segunda-feira, 16 de março de 2009

Professores

Acho que esta será a crônica mais comprida que já postei, mas, esta é justamente a grande e mais importante diferença que existe entre escrever aqui e enviar textos para o jornal. No jornal aceitam até 50 linhas enquanto no blog, a gente não tem limites para expressar-se, tanto em quantidade como em qualidade. É muito difícil para mim ter que estar reduzindo meus textos -o que não é em absoluto meu forte- pois acho que tudo que escrevi é para ser publicado e lido, e sempre preciso escolher os mais curtos ou então me segurar para não desenvolver ao máximo um tema quando se trata de enviar crônicas para o jornal, o que me deixa bastante frustrada. Antigamente a coluna de crônicas tinha bem mais espaço (acho que as 50 linhas mesmo) mas ultimamente este é cada vez menor, não sei por quê, e nem mais pubicam a foto do autor do texto... Acho que vou ter de me especializar em hai-kais daqui a pouco!... Mas, de qualquer jeito, é uma oportunidade enorme para divulgar meus trabalhos, pois sei que a Folha tem grande alcance regional e tenho a sorte e a honra de que meu nome seja o que mais apareceu nesta coluna até agora, o que significa que meus textos deveme ter algo de bom, né?, algo que as pessoas gostam e querem continuar lendo... Então, cá vamos nós, mais uma vez, e hoje vou abusar da paciência dos meus leitores. Mas, se começarem a ficar com dor de cabeça, podem dividir a leitura em capítulos, ok?. (A coisa é longa, como podem ver! E ainda tem mais dois partes!)...

Vermelho. A sua imagem esbelta e elegante, com aquele ar em que se misturavam a severidade e a extrema polidez e suavidade, a eficiência e o equilíbrio, está invariavelmente associada a esta cor, pois ela sempre estava de uma ou outra forma presente em algum detalhe da sua indumentária. Nâo consigo mais lembrar do seu nome -apesar dela ter sido a minha professora de inglês durante dois anos no segundo grau- mas a sua fisionomia aparece nitida em minha mente: cabelos pretíssimos e sempre perfeitamente arrumados, sobrancelhas grossas e bem definidas, lábios finos sempre pintados de vermelho, olhos escuros e severos destacando-se no rosto fino, maquiagem leve. Pequenos brincos de pérola, colar discreto, pulseira também discreta, anéis de bom gosto. Saia justa, pernas finas, sapatos de salto 3/4 sempre combinando com a bolsa, um broche na lapela do blazer, unhas aparadas e sempre esmaltadas. Sua voz rouca e baixa, seus gestos firmes, seu raro sorriso, o brilho dos seus olhos... O que eu sabia dela naquela época em que o centro do universo era meu próprio umbigo? Só que era tão elegante e educada, tão competente e magnânima, tão serena e afável apesar daquela severidade e frieza implícitas em sua postura. Não me interessava se ela era bem casada, se tinha filhos, se gostava de lecionar, se ganhava bem ou como conseguia estar sempre tão elegante e sóbria, bem penteada e com a manicure impecável. O único que eu sabia era que, ao ela entrar pela porta da nossa sala alguma coisa mudava no ar, e não era só o suave cheiro do seu perfume que se espalhava em nossa volta. Tudo parecia assentar-se em seus devidos lugares, inclusive nós mesmos e a nossa inesgotável energia. O ambiente silenciava, sossegava, limpava-se. Em pé diante do quadro negro, feito uma rainha perante seus súbditos, ela parecia exercer algum tipo de fascínio sobre nós. Eu a contemplava, admirada, sem ousar sequer pensar em fazer bagunça, e prometia a mim mesma que quando fosse adulta faria de tudo para me parecer com ela. Cultivaria o bom gosto, a eficiência, o sereno controle sobre as situações e as pessoas, a magnanimidade, a majestade que ela possuia. Ela simplesmente parecia uma imperatriz, apesar da sua total falta de beleza!... E eu me dizia que faria o possível para desenvolver essa realeza, esse porte imponente e ao mesmo tempo afável e receptpivo. Que combinação perfeita!.
Esta simples professora de inglês do segundo grau, que há anos desapareceu da minha vida e que talvez nem se lembre de mim -se é que ainda está viva- tornou-se sem saber um ideal de mulher que nunca consegui esquecer e que até hoje, de alguma forma, persigo e tento imitar.
Penso em meus professores -sobretudo agora que eu mesma me tornei uma deles- e no que eles deixaram como legado para mim e os outros que foram seus alunos, no quanto eles influenciaram as nossas atitudes e escolhas. Lembro, por exemplo, da dona Adriana, baixinha e roliça, com aqueles cabelos estranhamente loiros que pareciam um capacete e aquel batom vermelho coral sempre um pouco além dos lábios finos, que pegou tanto no meu pé dizendo que eu não era melhor só porque não queria, porque era preguiçosa e acomodada. E da dona Carla, aquela distinta e esguia senhora de pele alva e grandes olhos verdes emoldurados pelo cabelo cinza caindo em graciosos cachos sobre a testa, sempre radiante e esperançosa apesar dos nossos garranchos, que despertou em mim o gosto pelo desenho e a quem trai vilmente espalhando pela escola toda o apelido estúpido (e que achei muito engraçado e ousado) que criei para ela: "Macarrão escorrido"... Ainda me dói lembrar a decepção e a tristeza estampados em seus lindos olhos ao saber que a autora do apelido tinha sido eu... A professora de matemática -para mim a matéria mais abominável já ministrada nas escolas- uma alta e séria senhora (acho que para fazer jus à maçante e interminável aula) que falava uma linguagem totalmente medonha e incompreensível para mim: números inteiros, fracções, equações, fórmulas áridas e sem nenhuma lógica que a gente tinha que aceitar, decorar e utilizar sem questionar a sua origem ou finalidade... A dona Rubi, professora de biología, baixa, de cabelos grisalhos, óculos grossos, sem uma gota de maquiagem e sempre vestida de preto e cinza, usando meias grossas e umas sapatilhas de tecido resgatadas de alguma liquidação do exército de salvação, ou então uns sapatos de bailarina de flamenco e, claro, seu indefectível xale de franjas. Esta mulher atormentou boa parte da vida escolar da minha irmã com as suas exigências de perfeição e disciplina, e depois tentou continuar a sua saga neurótica comigo, porém, acabou aposentando-se no fim do meu primeiro ano com ela e, com certeza, não deixou saudades em ninguém... A professora de música -de quem não mais lembro o nome- sempre animada e sorridente, tentanto impor ordem e afinação naquela turma barulhenta e desinteressada que, quando estava realmente a fim cooperar, podia tornar-se um verdadeiro coro de anjos. Ainda me lembro de algumas das belíssimas músicas que aprendemos sob a sua regência, todas a duas ou três vozes, perfeitamente afinadas e sincronizadas, que enchiam a sala de aula -e o colégio todo- fazendo a minha alma elevar-se até dimensões inenarráveis!... O jovem a bonito professor de história que transformava cada aula no capítulo de uma emocionante novela da qual sempre estávamos ansiosos por saber o que aconteceria a seguir, e que acabou apaixonando-se por uma das minhas colegas mais velhas, ocasionando um escândalo sem precedentes em nossa pequena escolhinha de bairro. Como todos gostávamos muito dele, tentamos de tudo para apoiá-lo e até defendê-lo, mas na nossa idade e posição não tínhamos influência alguma com a diretora; nosso carinho e nosso respeito não faziam a menor diferença diante do seu monstruoso comportamento, portanto nos restou tão somente despedir-nos dele quando foi mandado embora sumáriamente e ficar sem saber o desfecho da divertida e audaciosa história do caudilho Manuel Rodríguez em sua luta contra os conquistadores espanhóis. Isto, e acompanhar de longe e em solidário silêncio a vergonha e o sofrimento da nossa colega, que ficou totalmente arrasada com a sua partida... E aquele professor de educação física, recém formado e parecendo um galinho de briga, peito estufado e voz estentórea, histericamente atlético e saltitante, que para castigar-me pela minha constante falta de atenção nos exercícios, deu-me uma bolada no rosto (com aquela bola de basquete dura feito uma rocha) que me deixou com a boca inchada por uma semana. Nossa, como o odiei por aquilo! Foi tão abusivo e descabido!... Passei uma semana escondendo-me de todo mundo, transformada num hilário monstro de imensos e disformes lábios arroxeados, respondendo perguntas idiotas, aturando piadas e risadinhas às minhas costas e bebendo sopa de canudinho, tudo por causa da sua ridícula punição...
E finalmente, seu Roberto. Roberto Astudillo Cornejo, o professor de espanhol. Deste eu lembro cada detalhe: pequeno e magro, de pele morena e cabelos lisos e pretos, com uma mecha rebelde sempre caindo-lhe sobre a testa lisa, imensos olhos escuros, mãos delicadas e pequenas, tão finas quanto seu rosto anguloso. A roupa ficava-lhe sempre grande, o colarinho e os punhos da camisa apareciam bastante puidos, porém muito limpos e bem passados e a gravata raramente combinava com aqueles seus ternos de cor indefinida. Sapatos impecavelmente engraxados, porém, com meias de cano frouxo ou então uns dois números acima do seu... Um anti-herói completo, feio e franzino, que fumava feito uma chaminé e tossia como um cachorro asmático, o que já o tinha levado um par de vezes ao hospital com princípio de tuberculose... Mas que com a sua vozinha afônica e seus gestos meio inseguros abriu para mim as portas deste universo maravilhoso que é a criação literária. Foi ele quem percebeu e despertou em mim esta vocação fascinante, mágica, catártica, que é botar a alma numa folha de papel, esta possibilidade infinita de comunicação, de revelação, de criação que pode chegar a todos. Ele me impulsionou, me deu a chance, acreditou em meu dom e o fez desabrochar e penetrar em minhas veias, em minha alma e transformar a minha existência, dando-me a chance de mostrar quem verdadeiramente sou, de corpo e alma. Estes diários nem nada do que escrevi até hoje existiria se não fosse por ele. Acho que aqui se aplica perfeitamente aquele verso de Milton Nascimento: "Toda vida existe para iluminar o caminho de outras vidas que a gente encontrar"... Aquele homenzinho aparentemente insignificante, que lecionava numa escura escolinha de bairro, fraco e doentio, porém capaz de brigar bravamente com a diretora (dona Marta, tão feia quanto perigosa) para defender seus ideais e seus projetos inovadores (escandalosos, subversivos e descabidos para a época, mas que para nós, seus alunos, resultavam fascinantes e estimulantes) fez de mim a escritora que sou, pôs a caneta na minha mão, abriu um caderno em branco e me deixou ali, nua e expectante diante do universo infinito das palavras que, reunidas, são capazes de contar sobre emoções, fábulas, mentiras, verdades, viagens, esperanças decepções, mortes e milagres. Palavras cheias de um poder sobrenatural que consegue derrubar todos os muros e atingir, no sagrado silêncio da leitura, o âmago da alma de quem lê, despertando felicidade ou tristeza, medo ou esperança, empatia ou ódio, raiva ou emoção... Este homem admirável, farol do meu futuro, passou por mim no último ano do primeiro grau e depois desapareceu, tão discretamemnte como havia aparecido, nas ondas agitadas desta vida. Nunca soube que foi feito dele, pois quando verdadeiramente percebi o que ele tinha feito por mim, alguns anos mais tarde -com uma maior percepção e maturidade para compreender- havia perdido totalmente o contato com meus colegas, professores e com a própria escola. Nâo sei se eu deixei alguma marca em sua vida que chegasse a se equiparar em importância com a que ele deixou na minha. Lembro-me do dia em que escolheu e levou alguns dos meus contos e me disse, com repentina firmeza e os olhos muito brilhantes, para nunca abandonar esta vocação, não importava quão difícil pudesse parecer às vezes, pois com certeza ela daria todo o sentido à minha existência... E, claro, estava certo. Não sei se vive ainda, se casou, se teve filhos, se foi feliz, se conseguiu o que almejava. Mas com certeza merecia tudo isso e ainda mais só pelo fato de ter feito o que fez por mim... E eu o amei por isto. O amei profunda e verdadeiramente, com inocência e admiração. Nâo guardei nenhuma foto sua (embora me lembre da minha mãe ter tirado uma juntos no último dia de aula) mas não preciso de uma para lembrar-me dele. Está gravado em meu ser, tornou-se parte de mim, do que sou, do que sonho, do que faço. Com certeza, uma semente dele foi plantada em mim e ela nunca deixará de dar flores e frutos.
Realmente, há ocasiões em que parece que uma única conquista ao longo da vida já a faz valer a pena e merecer o paraiso. A vida de Roberto foi uma delas. Eu sou a sua conquista.