segunda-feira, 30 de março de 2009

Não podemos deixar passar

Virei a esquina quase com a mesma energia com que tinha começado a minha caminhada -apesar do calor assustador que já se anunciava logo cedo- e aproveitei para dar uma rápida olhada no relógio: menos de meia hora de casa até a praça; um bom tempo, que faria com que chegasse mais cedo e aproveitasse melhor a manhã... Valera a pena pular da cama assim que o rádio tocou ao invés de ficar lagarteando só porque ainda não caiu a ficha de que as férias acabaram... Animada pela conquista, respirei fundo e atravessei para a calçada onde as árvores ofereciam alguma sombra. Após alguns metros, o vi virando a esquina diante de mim e se aproximando com seu andar algo cambaleante porém firme, cabeça já grisalha levemente inclinada, sacolinha de plástico com a marmita balançando numa mão, calça cinza-azulada, camisa de manga curta azul e sapatos pretos tortos para o lado de fora por causa do seu jeito de andar. Expressão séria, a pele morena sulcada por algumas rugas novas, boca apertada num esgar de preocupação, olhos fixos na calçada... O "homem das injeções", sempre bem-humorado e com mão de anjo para espetar traseiros e braços, era quase o mesmo de quando cheguei à cidade e tive de acudir aos seus talentos para me livrar de uma faringite rebelde que não me permitia nem comer sopa direito... Nos aproximamos, ele sem me perceber, mas quando estávamos para nos cruzar, ele ergueu de repente a cabeça e me viu. Seus olhos intensamente azuis soltaram uma pequena faísca, seus lábios grossos distendiram-se naquele sorriso que eu conhecia tão bem e, não sei por quê, a sua figura de pronto pareceu encher-me de uma inexplicável felicidade. Senti uma absurda vontade de abraçá-lo e dizer-lhe como como tinha sido importante em minha vida, como quando estava doente ele trazia alívio e otimismo para mim, como a sua mão sempre fora delicada e respeitosa, como a sua entrada em minha casa me fazia pensar: "É agora que as coisas vão começar a melhorar!"... Mas sabendo que ele, com certeza, não entenderia a minha atitude e que lhe pareceria, no mínimo, totalmente descabida, engoli a minha euforia e me contentei com brindar-lhe meu mais luminoso sorriso, junto com um "Bom dia!" capaz de derreter uma montanha de granito, tentando que a minha felicidade por encontrá-lo mergulhasse pelos seus olhos e o fizesse sentir o carinho e a gratidão que tomavam conta de mim... Com uma ponta de desconcerto, ele sorriu e me cumprimentou, passando apressado por mim e deixando o rastro da sua loção de barbear no ar, feito um discreto olhar de curiosidade.
Eu continuei a minha caminhada, sorriso bobo estampado na cara, e fui cumprimentando os conhecidos -que, percebi, são muitos mais do que eu pensava- à medida que avançava, inebriada com aquela sensação de intensa felicidade e gratidão pela presença de cada um deles na minha vida, sem importar se era o dono idoso e quase inválido daquele cachorrinho aloprado que perseguia as pombas no quintal, a moça deficiente que aguardava o ônibus da Apae sentada na mureta junto com a mãe, uma mulher seca e encarquilhada feito um galho no inverno; a costureira franzina e sempre com aquele sorriso meio triste, meio tímido; a dona de casa ou o rapaz da oficina, de roupa imunda e cara de perpétuo sono; a velinha que rumava para a academia apoiada em sua bengala ou o empresário de terno e gravata em seu carro de luxo... Percebi que nenhum deles tinha um papel vital ou direto na minha vida; eram apenas encontros diários, feitos de sorrisos e gestos breves, alguns comentários, prestação de serviços, ou simplesmente estavam no mesmo lugar todo dia quando eu passava, mas... como eu gostava de vê-los, de cumprimentá-los, de escutar as suas vozes e me deparar com seus sorrisos em resposta ao meu! Como eu desfrutava o fato de tê-los em minha vida, nem que fosse por aqueles poucos segundos em que os nossos caminhos se cruzavam! Como a sua presença formava parte indivisível da minha rotina! Quanto sentia a sua falta quando não os encontrava e ficava contente quando algum deles me surpreendia aparecendo -ou reaparecendo- para me lembrar que ainda estávamos unidos por um fio poderoso e misterioso que nos outorgava o privilégio de compartilhar alguns instantes diariamente e, talvez, aprender alguma coisa uns dos outros!... Sentia-me amiga e confidente até daqueles com quem nunca havia falado, desconhecidos que contavam seus segredos através das suas roupas, suas expressões, seus olhares, seu jeito de caminhar, suas bolsas, sacolas, sapatos e cabelos, seu perfume, suas mãos e pés. Pessoas que viviam as suas vidas, assim como eu, e que se alegravam com seus sucessos ou se entristeciam com seus fracassos; gente pequena, comum, anônima e, ao mesmo tempo -e talvez assim como eu era para eles- tão importante para meu dia-a-dia.
Chegando em casa, e ainda tomada por estes pensamentos, tive de parar por alguns momentos no jardim da frente e respirar fundo para assimilar o acontecido. Dei uma boa olhada em volta e, apoiando uma mão no peito, murmurei uma pequena prece de agradecimento por esta revelação, por esta consciência tão clara e estupenda da humanidade que me rodeia e forma parte de mim, mesmo sem sabê-lo. Sempre valorizei e desfrutei de todos os encontros que Deus coloca em meu caminho, interpretando-os e tirando o máximo deles, mas hoje eles me apareceram em toda a sua importância e beleza, toda a transcendência e ligação que possuem com a minha própria existência, toda a felicidade, simples e sincera, com que podem contribuir para a melhoria da minha vida, das minhas ações e pensamentos, das minhas intenções, da minha compaixão e sabedoria...
Encontros são, definitivamente, mágicos, sagrados, perfeitos, instantes cósmicos e divinos que não podemos deixar passar, pois são alguns dos melhores presentes que podemos receber.

segunda-feira, 23 de março de 2009

Pequenas coisas

Ainda sem saber o que será da minha vida profissional -no sentido de horários e turmas, o que já é suficiente para me deixar de cabelo em pé- o que me resta é apegar-me ao que é concreto e real, que não merece nem provoca dúvidas ou desgostos: escrever. Acho que esta é a minha única certeza absoluta, a mais forte e importante, sobretudo porque está funcionando. Checando meus contadores de visitas (estes graças à diligência e e eficiência da minha irmã) vejo que tem gente de uns lugares que jamais ouvi falar lendo as minhas crônicas e outras de lugares que não esperava, como Rio de Janeiro ou Pernambuco... Acreditem, ver esses nomes naquela listinha é uma das melhores sensações do mundo!... Espero que ela continue a crescer e que as pessoas se sintam de alguma forma tocadas ou inspiradas, consoladas ou identificadas com meus textos. O mundo está indo rápido demais, regido em grande parte por ambições e projetos inconmensuráveis, e todos estamos começando a nos esquecer dos detalhes, das coisas simples -mesmo que soe tão manjado- da nossa humanidade e dos presentes que Deus coloca a cada passo em nosso dia-a-dia. Nâo damos mais importância nem valor a estas pequenas coisas que, na verdade, são os alicerces da nossa existência, dos nossos planos e sonhos, das nossas ações e intenções. Não podemos contar as gotas de água do oceano ou os grãos de areia de um deserto, mas sabemos -ao nos aproximar ou pegar na mão- que é disto que estes gigantes são feitos e que tudo, absolutamente tudo que existe e acontece funciona do mesmo jeito. Cada respiração é mais um segundo de vida e ela é feita de infinitas respirações. É este décimo de segundo, quando o ar entra em nossos pulmões e dá impulso às batidas do coração, o que nos mantém vivos por anos e anos... Tem detalhe mais importante do que este?.

"Me surpreendo constantemente com os pequenos milagres que cercam a nossa existência e que nós, em nossa absurda e tirânica azáfama, deixamos passar sem sequer perceber. O que é preciso, por exemplo, para dar um novo impulso a uma vida que está ficando gradativamente estagnada, vazia? O que é preciso para devolver-lhe a alegria, a inspiração, a coragem? Qual a mágica que nos acorda num instante -mesmo após um longo processo de revelação e raiva- da nossa letargia espiritual e emocional e nos empurra para uma atitude positiva? Qual o motivo para continuarmos vivos, cumprindo com as nossas obrigações e prazeres, com a nossa missão?... Pois não é, como poderia se pensar, ficarmos ricos ou famosos, adquirir poder, executar alguma grande obra ou feito, mudar as regras do mundo ou sequer dominar coisas extraordinárias. Olho à minha volta e vejo as pessoas se transformando e dando um novo fôlego às suas vidas pelos motivos mais desconcertantes e às vezes aparentemente banais: um novo amigo, algum modesto projeto que deu certo, uma participação nalguma instituição de voluntariado (nem que seja para ficar sentado junto a um doente ao qual ninguém visita), um ato anônimo de solidariedade, o engajamento em alguma campanha pelo bem-estar dos seus semelhantes, uma manifestação de rua... E ainda por coisas mais desconcertantes e corriqueiras: um pé d'água no meio de uma tarde abafada, uma festa no final de semana, o sucesso de uma receita nova no almoço de domingo, uns quilos a menos, um telefonema, um sorriso revelador no meio do salão... Na verdade, é com pouca coisa que a nossa alma se contenta e é capaz de dar um novo impulso à vida, tornando-a mais leve e disposta ao amor, à caridade, ao riso, à esperança. Nâo precisamos dar ao outro dinheiro, poder, popularidade ou qualquer outra coisa impressionante -e nem nós precisamos disto- mas basta um sorriso sincero quando cruzamos com ele, um afago na hora de dor, uma palavra de apoio, de compreensão, de incentivo, a nossa amizade verdadeira e desinteressada. A felicidade vem de uma atitude perseverante e caridosa, que oferece pequenas doses de amor de uma forma constante e fiel, sem distinção, como um oceano que é feito de minúsculas gotas que, ao se juntarem, formam essa imensidão azul e poderosa. É preciso atentar para os pequenos milagres que nos tocam a cada passo, vindos de todos os lugares, e pessoas, e perceber quanta felicidade eles nos proporcionam, mesmo na sua aparente insignificância. Porque é a soma deles que constitui a nossa felicidade completa. Por que procurar a felicidade e a razão para viver na grandeza de coisas quase impossíveis quando sabemos e experimentamos que é nas pequenas coisas onde reside a nossa mais profunda alegria e realização, o nosso incentivo mais poderoso para chegar mais e mais alto?...
Nâo desprezo a grandeza e as suas manifestações -mesmo se ela é reservada somente para uns poucos- mas acredito que ela deve estar construida sobre as pequenas coisas, sobre os detalhes, sobre a verdadeira percepção das sutilezas de Deus. Não existe nada, por maior que seja, que não esteja consituído por células microscópicas. Não se pode enxergar a verdade do todo se não se tem a consciência das suas infinitas e minúsculas partes.

segunda-feira, 16 de março de 2009

Professores

Acho que esta será a crônica mais comprida que já postei, mas, esta é justamente a grande e mais importante diferença que existe entre escrever aqui e enviar textos para o jornal. No jornal aceitam até 50 linhas enquanto no blog, a gente não tem limites para expressar-se, tanto em quantidade como em qualidade. É muito difícil para mim ter que estar reduzindo meus textos -o que não é em absoluto meu forte- pois acho que tudo que escrevi é para ser publicado e lido, e sempre preciso escolher os mais curtos ou então me segurar para não desenvolver ao máximo um tema quando se trata de enviar crônicas para o jornal, o que me deixa bastante frustrada. Antigamente a coluna de crônicas tinha bem mais espaço (acho que as 50 linhas mesmo) mas ultimamente este é cada vez menor, não sei por quê, e nem mais pubicam a foto do autor do texto... Acho que vou ter de me especializar em hai-kais daqui a pouco!... Mas, de qualquer jeito, é uma oportunidade enorme para divulgar meus trabalhos, pois sei que a Folha tem grande alcance regional e tenho a sorte e a honra de que meu nome seja o que mais apareceu nesta coluna até agora, o que significa que meus textos deveme ter algo de bom, né?, algo que as pessoas gostam e querem continuar lendo... Então, cá vamos nós, mais uma vez, e hoje vou abusar da paciência dos meus leitores. Mas, se começarem a ficar com dor de cabeça, podem dividir a leitura em capítulos, ok?. (A coisa é longa, como podem ver! E ainda tem mais dois partes!)...

Vermelho. A sua imagem esbelta e elegante, com aquele ar em que se misturavam a severidade e a extrema polidez e suavidade, a eficiência e o equilíbrio, está invariavelmente associada a esta cor, pois ela sempre estava de uma ou outra forma presente em algum detalhe da sua indumentária. Nâo consigo mais lembrar do seu nome -apesar dela ter sido a minha professora de inglês durante dois anos no segundo grau- mas a sua fisionomia aparece nitida em minha mente: cabelos pretíssimos e sempre perfeitamente arrumados, sobrancelhas grossas e bem definidas, lábios finos sempre pintados de vermelho, olhos escuros e severos destacando-se no rosto fino, maquiagem leve. Pequenos brincos de pérola, colar discreto, pulseira também discreta, anéis de bom gosto. Saia justa, pernas finas, sapatos de salto 3/4 sempre combinando com a bolsa, um broche na lapela do blazer, unhas aparadas e sempre esmaltadas. Sua voz rouca e baixa, seus gestos firmes, seu raro sorriso, o brilho dos seus olhos... O que eu sabia dela naquela época em que o centro do universo era meu próprio umbigo? Só que era tão elegante e educada, tão competente e magnânima, tão serena e afável apesar daquela severidade e frieza implícitas em sua postura. Não me interessava se ela era bem casada, se tinha filhos, se gostava de lecionar, se ganhava bem ou como conseguia estar sempre tão elegante e sóbria, bem penteada e com a manicure impecável. O único que eu sabia era que, ao ela entrar pela porta da nossa sala alguma coisa mudava no ar, e não era só o suave cheiro do seu perfume que se espalhava em nossa volta. Tudo parecia assentar-se em seus devidos lugares, inclusive nós mesmos e a nossa inesgotável energia. O ambiente silenciava, sossegava, limpava-se. Em pé diante do quadro negro, feito uma rainha perante seus súbditos, ela parecia exercer algum tipo de fascínio sobre nós. Eu a contemplava, admirada, sem ousar sequer pensar em fazer bagunça, e prometia a mim mesma que quando fosse adulta faria de tudo para me parecer com ela. Cultivaria o bom gosto, a eficiência, o sereno controle sobre as situações e as pessoas, a magnanimidade, a majestade que ela possuia. Ela simplesmente parecia uma imperatriz, apesar da sua total falta de beleza!... E eu me dizia que faria o possível para desenvolver essa realeza, esse porte imponente e ao mesmo tempo afável e receptpivo. Que combinação perfeita!.
Esta simples professora de inglês do segundo grau, que há anos desapareceu da minha vida e que talvez nem se lembre de mim -se é que ainda está viva- tornou-se sem saber um ideal de mulher que nunca consegui esquecer e que até hoje, de alguma forma, persigo e tento imitar.
Penso em meus professores -sobretudo agora que eu mesma me tornei uma deles- e no que eles deixaram como legado para mim e os outros que foram seus alunos, no quanto eles influenciaram as nossas atitudes e escolhas. Lembro, por exemplo, da dona Adriana, baixinha e roliça, com aqueles cabelos estranhamente loiros que pareciam um capacete e aquel batom vermelho coral sempre um pouco além dos lábios finos, que pegou tanto no meu pé dizendo que eu não era melhor só porque não queria, porque era preguiçosa e acomodada. E da dona Carla, aquela distinta e esguia senhora de pele alva e grandes olhos verdes emoldurados pelo cabelo cinza caindo em graciosos cachos sobre a testa, sempre radiante e esperançosa apesar dos nossos garranchos, que despertou em mim o gosto pelo desenho e a quem trai vilmente espalhando pela escola toda o apelido estúpido (e que achei muito engraçado e ousado) que criei para ela: "Macarrão escorrido"... Ainda me dói lembrar a decepção e a tristeza estampados em seus lindos olhos ao saber que a autora do apelido tinha sido eu... A professora de matemática -para mim a matéria mais abominável já ministrada nas escolas- uma alta e séria senhora (acho que para fazer jus à maçante e interminável aula) que falava uma linguagem totalmente medonha e incompreensível para mim: números inteiros, fracções, equações, fórmulas áridas e sem nenhuma lógica que a gente tinha que aceitar, decorar e utilizar sem questionar a sua origem ou finalidade... A dona Rubi, professora de biología, baixa, de cabelos grisalhos, óculos grossos, sem uma gota de maquiagem e sempre vestida de preto e cinza, usando meias grossas e umas sapatilhas de tecido resgatadas de alguma liquidação do exército de salvação, ou então uns sapatos de bailarina de flamenco e, claro, seu indefectível xale de franjas. Esta mulher atormentou boa parte da vida escolar da minha irmã com as suas exigências de perfeição e disciplina, e depois tentou continuar a sua saga neurótica comigo, porém, acabou aposentando-se no fim do meu primeiro ano com ela e, com certeza, não deixou saudades em ninguém... A professora de música -de quem não mais lembro o nome- sempre animada e sorridente, tentanto impor ordem e afinação naquela turma barulhenta e desinteressada que, quando estava realmente a fim cooperar, podia tornar-se um verdadeiro coro de anjos. Ainda me lembro de algumas das belíssimas músicas que aprendemos sob a sua regência, todas a duas ou três vozes, perfeitamente afinadas e sincronizadas, que enchiam a sala de aula -e o colégio todo- fazendo a minha alma elevar-se até dimensões inenarráveis!... O jovem a bonito professor de história que transformava cada aula no capítulo de uma emocionante novela da qual sempre estávamos ansiosos por saber o que aconteceria a seguir, e que acabou apaixonando-se por uma das minhas colegas mais velhas, ocasionando um escândalo sem precedentes em nossa pequena escolhinha de bairro. Como todos gostávamos muito dele, tentamos de tudo para apoiá-lo e até defendê-lo, mas na nossa idade e posição não tínhamos influência alguma com a diretora; nosso carinho e nosso respeito não faziam a menor diferença diante do seu monstruoso comportamento, portanto nos restou tão somente despedir-nos dele quando foi mandado embora sumáriamente e ficar sem saber o desfecho da divertida e audaciosa história do caudilho Manuel Rodríguez em sua luta contra os conquistadores espanhóis. Isto, e acompanhar de longe e em solidário silêncio a vergonha e o sofrimento da nossa colega, que ficou totalmente arrasada com a sua partida... E aquele professor de educação física, recém formado e parecendo um galinho de briga, peito estufado e voz estentórea, histericamente atlético e saltitante, que para castigar-me pela minha constante falta de atenção nos exercícios, deu-me uma bolada no rosto (com aquela bola de basquete dura feito uma rocha) que me deixou com a boca inchada por uma semana. Nossa, como o odiei por aquilo! Foi tão abusivo e descabido!... Passei uma semana escondendo-me de todo mundo, transformada num hilário monstro de imensos e disformes lábios arroxeados, respondendo perguntas idiotas, aturando piadas e risadinhas às minhas costas e bebendo sopa de canudinho, tudo por causa da sua ridícula punição...
E finalmente, seu Roberto. Roberto Astudillo Cornejo, o professor de espanhol. Deste eu lembro cada detalhe: pequeno e magro, de pele morena e cabelos lisos e pretos, com uma mecha rebelde sempre caindo-lhe sobre a testa lisa, imensos olhos escuros, mãos delicadas e pequenas, tão finas quanto seu rosto anguloso. A roupa ficava-lhe sempre grande, o colarinho e os punhos da camisa apareciam bastante puidos, porém muito limpos e bem passados e a gravata raramente combinava com aqueles seus ternos de cor indefinida. Sapatos impecavelmente engraxados, porém, com meias de cano frouxo ou então uns dois números acima do seu... Um anti-herói completo, feio e franzino, que fumava feito uma chaminé e tossia como um cachorro asmático, o que já o tinha levado um par de vezes ao hospital com princípio de tuberculose... Mas que com a sua vozinha afônica e seus gestos meio inseguros abriu para mim as portas deste universo maravilhoso que é a criação literária. Foi ele quem percebeu e despertou em mim esta vocação fascinante, mágica, catártica, que é botar a alma numa folha de papel, esta possibilidade infinita de comunicação, de revelação, de criação que pode chegar a todos. Ele me impulsionou, me deu a chance, acreditou em meu dom e o fez desabrochar e penetrar em minhas veias, em minha alma e transformar a minha existência, dando-me a chance de mostrar quem verdadeiramente sou, de corpo e alma. Estes diários nem nada do que escrevi até hoje existiria se não fosse por ele. Acho que aqui se aplica perfeitamente aquele verso de Milton Nascimento: "Toda vida existe para iluminar o caminho de outras vidas que a gente encontrar"... Aquele homenzinho aparentemente insignificante, que lecionava numa escura escolinha de bairro, fraco e doentio, porém capaz de brigar bravamente com a diretora (dona Marta, tão feia quanto perigosa) para defender seus ideais e seus projetos inovadores (escandalosos, subversivos e descabidos para a época, mas que para nós, seus alunos, resultavam fascinantes e estimulantes) fez de mim a escritora que sou, pôs a caneta na minha mão, abriu um caderno em branco e me deixou ali, nua e expectante diante do universo infinito das palavras que, reunidas, são capazes de contar sobre emoções, fábulas, mentiras, verdades, viagens, esperanças decepções, mortes e milagres. Palavras cheias de um poder sobrenatural que consegue derrubar todos os muros e atingir, no sagrado silêncio da leitura, o âmago da alma de quem lê, despertando felicidade ou tristeza, medo ou esperança, empatia ou ódio, raiva ou emoção... Este homem admirável, farol do meu futuro, passou por mim no último ano do primeiro grau e depois desapareceu, tão discretamemnte como havia aparecido, nas ondas agitadas desta vida. Nunca soube que foi feito dele, pois quando verdadeiramente percebi o que ele tinha feito por mim, alguns anos mais tarde -com uma maior percepção e maturidade para compreender- havia perdido totalmente o contato com meus colegas, professores e com a própria escola. Nâo sei se eu deixei alguma marca em sua vida que chegasse a se equiparar em importância com a que ele deixou na minha. Lembro-me do dia em que escolheu e levou alguns dos meus contos e me disse, com repentina firmeza e os olhos muito brilhantes, para nunca abandonar esta vocação, não importava quão difícil pudesse parecer às vezes, pois com certeza ela daria todo o sentido à minha existência... E, claro, estava certo. Não sei se vive ainda, se casou, se teve filhos, se foi feliz, se conseguiu o que almejava. Mas com certeza merecia tudo isso e ainda mais só pelo fato de ter feito o que fez por mim... E eu o amei por isto. O amei profunda e verdadeiramente, com inocência e admiração. Nâo guardei nenhuma foto sua (embora me lembre da minha mãe ter tirado uma juntos no último dia de aula) mas não preciso de uma para lembrar-me dele. Está gravado em meu ser, tornou-se parte de mim, do que sou, do que sonho, do que faço. Com certeza, uma semente dele foi plantada em mim e ela nunca deixará de dar flores e frutos.
Realmente, há ocasiões em que parece que uma única conquista ao longo da vida já a faz valer a pena e merecer o paraiso. A vida de Roberto foi uma delas. Eu sou a sua conquista.

segunda-feira, 9 de março de 2009

Hoje, infelizmemnte, é meu último dia de férias... Poucas vezes curti tanto este tempo que, antes, acabava ficando tedioso, longo demais, o ócio transformado em angústia e vontade de retornar logo ao batente, pois ficar em casa não era mesmo um bom programa. Porém, este ano foi completamente diferente, não sei se porque estava realmente cansada após a atividade enlouquecida -e deliciosa- do ano passado ou porque a perspectiva de ter mais tempo para escrever me deixou animada e realmente aproveitei estes dois mêses para produzir e pôr em dia muitos textos. Mas acontece que agora não estou nem um pouco a fim de retornar à Fundação. Por mim, ficaria em casa escrevendo, mas... essas dívidas que me perseguem e que preciso honrar não me permitem este luxo. Bom, ainda bem que sou obrigada a trabalhar em algo que gosto, isto já é um consolo!... Não sei o que me espera na volta ao trabalho -mas o que já sei não é nada animador- então nem posso me programar para reformular meus horários de produção literária. Acho, no entanto, que uma das certezas positivas é que vou voltar para casa mais cedo -em horário de prefeitura- e não mais às 9 ou 10 da noite, o que seria uma ótima chance para aproveitar e escrever mais um pouco... A coisa, acredito, é manter o otimismo e fazer o que me for destinado da melhor forma possível, pois já aprendi que não adianta se opôr ao poder, sobretudo quando ele está nas mãos erradas. Então, bola pra frente e amanhã vou encarar meu destino animada e bem disposta, pronta para o que vier. Não é um contratempo hierárquico que vai me derrubar, não é mesmo? Pois apesar de tudo, amo meu trabalho e pretendo realizá-lo da melhor forma possível...
E aqui vai a desta semana:

"Nosso vizinho estava morrendo. Um silêncio pesado e agourento erguia-se do outro lado do muro, todo mundo falava cochichando, deslizava, se mexendo devagar, segurava de alguma forma a morte que rondava a casa e parecia pairar sobre o telhado feito uma nuvem de tempestade... Yasuichi era casado com uma brasileira e pai de três filhos lindos e simpáticos e havia pouco mais de um ano -como quase todo japonês que vem morar aqui- viajara para o Japão para trabalhar, juntar dinheiro e comprar uma chácara aqui -pois também, como quase todo japonês, era agricultor- porém, quando voltou de lá, já estava doente, sem saber ainda. Vítima de alguns sintomas alarmantes decidiu ir ao médico e este lhe pediu uma série de exames que deram como diagnósotico uma cirrose avançada e sem cura, provavelmente pega numa transfusão feita numa clínica no Japão... Uma sombra pareceu abater-se então sobre o lar e a família. Yasuichi delegou os negócios para o filho mais velho, pois não podia mais tomar conta deles, e permaneceu em casa para se tratar. Emagreceu assustadoramente, passou a caminhar arrastando os pés, com a ajuda de uma bengala, e perdeu a cor acobreada e saudável que o sol lhe dera, tornando-o amarelo e emaciado, de olhos fundos e opacos. Mas não perdeu o sorriso... Às vezes saía da casa e sentava na área da frente, com seu ventre inchado e sem forças para mais nada, e permanecia observando silenciosamente a rua por horas a fio. Outras conversava com a mulher e os filhos em murmúrios, ou com algum dos parentes que com freqüência o visitavam. Se algum vizinho passava pela calçada ele acenava com a mão trêmula e lhe brindava seu tímido sorriso... Porém, era mais freqüente ver a cadeira vazia na área sombreada e quieta.
No entanto, e mesmo tremendamente reservados, aos poucos foram revelando a situação aos vizinhos, que quase diariamente se achegavam no portão para pergunar pela saúde de Yasuichi, e estes decidiram começar uma corrente de oração pela sua melhora, atitude que emocionou a família e a aproximou de todos...E também acabou acontecendo que, com o passar do tempo e mesmo sem grandes mudanças no curso da doença, aquele clima de tragédia antecipada foi se dissipando, como se alguma brisa fosse lentamente afastando aquela nuvem escura das suas cabeças e, após algum um tempo, eu podia escutá-los rir, conversar animadamente, cantar, escutar música e até brigar com o cachorro. Sorriam com maior freqüência e quando Yasuichi sentava na área, todos ficavam em volta dele e brincavam, contavam como tinha sido o dia, lhe traziam sucos e petiscos, jornais, amostras das verduras que começavam a crescer na chácara e faziam planos sobre as futuras colheitas... Porém, mesmo assim, à noite a situação parecia tornar-se mais aflitiva e às vezes eu escutava uma tosse longa e violenta vindo do outro lado, vozes angustiadas e até um estranho arrastar de móveis. Algumas madrugadas ouvia o carro sair em disparada, o cachorro latindo furiosamente com o barulho do portão se abrindo... A morte continuava ali, com certeza, mas agora eles não permitiam que ela se instalasse de vez e, após cada crise, quando conseguiem trazer Yasuichi de volta, comemoravam tornando a rir, a conversar, a ouvir música e a acomodá-lo em sua cadeira com almofadas na área da frente.
Todo dia, quando passava diante da casa, me perguntava como estariam as coisas ali dentro, se teria havido alguma melhora ou se continuavam só aguardando um desfecho sem apelações. Às vezes a mulher, dona Nelli, estava na calçada varrrendo ou aguando as plantas e cruzávamos algumas frases banais sobre o tempo, os filhos ou a feira, mas eu não tinha coragem de perguntar nada. Olhando para ela, animada e sorridente com a sua vassoura ou a mangueira, ninguém teria dito que passava por semelhante drama.
Hoje, após alguns meses da partida de Yasuichi, fico observando através da janela do meu quarto o telhado da sua casa, onde alguns pardais pulam e brigam, e me pergunto quantas pessoas que encontramos em nosso dia-a-dia escondem tragédias -grandes ou pequenas- e mesmo assim conseguem levar adiante as suas vidas; brincam, cantan, desenvolvem um trabalho, fecham um negócio, atendem gentilmente um cliente, escutam os problemas alheios, levam os filhos à escola, vão no mercado, dirigem seus carros e ajudam quem precisa, espantando de alguma forma as suas dores para poder continuar agindo e sendo úteis em sua comunidade... A vida continua, alheia a tudo e a todos, isso é uma certeza quase cruel. Nós passamos por ela feito um suspiro que ela mal percebe em sua azáfama criadora, pois se um se vai, outros cem vêm depois dele.
Outro dia, fiquei extremamente impressionada e emocionada com a história de um garotinho que está participando há vários meses de um programa de calouros infantis e se distingüe por ter sempre um sorriso no rosto, estar em todo momento de bom humor e brincar com todos. Numa entrevista com o apresentador, acabou revelando para nós, telespectadores e fãs dele, o drama que vivia seu pai, vítima de uma profunda depressão por ter perdido o emprego e não conseguir arranjar um outro para sustentar dignamente a família. Tudo parecia perdido e sem saída, até que alguém sugiriu que ele começasse a acompanhar a carreira do filho (em grande parte simplesmente por não ter mais nada para fazer e precisar se ocupar em alguma coisa) viajando com ele e ajudando-o a ensaiar e a se preparar para cada apresentação. O homem, apesar de desenganado e sem forças, aceitou o desafio e, logo após as primeiras semanas acompanhando o garotinho, começou a apresentar alguma melhora e até já tinha diminuido as doses de antidepressivos, com o que a situação espiritual da família tornou-se mais leve esperançosa... Ao escutar o menino contar a sua história, muito emocionado, e ver algumas tomadas que a câmera fez do pai, sentado silenciosamente nas coxias, magro e apático, fiquei espantada. Uma criança tão nova tendo que carregar nos ombros uma situação tão extrema e ainda conseguindo escondê-la e continuar adiante com tamanha força e otimismo!... Olhando para seu rostinho moreno e sorridente, apesar das lágrimas nos olhos escuros, me perguntei de repente: como é que somos capazes de espantar até os nossos piores males e continuar vivendo inteiros e coerentes? É algo instintivo, superior à dor, à desgraça, ao empecilho, à morte? Está implícito em nosso inconsciente, em nossa humanidade, em nossa luta pela sobrevivência? O que é esta força que ilumina as nossas tragédias e é capaz até de transformá-las em vitórias, em lições, em trampolins para novos patamares, em portas para dias melhores?.. É a canção? É o riso? É o otimismo? O trabalho, a coragem, a raiva, o desafio?... Bom, talvez seja tudo isto reunido numa só palavra: fé.