as conversas são sempre positivas e a gente pode demorar para pagar sem correr o risco de ligações indiscretas ou juros exorbitantes. Enfim, às vezes você sente que não vai lá só para cortar ou tingir os cabelos, ou massagear os pés, e sim para encontrar carinho e atenção -não só profissional- ouvidos pacientes e conselhos sábios e equilibrados. Curiosamente, no salão da Kô não correm fofocas, mas conversas instrutivas e bem-humoradas e um tremendo calor humano que acabou por tornar-nos uma verdadeira família. Eu sempre presto muita atenção no que elas falam, pois tenho certeza de que aprenderei alguma coisa que enriquecerá a minha vida, como foi o caso com a história do "O que me toca".
Darcy contou que, certa vez, uns parentes de outra cidade telefonaram para avisar que viriam fazer uma visita à parte da família que mora aqui, porém, estes eram conhecidos como pessoas difíceis, exigentes e cheias de caprichos e vontades que ninguém gostava de aturar, pois tinham um nivel de vida melhor do que os outros e por isso achavam nada mais justo do que serem recebidos e tratados nestes padrões. Quando anunciaram seu desejo de vir visitar os parentes, uma verdadeira luta começou, porém não para saber quem ficaria com eles e sim para empurrá-los de uma casa a outra com mil desculpas que impediam a sua hospedagem, não importava quão breve ela fosse... E claro, como as duas irmãs eram solteiras, tinham empregada e moravam só com os pais -parentes mais próximos dos visitantes- num apartamento de bom tamanho, a tarefa de recebê-los e pajeá-los recaiu nelas por unanimidade e sem direito a discussão.
-Imagina só o nosso desgosto!- exclamou Darcy -A última coisa que precisávamos era ter que passar o dia fazendo sala para parentes chatos!...
E ficaram aborrecidas mesmo, mas como tinham assumido o compromisso perante a família, resignaram-se e começaram a fazer os preparativos para a chegada dos indesejáveis personagens. Curiosamente, enquanto mantiveram esta atitude negativa e revoltada, parecia que tudo dava errado e não conseguiam chegar a um acordo sensato sobre nada, todo mundo andava pela casa de cara amarrada, reclamando do trabalho, das mudanças, das despesas, injuriados por ter que arcar com o estresse material e emocional de atender aos caprichos desta família tão pouco oportuna... E assim foram as coisas, aos trancos e barrancos, dificultando qualquer processo ou plano de fazer tudo funcionar, até que um dia, enquanto tentava sem sucesso dispor mais duas camas no pequeno quarto de hóspedes, Darcy parou, ofegante e prestes a abandonar seu inútil empenho, e se perguntou que raios estava fazendo...
-De repente me dei conta de que estava gastando uma quantidade imensa de energia e criatividade me deixando levar pelo desgosto e a rebeldia contra uma situação da qual não tinha como escapar!...- disse, espantada -Eu e todos em casa havíamos passado a semana toda reclamando, fazendo as coisas de má vontade, lutando contra empecilhos banais que viravam verdadeiros dramas, protelando decisões e tentando arrumar roteiros interessantes para nossos visitantes como se estivéssemos prestes a enfrentar o próprio furacão Katrina bem no nosso apartamento!.
Foi então que a frase veio à cabeça de Darcy: "É o que nos toca? É o que cabe a nós fazer neste dia, por estas pessoas?... Então, vamos fazê-lo da melhor forma possível para que eles se sintam bem recebidos e todos passemos momentos agradáveis ao invés de horas de tensão e desgosto que não vão ser úteis para ninguém. De que dianta resistir, praguejar, fazer de má vontade se não há como fugir desta responsabilidade?... É o que nos toca? Então vamos fazê-lo e bem feito, do jeito que Jesus gosta." (as irmãs são muito religiosas)... E como num passe de mágica, tudo mudou. Os entraves desapareceram junto com as caras feias e a falta de espaço nos quartos, o cardápio da semana surgiu como por encanto e até a máquina de lavar voltou a funcionar ao mesmo tempo que uma inesperada boa-vontade e disposição tomou conta da empregada. E Assim, neste estado de espírito, os parentes que ninguém queria foram recebidos alegremente pelas irmãs, confortavelmente acomodados, atendidos seus caprichos e gentilmente ouvidas as suas conversas exibidas de gente rica. A semana passou como que voando e, quando se despediram, os convidados agradeceram de coração o tratamento alegre e gentil de que foram objeto, e as irmãs sentiram-se realizadas e felizes porque haviam levado levado à cabo com sucesso a sua grande e importante missão: aceitar as circunstâncias que a vida nos coloca a cada dia para tirar delas, com boa vontade e criatividade, as lições que nos trazem.
Uma vez aprendido isto, não foi tão difícil para elas, mais tarde, enfrentar a doença dos pais, que trouxe mais despesas e preocupações, enfermeiras e exigentes cuidados com remédios, tratamentos, fraldas, bahos e muita paciência para com a crescente senilidade daqueles que por tantos anos cuidaram de todos eles e agora tornaram-se frágeis e dependentes feito crianças... Mais uma vez, a frase veio em seu auxílio: "É o que nos cabe? Somos nos que teremos que cuidar dos nossos pais, apesar de termos uma família tão numerosa? É o que a vida colocou diante de nós neste dia? Então vamos fazê-lo, porque é o que tem de ser feito e porque é a nós que coube esta tarefa"... E vencendo a mágoa inicial pelo pouco caso do resto da família, o receio da própria incapacidade e da parte financeira e os problemas de horários, férias, finais de semana de casamentos, festas de quinze anos e formaturas, estão conseguindo lidar com a situação cheias de disposição e fé, com bom humor e uma dose inesgotável de compaixão e paciência que não as impede de trabalhar, ir às compras, receber as suas amizades, curtir com os sobrinhos e, principalmente, receber as suas clientes com a mesma alegria e calor de sempre, prontas para ouvir sobre as nossas confidências e dar seus sábios conselhos, como esta pequena história que a Darcy me contou e que provocou mudanças mais do que surpreendentes na minha maneira de encarar certos fatos e agir diante do que a vida coloca em meu caminho a cada dia, a cada hora, a cada minuto, e que é o que faz dela, com certeza, algo que vale a pena de ser experimentado e compartilhado.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Lugares mágicos

No penúltimo ensaio com as meninas do ballet da Fundação Cultural, que irão se apresentar no evento "Dança Solidária" neste sábado no teatro Marista, me aconteceu uma daquelas coisas que chamo de "agrado de pai" e que só Deus é capaz de arquitetar para me manter com o astral lá em cima... Estava me despedindo da professora quando, dentre o bolo de mães ansiosas e falantes que aguardavam as suas filhas, se aproximou uma mais nova, loira e de expressão estranhamente timida e ao mesmo tempo decidida. Parou do meu lado e de repente me segurou pelo braço e me pediu para esperar a que ela perguntasse alguma coisa para a professora. Eu aguardei, curiosa, pois não a conhecia, e já meio preocupada com meu horário de almoço, que voava sem piedade. Quando a mulher terminou seu assunto com a professora, virou-se para mim e, tomando fôlego e cheia de uma repentina emoção disse: "Eu adoro as suas crônicas! Toda quarta fico procurando no Caderno 2 para ver se é uma das suas!"... Eu fiquei totalmente surpresa, já que esse tipo de comentário era a última coisa que esperava escutar naquele momento, e respondi com um daqueles sorrisinhos amarelos que a gente esboça quando perde completa e vergonhosamente o rebolado. A mulher, sem dar-se por achada, continuou agarrando meu braço e falando: "Sabe aquela crônica sobre as casas? Eu fiquei tão emocionada ao lê-la que a recortei e a tenho guardada em minha agenda! O que você descreve é exatamente o que eu estou vivendo!... Você tem essa qualidade de chegar fundo no coração da gente e fazer com que nos emocionemos e voltemos a reparar e sentir coisas que haviamos esquecido... Obrigada!"... Nem dá para descrever o jeito que fiquei, né?... Estava quase começando a chorar também! Sobretudo porque até aquela hora meu día não tinha sido lá aquelas coisas. Mas, para variar, Deus estava colocando um dos seus presentes em meu caminho e motivando-me para continuar... A mulher -de quem nem tive tempo de perguntar o nome- continuou a falar e a elogiar (bem na frente de todo mundo, para meu completo embaraço) e disse que também queria recortar e guardar a minha primeira crônica, "Pipas esquecidas", mas que havia perdido a folha. Então, eu lhe falei do blog -que ela já tinha visto- e a convidei a visitá-lo, pois aquela crônica estava ali. Agradecida e ainda tomada por aquela tremenda emoção, ela se despediu e foi embora com a sua filha -uma das meninas que estivera ensaiando comigo- e eu fiquei parada ali, sorrindo feito uma boba e sentindo, mais uma vez, que meu dia tinha sido salvo por um daqueles pequenos milagres que acontecem a todo momento e que nos impulsionam a continuar lutando as nossas batalhas e acreditando em nossos sonhos... Nâo foi demais? Sinceramente, Deus é 10 comigo. E é assim o tempo todo!.
Bom, e após esta pequena anedota -que está parecendo uma crônica, mas não é- aqui vai a desta semana.

O velho galpão com os dois portões abertos e a silhueta de mesas, pneus e ferramentas penduradas nas paredes se destacando contra a luz dos raios do sol da manhã que entram pelo corredor formado entre os dois portões. Poeira branca dançando no ar frio e transparente... O jardim do átrio da igreja do convento das carmelitas de Pedro de Valdivia, em Santiago, com seu poço de pedra esverdeada e o sarrilho de metal trabalhado, os silenciosos e penumbrosos locutórios com os quadros de santos da ordem nas paredes nuas e a janela de grades quadriculadas com a cortina preta fechada, que esconde os mistérios da clausura... A cúpula redonda de metal na entrada do parque Juan XXIII, na qual se enrosca aquela trepadeira de delicadas flores lilás, subindo pelos ferros até formar um teto móvel e perfumado... O antigo portáo de madeira da casa do velho casal japonês, sempre fechado e silencioso, grossas ripas de madeira acinzentada firmemente unidas por tiras de metal enferrujado e emolduradas por um batente em sobre-relevo terminado em ojiva... O pátio do convento de São Francisco, na Alameda, com a sua profussão de árvores, flores e pássaros, a sua fonte no centro, onde todas as veredas se encontram, e seu chafariz sempre melodioso, no qual as aves descem para beber ou tomar banho. Corredores com grandes arcadas, portões de metal que resguardam as habitações dos frades, salas com chão de pedra que expõem os tesouros do museu da congregação; igreja da época da colônia, de dimensões impressionantes e clima escuro e assustador apesar do vermelho vivo dos seus muros externos, oratórios com estátuas de roupa e cabelo, olhos de vidro cheios de dor ou êxtase, rostos pálidos e brilhantes. E velas, infinidade de velas aos pés de cada um delas, impregnando o ar opressivo com seu cheiro, que se mistura ao das flores que enfeitam o altar-mor e os das capelas laterais... O jardim cheio de esculturas brancas da Casa de Cultura de Ñuñoa, a grama sempre verde e as suas veredas de terra branca limpas e sombreadas pelas árvores centenárias, algumas das quais já atravessaram as grades externas e se alastram pela calçada, mesmo feridas pelos barrotes de metal... A fazenda de Cholqui com as suas cercas de tronco e o riacho rodeado de chorões, a cozinha de pedra, as réstias de alho, cebola e ervas penduradas das paredes enegrecidas pela fuligem do fogão de chão. A casinha de telhado vermelho que acreditávamos ser a da Branca de Neve na colina defronte à estrada da fazenda. Muros amarelos, persianas verdes, malvas no jardim da escolinha rural, sacas de batatas e cebolas na despensa escura e empoeirada, tonéis de azeite, sal e açúcar, vidros de conservas em longas prateleiras, salames e pernis pendurados das vigas do teto; cavalos, vacas, cachorros, parreiras, cadeiras de palha nos alpendres decorados com vasos e trepadeiras, quartos de paredes altas e janelas compridas, banheira de latão branco com pés de gato... O palco do teatro, vazio e silencioso, porém vibrante de lembranças e emoções, de gestos, palavras e músicas, da movimentação febril de cada uma das apresentações que aconteceram nele, holofotes e cortinas como olhos e mãos amigas, poltronas perfeitamente enfileiradas aguardando seu público, cujos aplausos parecem sempre ecoar na penumbra...
Estes são lugares mágicos -alguns dos meus lugares mágicos- insubstituíveis, sempre perfeitos e intocados pelo tempo, sempre vivos e eternamente renovados. Lugares que despertam meus melhores sentimentos e me dão novas forças para continuar a lutar e aceitar o desafio de encontrar novos espaços como estes em cada etapa da minha vida, quadros que impregnem a minha existência de calor e emoção, de conforto, consolo, segurança e paz, pois tenho certeza de que eles são lugares nos quais Deus deixou uma mensagem especial para mim, lugares dos quais Ele fez um refúgio ao qual sempre poderei retornar, mesmo que seja só na minha mente, para reencontrar o melhor de mim, a minha essência, a minha inocência, a minha liberdade, o milagre da existência sobrenatural que transcorre paralela à real. Estes lugares especiais são feito portos seguros em meio às tempestades da vida, mananciais que nos oferecem força e fé e que nunca irão nos faltar, desde que não nos esqueçamos deles e voltemos ao seu aconchego toda vez que for preciso, já que é para isto que eles existem.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

"Bar e Mercearia Santa Clara"

É muito bom ter não dois, mas quatro dias de folga na semana, apesar das frustrações e dissabores que sofro nos outros três dias e da falta de dinheiro no fim do mês. Acredito que a única coisa que está me segurando neste emprego -apesar de amar profundamente o trabalho em si- é este fato prodigioso que, com certeza, não aconteceria em qualquer outro emprego. Agora, se pudesse ganhar um salário decente só escrevendo, então sim largaria aquilo e me dedicaria a minha paixão mais verdadeira os sete dias da semana. Porque fora me dar dinheiro, escrever seria -e é, de qualquer forma- a melhor das terapias... Não seria fabuloso?... Bom, sonhar ainda é de graça, né?...
E aqui vai a desta semana, espero que a desfrutem.

É muito engraçado ver como os clientes do "Bar e Mercearia Santa Clara", com o passar do tempo, acabaram por tomar conta do local... O dono é o seu Pedrinho, um homenzinho quase careca e baixinho, sempre de sandálias e camisa larga por cima da calça, sobrancelhas grosas e grandes olhos de pálpebras caídas, e que já venceu um câncer, que fica quase sempre na porta esquerda da sua loja, a da mercearia, atrás do balcão vendendo pão, refrigerante, salgadinhos, leite e ovos para as suas freguesas e para as crianças das redondezas, atendendo-as diligentemente com aquele jeitinho sorridente e tímido que é a sua marca registrada. Jà os homens que freqüentam a porta da direita, a do bar, onde está a mesa de sinuca e uma outra menor com algumas cadeiras para jogar baralho, começam a chegar aos poucos, lá pelas seis da tarde, e após cumprimentar efusivamente seu Pedrinho, que responde com monossílabos e tapinhas no ombro, começam a arrumar as mesas, banquetas, cadeiras e cinzeiros como se estivessem na sala das suas próprias casas. Falando alto, fazendo piadas duvidosas e pegando as cervejas do freezer, vão se apossando do local, da calçada e da mesa de sinuca, onde ajeitam com destreza as bolas coloridas no centro e esfregam giz nos tacos lustrosos pelo uso. Alguns sentam para beber uma cerveja na calçada, embaixo da enorme árvore que cresce diante do bar, ou encostam um banquinho na parede para fumar e botar conversa fora. Uns vêm de carro, outros de bicicleta, e os que moram perto, chegam a pé, de banho tomado e roupa limpa, meio caminhando meio dançando, como quem vai a uma festa, cheios de expectativas diante deste novo encontro com os velhos colegas... Enquanto o ambiente vai se animando e o céu escurecendo, seu Pedrinho pega um pedaço de arame e tira o canário do galho onde ficou o dia todo, alegrando-o com seus gorjeios, e o leva para dentro, cobrindo a gaiola com um pedaço de pano escuro e depositando-o cuidadosamente nos fundos, onde o barulho e a luz não lhe tirem o sono. Depois, pega uma banqueta e a coloca na porta da mercearia, de frente para onde seus amigos jogam sinuca e baralho, e fica ali, em silêncio, braços cruzados sobre a barriga, pernas abertas e uma expressão de completa beatitude em seu rosto redondo e liso. Mais parece estar contemplando seus filhos se divertindo no parquinho ao invés daquele monte de marmanjos gritando, xingando, bebendo e fazendo piadas obscenas. Ele não precisa se preocupar com nada a não ser desfrutar do entardecer, pois estes seus "filhos" se movimentam com a maior desenvoltura por entre as grades de bebida, o balcão de guloseimas, a pia e a prateleira onde fica o velho rádio; sabem onde ele guarda o giz para os tacos, as vassouras e rodinhos, os copos, os guardanapos e pratos... O lugar não tem segredos para eles pois, se seu Pedrinho os vê como filhos, eles por sua vez o consideram uma espécie de pai sereno e aquiescente e por isso sentem-se totalmente à vontade naquele espaço que, apesar de velho e escuro, cheio de buracos no chão e com um banheiro digno de um conto de terror, tornou-se a recompensa diária e merecida após mais uma jornada de trabalho quase sempre ingrato e mal pago.
Porém, o que realmente me impressionou -e me emocionou- destes fregueses tão bem definidos pelo meu preconceito (cara que gasta seu tempo num bar com certeza não presta) foi a sua atitude ao ficarem sabendo que seu Pedrinho teria que enfrentar uma grave cirurgia e depois várias sessões de quimioterapia para combater um câncer no intestino. ..Isto, claro, em primeiro lugar, significava que o bar permaneceria fechado durante um tempo indeterminado e que eles perderiam seus encontros e a sua diversão. Porém, ao invés de fazerem o que eu esperava como óbvio e começarem a procurar e freqüentar outro estabelecimento decidiram, para meu total desconcerto, se juntar e elaborar um esquema de rodizio, junto com alguns parentes do seu Pedrinho, para manter a mercearia aberta, mas não com o intuito de não perderem a sua folga de fim de tarde, mas para que ele não ficasse sem seu ganha-pão durante aquela época difícil. Foi algo totalmente inesperado e não sei como seu Pedrinho reagiu ao saber a notícia, mas para nós foi emocionante ver toda aquela gente que, após um dia exaustivo de trabalho, se encontrava no bar a abria as portas, lavava o chão, varria a calçada, recebia o caminhão de bebidas, alimentava o canário, arrumava copos e garrafas, acendia as luzes e jogava alguns litros de desinfetante na patente daquele banheiro medonho. Até decidiram aproveitar a ausência do dono para dar uma geral no local e assim surpreendê-lo quando retornasse. Então pudemos vê-los no fim de semana arrastando armários, caixas, cadeiras e todo tipo de objetos e móveis que estavam escondidos nos fundos do bar para a calçada e em seguida, entrar com mangueira, esfregões, água sanitária e vassouras num mutirão de limpeza que foi da manhã até a noite durante três dias. No fim, fizeram uma vaquinha e compraram umas latas de tinta para dar uma nova mão de cor vermelha e branca nas paredes encardidas e descascadas do local, e até refizeram o velho letreiro: "Bar e Mercearia Santa Clara", que já nem dava mais para ver, e trocaram as lâmpadas que o iluminavam.
Seu Pedrinho demorou a voltar e quando o fez, estava totalmente careca e assustadoramente magro, as roupas esvoaçando sobre su corpo emaciado, os movimentos lentos e meio incertos, mas seu sorriso continuava o mesmo, tímido e gentil apesar das novas rugas que lhe sulcavam o rosto extremamente pálido. Seus olhos já não brilhavam tanto, nublados pela preocupação da incerteza sobre seu futuro, e permanecia mais tempo sentado na banqueta do que atrás do balcão, mas sempre tinha alguém para substitui-lo, para sentar ao seu lado e bater um papo, para trazer-lhe um copo d'água, um café, contar uma nova história ou as novidades do bairro... "Afinal de contas", diziam estes homens, "se ele tantas vezes nos levou até a porta de casa porque estávamos bébados demais para dirigir, ou escutou pacientemente as nossas lamúrias e nos aconselhou, nos apoiou e nos deixou pendurar contas por meses ou não cobrou as cervejas porque sabia que a coisa estava feia, o mínimo que podemos fazer por ele é dar-lhe nosso apoio agora que está fragilizado. Nâo é ele como nosso segundo pai? Nâo somos nos seus filhos do coração?... Pois então..."
E assim, juntos, seu Pedrinho e seus barulhentos e beberrões fregueses, conseguiram passar com fé e união por esta época difícil e incerta, como pais e filhos devem fazer, sem nunca desistir ou fraquejar, sem reclamar nem fugir, até que os dias de tranqüilidade e alegria voltaram...
Eu passo diante do "Bar e Mercearia Santa Clara" todo dia ao voltar do trabalho, e sempre está aquele tumulto de homens gritando, bebendo, jogando sinuca ou truco, às vezes assando um cheiroso churrasquinho, contando piadas e fumando (menos aos domingos, que são sagrados para seu Pedrinho. Nâo há suborno capaz de fazê-lo subir as portas do seu estabelecimento neste dia), todos de chinelo e bermudão, alegres e fanfarrões como crianças que não tivessem passado por muitos maus bocados. Tudo continua o mesmo: eles ainda são os donos do local e seu Pedrinho ainda não se importa com isto... Mas eu mudei bastante a minha opinião sobre aquele "clube do Bolinha" que tanto me incomodava toda vez que passava diante dele. Nâo digo que me juntaria a eles, mas hoje acho que fizeram por merecer esta sagrada algazarra de todo fim de tarde, não importa quão fútil os espalhafatosa possa nos parecer a nós, mulheres. É seu jeito de dizer que ainda há algo de bom nesta vida e que é no "Bar e MerceariaSanta Clara" do seu Pedrinho que ele acontece.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

As peripécias de uma escritora de diários

Acho que esta vai ser a crônica mais longa que já postei, mas quando a encontrei, enquanto percorria as páginas dos meus diários para escolher a desta semana, me pareceu interessante o suficiente como para correr o risco de postá-la, mesmo sendo tão longa. Bom, vocês poderão lê-la por partes e, com certeza, terão leitura para o final de semana!... O que gostei nela foi que talvez tenha mais alguém por aí com uma aventura parecida e ao ler isto, pode ser que se sinta animado a deixar que outras pessoas conheçam seus dons e tirem proveito disso. Na verdade, é algo meio esquisito, sobretudo se tratando de textos privados, mas acho que sabendo escolher ou fazendo pequenas mudanças, dá para compartir as nossas experiências, revelações e conclusões com muita gente, com a perspectiva de todos nós sairmos ganhando... Você tem a estranha porém certa sensação de que o que você faz tem um destino especial, que seus dons poderiam servir para ajudar outros, que o mundo precisa conhecer quem você é e o que tem a oferecer? Então, siga esta intuição! Porém, não espere mudar o mundo ou salvar a raça humana, pois ninguém tem este papel na história, no entanto, cada um de nos possui a sua exclusiva parcela de ação no desenrolar desta história. Ela pode ser maior ou menor, ao nosso redor ou mais longe, isso não importa, o que é vital é que a façamos acontecer. Então, acredite em seu destino e mostre ao mundo seus tesouros!...
Bem então, aqui vai:

Estava me lembrando da época em que comecei a escrever diários, lá pela minha pré-adolescência, influenciada por alguns livros que lera, como "Daddy longlegs", "Papelucho", "O diário de Anne Frank", "Go ask Alice" e os cadernos que Teresinha do menino Jesus escreveu enquanto morou no convento de Lisieux... Não sei por quê saber da vida íntima, dos pensamentos e experiências de outras pessoas sempre me fascinou; era como se esses diários contivessem algum tipo de mensagem especial para aquele que os lesse, como se desde a primeira página tivessem estado destinados a serem conhecidos pelo mundo, comentados, usados como exemplo e inspiração para transformar vidas e ensinar novos caminhos, ou então, para prevenir atitudes que podiam levar à desgraça e até à morte. Com certeza, quem os escreveu não estava imaginando que algum dia alguém, além deles mesmos, poria os olhos neles e, no entanto, os acontecimentos se desenrolaram de tal forma que, por um acaso ou pelas mãos de terceiros, estes cadernos chegaram ao conhecimento público e ocasionaram, na maior parte das vezes, verdadeiras revoluções.
Agora, quando eu comecei a escrever os meus, tive desde o início aquela sensação indefinida de estar sendo levada por algo mais do que a vontade de desabafar em segredo ou algum tipo de intuito futuramente literário. Era uma coisa muito esquisita, uma espécie de imperiosidade, de obrigação, de dever não somente para comigo mesma e a minha sanidade mental e espiritual. Tinha algo a ver com pessoas, outras pessoas lendo meus textos... Eu lutava constantemente contra uma voz interior, por vezes doce e insistente, por vezes cheia de urgência e severidade, que me perseguia o tempo todo ora pedindo, ora mandando, ora obrigando, a escrever estes diários. Tudo bem, eu estava passando por alguns processos bastante interessantes, mas sinceramente, não achava que fossem dignos de serem registrados, e menos ainda para a posteridade... Mas parecia que o papel queria guardá-los, queria ser testemunha do meu amadurecimento, das etapas pelas quais ainda passaria, das minhas experiências e descobertas, das conclusões e infindáveis mudanças que deveria enfrentar... Obediente, mesmo sem compreender o por quê, comecei a escrever religiosamente, registrando tudo que vinha à minha cabeça e relendo-o depois para analisá-lo e tirar conclusões, mas na verdade, não eram textos lá muito interessantes. Mais parecia um treinamento do que algo definitivo que valeria a pena de ser guardado e aproveitado. Assim, escrevi dezenas, centenas de cadernos, a maioria dos quais acabei jogando fora pelos mais diversos motivos, inclusive o de descobrir que meu marido os estava lendo às escondidas para saber se o estava traindo (!). Bom, depois disso, perdi totalmente a vontade e a inspiração para continuar com este trabalho, pois me parecia inútil e até perigoso, dependendo da cabeça de quem inventasse fuçar no que não devia.
Assim, fiquei alguns anos sem escrever, até vir para o Brasil e assistir um filme de Nanni Moretti, um cineasta italiano que fez três filmes baseados em seus diários, o primeiro dos quais fala sobre o câncer que descobriu após centenas de consultas com os mais diversos diagnósticos e que finalmente conseguiu curar, o segundo sobre a chegada do seu primeiro filho e todas as peripécias da gravidez e da paternidade de primeira viagem, e o terceiro, que narra o drama de uma família que perde um filho, baseado na morte do seu próprio irmão... Nâo sei por quê, mas assistir aos filmes e saber que eles tinham sido realizados a partir de seus diários pessoais, mexeu de alguma forma comigo e logo comecei a sentir novamente aquela urgência, aquela sensação de dever não cumprido tomando conta de mim. Tinha vezes em que até sentia que estava traindo algum tipo de plano divino traçado especificamente para mim ao me recusar a levar um diário, mas ao mesmo tempo achava que era presunção demais acreditar que algo do que eu escrevesse poderia fazer alguma diferença na vida de alguém. Este excesso de humildade me paralisava, levando-me a pensar que estava começando a ter delírios sobre meu talento, então, para não ficar totalmente em dívida com este dom que tinha sido me dado de graça nem com esta voz que ecoava sem cessar em minha cabeça, comecei a produzir outro tipo de texto: contos, romances, peças de teatro, coisas que já havia experimentado antes e com as quais me dera bem. Quer dizer, ali também estava implícita uma mensagem, fantasiada, é verdade, mas estava ali; então, de alguma forma, eu estava cumprindo a minha parte do plano!...
Por outro lado, eu tinha perfeita consciência de que, de todos os talentos com que Deus me agraciara, a escrita era o mais forte e enraizado em minha alma e o que me acompanhava fazia mais tempo e com maior fidelidade. Era, sem dúvida, aquele com o qual eu mais me identificava e me sentia realizada e completa, apesar do sucesso que obtinha nas outras áreas nas quais trabalhava, todas relacionadas à arte cênica. Porém, nada se comparava à intimidade, espontaneidade, sinceridade e fluidez que existia entre mim e as palavras escritas. Era quase mágico, instintivo, tão natural e inspirado que às vezes eu própria duvidava que tivesse sido eu quem escrevera alguns dos textos (de fato, em alguns momentos eu tinha essa sensação esquisita e perturbadora de não ser eu quem segurava a caneta) pois mesmo sendo eles bastante imperfeitos e com excesso de lirismo, assim mesmo possuíam algo que meus outros trabalhos não tinham: um quê de verdade que era muito mais tocante do que histórias fictícias, maquiagens, figurinos, músicas ou falas e movimentos de extrema beleza estética.
Também, com o passar do tempo e da prática, acabei por descobrir, não sem desconceto e muita simpatia, que era através da escrita que Deus havia escolhido se comunicar comigo, através das palavras Ele me ensinava, escutava e respondia, guiando-me gentilmente em direção ao mundo e às pessoas para me fazer enxergar e refletir sobre eles e assim desenvolver a compreensão, a paciência e a compaixão pelos meus semelhantes, mas, principalmente, para que eu aprendesse a me colocar no lugar deles e deste modo me tornasse capaz de escrever sobre a vida e a sua infinita diversidade de uma forma que todos pudessem entender e se identificar, sentindo-se assim de alguma maneira consolados, compreendidos e estimulados a continuar lutando, ou a mudar, ou a recomeçar... O curioso era que, apesar da minha prolificidade e dos esforços e sucessos momentâneos como premiações em concursos de conto, a coisa não ia para frente, pois parecia faltar algo que eu não sabia definir, mas que atravancava as minhas ilusões de conseguir algo nessa área. Muitos textos eram bons, estavam bem escritos e eram bastante originais, no entanto, não conseguia fazer com que decolassem, atravessassem as portas de alguma editora e revelassem este talento meu tão caro e importante. Continuava levando os diários, claro, mas em nenhum momento me passou pela cabeça que eles tivessem alguma importância nas minhas ambições literário-humanitárias, por assim dizer. Mas, aos poucos, comecei a notar uma mudança no seu conteúdo, e isto aguçou ainda mais a minha curiosidade com respepito ao seu verdadeiro destino: de repente já não eram mais textos que falavam sobre mim e a minha vida doméstica, profissional ou sentimental. Lentamente, sem que eu percebesse, eles começaram a desenvolver pequenas histórias, a relatar experiências simples, mas de profundos significados. Eram lições escondidas em visões banais, em acontecimentos pequenos, de pessoas comuns com as quais eu encontrava todo dia à caminho do meu trabalho, ou quando ia para a academia. Lentamente, descortinou-se diante de mim um universo repleto de mensagens e lições, de personagens e situações reais que aconteciam bem diante dos meus olhos e das quais, de alguma forma -talvez devido à minha sensibilidade aguçada- eu participava intensamente, fato que me induzia à contemplação e à reflexão, que me levava à uma nova consciência sobre a vida e as pessoas que formavam parte do meu mundo -do mundo de todos- que podia ser compartilhada e que talvez poderia ser de algum proveito para a existência dos outros. O tom dos textos, então, passou a ser o de uma crônica (mas eu não sabia ainda) direcionada a "alguém", além de mim mesma, que teria a chance de aproveitar as lições nelas contidas... E enquanto eu me envolvia mais e mais nesta tarefa, distanciando-me dos meus outros projetos litarários, aquela estranha certeza que nunca me abandonara de que estas páginas tinham um destino já traçado, crescia dentro de mim, fazendo-me amadurecer e rever com novos olhos tudo que já tinha escrito nestes diários. Y durante esta reavaliação percebi, de repente, que eles tinham um imenso potencial humano, que seriam capazes de atingir um leitor e fazê-lo pensar, se identificar e, talvez, até mudar alguma coisa em sua vida... Foi quando tive a idéia de montar "Os textos da rede", uma compliação dos melhores textos numa espécie de livro que pretendia enviar a alguma editora ou então, levar à Fundação Cultural onde trabalho para estudar a sua publicação através da lei da cultura. Todos ficaram muito empolgados com esta possibilidade -até porque eles não faziam idéia de que eu escrevia este tipo de coisa- e prometeram ir atrás de patrocínio para conseguir a edição do livro. Eu não cabia em mim de felicidade, pois estava convencida de que, finalmente, tinha alcançado a minha meta, dando ao meu dom a finalidade desejada, aquele destino que, agora eu tinha certeza, era o objetivo desde o início. Todas as pessoas que conheci -a começar pelo meu professor de espanhol, Roberto Astudillo- e que de alguma forma me incentivaram ou me guiaram pelos caminhos certos até chegar a este resultado, desfilaram diante de mim, e agradeci a cada uma delas pelo papel, grande ou pequeno, que tinham desempenhado nesta história, este caso de amor entre eu e as letras, que parecia ter chego au seu auge...
Porém, mal sabia eu que aquilo era só uma prévia e que, como nas ocasiões anteriores, sairia decepcionada, pois as minhas ambições ainda eram grandes demais... As promessas da Fundação foram esvaecendo com o tempo -como todas as outras, diga-se de passagem- até virarem um esquálido: "Pois é, sinto muito, não deu", e eu voltar à estaca zero, me perguntando, mais uma vez, onde havia errado ou o que estava faltando ainda... Então, apesar da frustração, mas sem desanimar, continuei levando os diários, ainda convencida de que daquele mato sairia coelho e, para não ficar parada, um dia decidi pegar os cadernos mais velhos e corrigi-los, trabalhar os conceitos originais, a ortografia, o estilo, a clareza... Foi -e está sendo- uma experiência e tanto, pois a cada correção surgia um novo texto, claro e ágil, profundo, uma outra crônica amadurecida que me deixava realizada e tranqüila, pois cada vez estava mais certa de que este era o caminho do meu dom, de que estava cumprindo meu destino como escritora e de que estava partilhando com outros experiências que poderiam mudar as suas vidas, assim como a minha foi.
A publicação dos meus trabalhos no jornal é só um início, tenho certeza, mas não quero apressar os acontecimentos. O importante é que eles estão sendo lidos por muitas pessoas -como o blog, agora- e que elas estão sentindo-se identificadas, estimuladas e compreendidas através das minhas palavras. Sinto que chegou o momento, que agora estou pronta para começar o verdadeiro trabalho (aos 52!) Todas as peças se encaixam e consigo enxergar quase a totalidade do quebra-cabeças que foi esta longa e nem sempre fácil jornada, consigo entender muitas coisas que um dia me pareceram frustrantes e injustas, mas que jamais me levaram a desistir, consigo apreciar a sensibilidade -às vezes até meio dolorosa- que desenvolvi, o poder de observação e reflexão, a capacidade de me colocar no lugar dos outros para poder chegar até eles e descrevê-los com justiça e compaixão e dar-lhes esperança e motivação para desejarem ser felizes e continuarem lutando, pois através da minhas crônicas eles podem se dar conta de que alguém sabe que eles existem e de que as suas histórias são importantes e formam parte da história da humanidade, tornando-os de alguma forma imortais. E é por isso que eu estou aqui e faço o que faço, porque saber que existimos para alguém e que as nossas vidas têm algum significado para os outros é a melhor forma de imortalidade que podemos desejar.