segunda-feira, 9 de março de 2009

Hoje, infelizmemnte, é meu último dia de férias... Poucas vezes curti tanto este tempo que, antes, acabava ficando tedioso, longo demais, o ócio transformado em angústia e vontade de retornar logo ao batente, pois ficar em casa não era mesmo um bom programa. Porém, este ano foi completamente diferente, não sei se porque estava realmente cansada após a atividade enlouquecida -e deliciosa- do ano passado ou porque a perspectiva de ter mais tempo para escrever me deixou animada e realmente aproveitei estes dois mêses para produzir e pôr em dia muitos textos. Mas acontece que agora não estou nem um pouco a fim de retornar à Fundação. Por mim, ficaria em casa escrevendo, mas... essas dívidas que me perseguem e que preciso honrar não me permitem este luxo. Bom, ainda bem que sou obrigada a trabalhar em algo que gosto, isto já é um consolo!... Não sei o que me espera na volta ao trabalho -mas o que já sei não é nada animador- então nem posso me programar para reformular meus horários de produção literária. Acho, no entanto, que uma das certezas positivas é que vou voltar para casa mais cedo -em horário de prefeitura- e não mais às 9 ou 10 da noite, o que seria uma ótima chance para aproveitar e escrever mais um pouco... A coisa, acredito, é manter o otimismo e fazer o que me for destinado da melhor forma possível, pois já aprendi que não adianta se opôr ao poder, sobretudo quando ele está nas mãos erradas. Então, bola pra frente e amanhã vou encarar meu destino animada e bem disposta, pronta para o que vier. Não é um contratempo hierárquico que vai me derrubar, não é mesmo? Pois apesar de tudo, amo meu trabalho e pretendo realizá-lo da melhor forma possível...
E aqui vai a desta semana:

"Nosso vizinho estava morrendo. Um silêncio pesado e agourento erguia-se do outro lado do muro, todo mundo falava cochichando, deslizava, se mexendo devagar, segurava de alguma forma a morte que rondava a casa e parecia pairar sobre o telhado feito uma nuvem de tempestade... Yasuichi era casado com uma brasileira e pai de três filhos lindos e simpáticos e havia pouco mais de um ano -como quase todo japonês que vem morar aqui- viajara para o Japão para trabalhar, juntar dinheiro e comprar uma chácara aqui -pois também, como quase todo japonês, era agricultor- porém, quando voltou de lá, já estava doente, sem saber ainda. Vítima de alguns sintomas alarmantes decidiu ir ao médico e este lhe pediu uma série de exames que deram como diagnósotico uma cirrose avançada e sem cura, provavelmente pega numa transfusão feita numa clínica no Japão... Uma sombra pareceu abater-se então sobre o lar e a família. Yasuichi delegou os negócios para o filho mais velho, pois não podia mais tomar conta deles, e permaneceu em casa para se tratar. Emagreceu assustadoramente, passou a caminhar arrastando os pés, com a ajuda de uma bengala, e perdeu a cor acobreada e saudável que o sol lhe dera, tornando-o amarelo e emaciado, de olhos fundos e opacos. Mas não perdeu o sorriso... Às vezes saía da casa e sentava na área da frente, com seu ventre inchado e sem forças para mais nada, e permanecia observando silenciosamente a rua por horas a fio. Outras conversava com a mulher e os filhos em murmúrios, ou com algum dos parentes que com freqüência o visitavam. Se algum vizinho passava pela calçada ele acenava com a mão trêmula e lhe brindava seu tímido sorriso... Porém, era mais freqüente ver a cadeira vazia na área sombreada e quieta.
No entanto, e mesmo tremendamente reservados, aos poucos foram revelando a situação aos vizinhos, que quase diariamente se achegavam no portão para pergunar pela saúde de Yasuichi, e estes decidiram começar uma corrente de oração pela sua melhora, atitude que emocionou a família e a aproximou de todos...E também acabou acontecendo que, com o passar do tempo e mesmo sem grandes mudanças no curso da doença, aquele clima de tragédia antecipada foi se dissipando, como se alguma brisa fosse lentamente afastando aquela nuvem escura das suas cabeças e, após algum um tempo, eu podia escutá-los rir, conversar animadamente, cantar, escutar música e até brigar com o cachorro. Sorriam com maior freqüência e quando Yasuichi sentava na área, todos ficavam em volta dele e brincavam, contavam como tinha sido o dia, lhe traziam sucos e petiscos, jornais, amostras das verduras que começavam a crescer na chácara e faziam planos sobre as futuras colheitas... Porém, mesmo assim, à noite a situação parecia tornar-se mais aflitiva e às vezes eu escutava uma tosse longa e violenta vindo do outro lado, vozes angustiadas e até um estranho arrastar de móveis. Algumas madrugadas ouvia o carro sair em disparada, o cachorro latindo furiosamente com o barulho do portão se abrindo... A morte continuava ali, com certeza, mas agora eles não permitiam que ela se instalasse de vez e, após cada crise, quando conseguiem trazer Yasuichi de volta, comemoravam tornando a rir, a conversar, a ouvir música e a acomodá-lo em sua cadeira com almofadas na área da frente.
Todo dia, quando passava diante da casa, me perguntava como estariam as coisas ali dentro, se teria havido alguma melhora ou se continuavam só aguardando um desfecho sem apelações. Às vezes a mulher, dona Nelli, estava na calçada varrrendo ou aguando as plantas e cruzávamos algumas frases banais sobre o tempo, os filhos ou a feira, mas eu não tinha coragem de perguntar nada. Olhando para ela, animada e sorridente com a sua vassoura ou a mangueira, ninguém teria dito que passava por semelhante drama.
Hoje, após alguns meses da partida de Yasuichi, fico observando através da janela do meu quarto o telhado da sua casa, onde alguns pardais pulam e brigam, e me pergunto quantas pessoas que encontramos em nosso dia-a-dia escondem tragédias -grandes ou pequenas- e mesmo assim conseguem levar adiante as suas vidas; brincam, cantan, desenvolvem um trabalho, fecham um negócio, atendem gentilmente um cliente, escutam os problemas alheios, levam os filhos à escola, vão no mercado, dirigem seus carros e ajudam quem precisa, espantando de alguma forma as suas dores para poder continuar agindo e sendo úteis em sua comunidade... A vida continua, alheia a tudo e a todos, isso é uma certeza quase cruel. Nós passamos por ela feito um suspiro que ela mal percebe em sua azáfama criadora, pois se um se vai, outros cem vêm depois dele.
Outro dia, fiquei extremamente impressionada e emocionada com a história de um garotinho que está participando há vários meses de um programa de calouros infantis e se distingüe por ter sempre um sorriso no rosto, estar em todo momento de bom humor e brincar com todos. Numa entrevista com o apresentador, acabou revelando para nós, telespectadores e fãs dele, o drama que vivia seu pai, vítima de uma profunda depressão por ter perdido o emprego e não conseguir arranjar um outro para sustentar dignamente a família. Tudo parecia perdido e sem saída, até que alguém sugiriu que ele começasse a acompanhar a carreira do filho (em grande parte simplesmente por não ter mais nada para fazer e precisar se ocupar em alguma coisa) viajando com ele e ajudando-o a ensaiar e a se preparar para cada apresentação. O homem, apesar de desenganado e sem forças, aceitou o desafio e, logo após as primeiras semanas acompanhando o garotinho, começou a apresentar alguma melhora e até já tinha diminuido as doses de antidepressivos, com o que a situação espiritual da família tornou-se mais leve esperançosa... Ao escutar o menino contar a sua história, muito emocionado, e ver algumas tomadas que a câmera fez do pai, sentado silenciosamente nas coxias, magro e apático, fiquei espantada. Uma criança tão nova tendo que carregar nos ombros uma situação tão extrema e ainda conseguindo escondê-la e continuar adiante com tamanha força e otimismo!... Olhando para seu rostinho moreno e sorridente, apesar das lágrimas nos olhos escuros, me perguntei de repente: como é que somos capazes de espantar até os nossos piores males e continuar vivendo inteiros e coerentes? É algo instintivo, superior à dor, à desgraça, ao empecilho, à morte? Está implícito em nosso inconsciente, em nossa humanidade, em nossa luta pela sobrevivência? O que é esta força que ilumina as nossas tragédias e é capaz até de transformá-las em vitórias, em lições, em trampolins para novos patamares, em portas para dias melhores?.. É a canção? É o riso? É o otimismo? O trabalho, a coragem, a raiva, o desafio?... Bom, talvez seja tudo isto reunido numa só palavra: fé.

Um comentário:

D Z disse...

Oi Paz,

Emocionante este seu texto...

Acho que se não fosse a fé, muitas pessoas já teriam desistido de si mesmas, das outras pessoas e do mundo... E tudo seria um caos total...

Lindo texto...

Ps.: Adoraria trabalhar de escrever rsrs

Tenha uma ótima semana!

Bjssssssssss

Dany