sábado, 30 de agosto de 2008

Casas

As casas, como nós, também vão adquirindo cicatrizes ao longo do tempo: enchem-se de ferrugem, rachaduras, manchas, descascados e remendos; o corredor lateral ou o quintal do fundo vão sendo tomados por caixas, móveis velhos, vasos quebrados, suportes de metal, restos de material de reforma, ferramentas e um monte de tralha que não sei por quê as pessoas têm dó de jogar fora. A construção nova e bem definida na qual fomos morar há dez anos foi se transformando, adquirindo novos contornos, cores e cheiros por causa da nossa estadia nela. Surgiram manchas, cantos, prateleiras, quartinhos, canteiros, grades, áreas, vasos e degraus que foram aos poucos mudando a sua fisionomia original. Uma plácida e condescendente desordem espalhou-se pelos cômodos, pois cada habitante foi arrumando as suas coisas de acordo com as suas necessidades ou estados de espírito. Assim, parece que cada parte da casa tem um pedaço da personalidade de seus moradores, o que lhe confere um ar eclético e por vezes caótico que é tremendamente íntimo e cheio de significados. A rotina doméstica impões rituais que vão ocupando serena e definitivamente os espaços, tornando-os por isso muito especiais e amados, como portos seguros em meio às mudanças e correrias do mundo lá fora... Entrar na cozinha e deparar-se com a fileira de potes de mantimentos, já gastos e medio descorados, ou chegar da rua no fim da tarde e encontrar na sala aqueles mesmos sofás de almofadas informes, com pequenas manchas nos braços e a mesinha de centro com os pés lascados pelas mordidas do cachorro, sentar à mesa e descobrir os mil arranhões e manchas na sua superfície e as marcas de velhos molhos de tomate ou bolo na toalha, ver-se rodeado pelos imãs da geladeira, os vidrinhos de condimentos, os panos de prato , a vasilha de água dos cachorros e as fotografias no balcão, cujos puxadores originais não existem mais, nos dá uma uma sensação de maravilhosa estabilidade e segurança, de certeza e aconchego que não sentimos em nenhum outro lugar. Todos os defeitos e marcas que a nossa casa foi adquirindo ao longo do tempo -seqüelas da nossa existência nela- contam a nossa história e mostram a nossa personalidade, unindo-nos a ela com laços de uma força que jamais imaginaríamos. Nem sempre são transformações planejadas ou acontecidas de maneira agradável, mas são, certamente, inevitáveis, pois a nossa casa -a construção de alvenaria, ferro, madeira e vidro- não é insensível ao nosso existir. Sempre deixamos marcas por onde passamos, o que será então do lugar no qual moramos anos e anos!...
Gosto de casas novas e cheirando a tinta e argamassa, com seus jardins planejados e cada móvel e enfeite em seu lugar, sem armários cheios de tralha nem manchas no chão da cozinha, tudo combinando, nada sobrando, arrumadas como para uma sessão de fotos de alguma revista de decoração... Mas, definitivamente, prefiro aquelas que têm história para contar, que se orgulham -ou não- de mostrar as suas manchas, seus remendos, suas rachaduras e bagunças, suas portas que rangem, suas áreas desordenadas, seus quartos cheios de persponalidade e significado, de objetos queridos... Sempre me lembro daquela sensação de ausência e falta de aconchego que tomava conta de mim cada vez que adentrava em nossa nova casa, ou quando levantava pela manhã e ia até a cozinha preparar o café. Estava tudo tão imaculado, tão perfeito, tão silencioso! Era uma virgindade perturbadora, fria, como se aquele prédio na verdade não tivesse dono. Éramos completos estranhos: eu, acanhada, e ele, silencioso e expectante. Mas era tão difícil travar intimidade com aquela perfeição!... Demorei um bom tempo para me sentir forte e capaz o suficiente como para impor meu carisma àqueles cômodos, àquele jardim, àquela área, ao meu próprio quarto; para que o ar começasse a ter nosso cheiro e as paredes nosso som e cor, para que o chão se acostumasse com os nossos passos e o tempo ali dentro tivesse o nosso ritmo.
Hoje caminho pela casa e sinto como se estivesse fazendo-o dentro de mim mesma. É meu território, meu refúgio, parte da minha identidade, e me orgulho de cada marca que nela deixei e vou deixar ainda, pois trata-se da minha vida, da minha história, que está transcorrendo entre estas paredes, transformando-as num fiel reflexo do que sou.
Casas novas estão mortas, até o dono impregnar-lhes a sua personalidade. Casas velhas estão vivas porque já existiram junto com seus habitantes e deles sabem tudo.

sábado, 23 de agosto de 2008

O palácio

Aos poucos o material foi chegando e se amontoando no quintal: telhas, sacos de cimento, areia, pedras, tijolos, madeira, carriolas, espátulas, enxadas e caixas de ferramentas. Pacotes de pregos, embalagens de lajotas e longos ferros ocuparam o lugar das cadeiras e vasos na pequena área da frente e avançaram pela grama bem cuidada -é a casa do seu João, o nosso antigo jardineiro- e por entre as roseiras e primaveras, as margaridas e orquídeas. Os cachorros perambulavam, perdidos por entre aquela confusão, e latiam furiosos para os operários que invadiam a casa às sete da manhã falando alto, transitando sem nenhum respeito ou cuidado pelos seus territórios, bebendo litros de café, jogando bitucas por todo lado e botando aquele radinho pigarrento no volume mais alto. Era um total caos, um quebre repentino e alarmante nas suas rotinas e, como seus protestos e ameaças não eram levados em conta -pelo contrário, para seu pasmo, sempre acabavam levando uma bronca por tentar avançar nos estranhos- terminaram por recuar para os fundos da casa à procura de um canto seguro desde onde pudessem observar, na mais absoluta impotência, aquele desastre que tinha-se abatido sobre seu lar, e ao qual seus donos não pareciam dar a menor importância.
Os homens botaram escadas e se encarrapitaram no telhado, fazendo uma corrente para arrancar as telhas de eternite e estender uma lona preta no forro, furaram o chão e as paredes, martelando sem descanso até parecer que um furacão tinha passado por ali. A poeira tomou conta de tudo, apesar da dona cobrir os móveis e objetos com toalhas e lençóis, e a data se encheu lentamente com todo tipo de lixo típico de uma construção: latas de verniz, jornal, sacos plásticos rasgados, rodinhos de espuma, garrafas de plástico, cubas de madeira, respingos de cimento e massa corrida por todo lugar, pedaços de mangueira e restos de estranhos artefatos de madeira usados para segurar os alicerces da construção... Porém, os donos da casa -a esposa do seu João, já falecido, o cunhado e a filha- contemplavam este aparente desastre com uma beatífica expressão de felicidade em seus rostos morenos e enrugados, e passavam horas a fio caminhando em meio àquele campo de batalha oferecendo água, café ou um lanchinho para os operários. Depois do almoço, todos sentavam nas cadeiras de plástico no que restara da pequena área, e batiam longos papos fumando e dando risada, para logo retornar à bagunça e à barulheira... Mas nada abalava a aparente e inexplicável felicidade dos donos, para horror dos cachorros, que mal se aproximavam para comer ou beber uns goles de água. Com tanto entra e sai, o portão da casa ficava permanentemente aberto, o que seria uma imperdível chance de escapar para brincar na rua, mas eles estavam tão amedrontados que não ousavam se aventurar além dos limites dentro dos quais ainda reinava algo de ordem e lógica... Mas, o que era tudo aquilo?
Eu virava a esquina e me deparava com aquela quase demolição todo dia, e enquanto passava em frente à casa, tentava adivinhar qual seria o resultado de tudo aquilo. Ao parecer, estavam trocando todas as telhas -que não eram muitas, pois a casa era diminuta- e pretendiam aumentar a sala ou acrescentar um outro quarto utilizando o único espaço vazio que restara após a construção de uma outra casinha no fundo para a filha do seu João, obra que começou do mesmo jeito que esta outra, feito um terremoto longamente aguardado. O resultado -dois quartinhos, uma cozinha que se misturava com a sala e um banheirinho- foram recebidos com imensa alegria e satisfação pela família, e a obra foi coroada com uma camada de tinta cor azul turquesa que feria os olhos de longe e uma ostentosa porta frontal de madeira grossa, toda trabalhada com detalhes geométricos. Cortinas nas janelas, vassos na área e tapete de boas-vindas na entrada, ficou parecendo uma casinha de contos de fada. Esta obra, o jardineiro teve tempo de ver, mas neste novo empreendimento já não estava mais entre nós, mas imagino que devia estar observando tudo desde o céu, sorrindo satisfeito e orgulhoso diante deste novo feito do seu clã.
Aos poucos, a coisa foi se definindo, tomando formas claras e mostrando as intenções da família com respeito àquele pedaço do quintal. Uma tarde, virei a esquina e me encontrei com a obra quase pronta: era uma nova área, com grossos pilares quadrados de cimento e cobertura de telhas, ao invés do eternite de antes; lajotas novas, uma mureta e um novo chão de cimento para a entrada do velho carro. De repente, a bagunça havia sumido. Os cachorros, agora relaxados e alegres, estavam novamente deitados na grama e no chão fresco, a esposa do seu João aguando as plantas e escolhendo quais vasos iria pendurar na nova área, e as cadeiras de plástico arrumadas em linha à sombra da cobertura, que cheirava a novo, a sucesso, a tranqüilidade, a esforço e persistência. Ainda não estava pintada -e espero que não escolham algo parecido com aquele azul turquesa!- mas mesmo assim dava à casa um ar sólido, de humilde prosperidade e presunção, de profunda realização. Olhando para aquela varanda novinha, um pouco anacrônica se comparada com a casa velha e desbotada, e para as telhas vermelhas reluzindo ao sol, quase que pesadas demais para a frágil estrutura da casinha popular, me perguntei quanto esforço teria lhes custado aquela pequena obra, aquela minúscula mudança que para a maioria de nós passaria despercebida. Quantos cálculos, barganhas, peregrinações por depósitos de material em busca de ofertas e liquidações, quantos meses de espera juntando cada centavo, privando-se quem sabe do quê para poder alcançar seu modesto sonho: esta área fresca na qual vão passar os finais de tarde ou dar uma cochilada após o almoço, como seu João fazia; onde vão receber os amigos, brincar com os netos, proteger o carro do relento, fazer tricô, estrear tapetes de retalho, assar uma carninha num feriado e beber umas cervejas...
Fiquei alguns minutos contemplando a casinha, agora com ares de palácio para os olhos dos donos, e pensei no que significa sucesso, satisfação, alegria e progresso para cada um de nós, no quanto somos capazes de trabalhar para obtê-los e de que maneira os desfrutamos ou se, uma vez obtidos -na forma de um carro, uma reforma, um negócio, uma roupa, um brinquedo, um aparelho de som ou um computador- deixamos de dar-lhes importância e passamos a almejar algo maior, algo melhor, que nos dê ainda mais status, mais poder, uma felicidade baseada somente na comparação, na competição; algo que todos percebam e admirem, bem diferente desta humilde e sacrificada cobertura na área da casa do seu João... Mas qual felicidade é maior, mais duradoura e profunda? Qual realização é mais apreciada e desfrutada? ...Quem tem as possibilidade encara todo resultado bem sucedido como algo natural, lógico, tranqüilo. Porém, quem não tem estas possibilidades encara o objetivo alcançado, por menor que este seja, como um verdadeiro milagre, um prêmio ao seu esforço e perseverança, fazendo-o sentir que todo seu sacrifício valeu mesmo a pena... E talvez esteja aí a principal diferença entre a reforma total que os meus novos vizinhos fizeram na casa antes de se mudarem e a pequena cobertura na área da casa do seu João. Olhando para ambas me pergunto se será a família vizinha a curtir mais o jardim planejado, a churrasqueira e a cobertura de sapé, o jogo de mesa e cadeiras de metal trabalhado, a pequena piscina e o aquecedor solar, ou se será a família do seu João, deixando transcorrer calmamente o entardecer a cada dia, sentada nas cadeiras de plástico na sua pequena área, fazendo tapete, cochilando com os cachorros placidamente estendidos aos pés ou brincando com os netos nos domingos à tarde...

sábado, 16 de agosto de 2008

O que realmente precisamos?

Hoje, ao contrário da semana passada, não estou tão inspirada. Primeiro porque e stou com uma tremenda de uma gripe -que já estou combatendo por todas as frentes porque NÃO POSSO ficar doente agora- e segundo, porque recebi a triste notícia de que a minha melhor amiga vai embora para Portugal mes que vem, o que me deixou bastante arrasada. Sei que a gente não deve ser egoista nem se apegar demais a nada ou ninguém e que, realmente, a minha amiga precisa fazer alguma coisa com respeito a sua vida, pois está totalmente infeliz e sem perspectivas aqui no Brasil, então... Vou tentar ser magnánima e não estragar seus últimos dias aqui andando por aí de cara amarrada nem arrastando o traseiro pelos cantos da casa. Afinal, gostando dela como gosto, eu desejo que seja feliz e se realize, assim como eu, mesmo que seja longe daqui... Agora, que foi um golpe duro da parte de Deus, ah, isso foi. Já andei dando-lhe umas broncas, mas como Ele é muito compreensivo e paciente, não mandou um raio de merda me pulverizar -e nem o fará- e fica aí, feito um verdadeiro pai, cheio de paciência e compreensão, enviando-me todo tipo de mensagens animadoras sobre confiar nele e esperar com fé... E, passada a primeira tristeza (porque é preciso passar por ela), é isso que vou fazer. Afinal, nunca me dei mal por agir assim.
E aqui vai a crônica de hoje:
Uma coisa nova: uma roupa, uma planta no jardim, uma cortina na sala, uma caixa de lápis de cor, uma almofada no sofá, um jogo de louça, uma toalha, um brinco, um batom... e parece que a nossa vida se enche de novas possibilidades, de novas perspectivas e renovados brios para continuar em frente e até, quem sabe, tentar algo novo, dar uma guinada, recomeçar. Ano novo, o jardim recém aparado e regado, a estréia do vestido ou a primeira pincelada com a caixa nova de gouache e parece que algo mágico acontece e o universo inteiro se transforma, deixando-nos felizes feito crianças e repentinamente realizados por causa desta pequena mudança, desta novidade às vezes inesperada, outras longamente almejada e planejada... Então me pergunto, mais uma vez: o que realmente precisamos para ser felizes?.. E vejo que, no fundo, não é mais do que uma sucessão de coisas tão simples e próximas, por vezes tão banais e simples de serem conseguidas, que me parece ainda mais absurda esta luta que travamos a cada dia por mais poder e prestígio, por mais posses e esbanjamento. Na verdade, isto depende das possibilidades e da ambição de cada um, mas em geral somos educados para que ela nos empurre impiedosamente a ter mais e mais para poder mostrar a nossa eficiência e poder neste mundo que se tornou tão acirradamente competitivo e desumano. Pois hoje não basta uma caixa nova de lápis de cor para sermos invadidos pela felicidade de uma estranha e inesperada renovação, pela certeza de alguma promessa prestes a ser cumprida. Não, hoje é preciso o modelo mais vançado de celular ou videogame, a bolsa e os sapatos da griffe mais badalada, o quadro do pintor mais renomado, o carro último modelo, a melhor casa do condomínio fechado, a garota ou garoto mais popular da escola, o conhecido mais influente e articulado... E tudo isto, que será em breve substituído por algo ou alguém melhor, numa corrida desesperada de consumo e busca pelo prestígio, consome todo nosso tempo e a nossa criatividade, a nossa afetividade, e denuncia a nossa falta de auto-estima, a nossa carência, a nossa solidão. Por que precisamos de tanto para satisfazer-nos? E mesmo assim, por que nunca o estamos? Onde termina nosso desejo?... Mais do que isso, qual é o nosso real desejo? Ter? Ser? Estar? Fazer parte? Dominar? Intimidar? Pedir atenção?... Talvez todos eles, talvez um só: ser amado.
Mas, será que é este o caminho certo para consegui-lo?.

sábado, 9 de agosto de 2008

O homem-ogro

E lá vem ele, gordo, mal-ajambrado, balançando sua enorme barriga ao caminhar com a mais absoluta e risível deselegância. Meio careca, com algumas mechas crespas e desordenadas flutuando ao redor do seu crânio oval como se quisessem fugir dali e um nariz desproporcional enfeitando a sua cara, que parece ser feita de sabão derretido. Sempre de chinelos velhos e carregando uma sacola plástica que contém algo de forma indefinida, avança com um ar levemente ameaçador, feito uma bola de boliche à caminho de derrubar os pinos à sua frente... Baixo e vestido com roupas surradas e largas, aproxima-se com a energia de um quebra-gelo singrando a calçada, sua boca de lábios grossos e informes balançando de leve com o vaivém das suas passadas firmes... E atrás dele, uma corte de cachorros sujos e saltitantes latindo e fazendo festa, pulando em cima dele e brigando alegremente para roubar-lhe a tal sacola, que com certeza contém a ração que acabou de comprar na casa agropequária. A cada certo tempo pára e acaricia os cães, fala com eles, sorri e os afasta, brincalhão, para poder continuar caminhando, pois eles mais parecem uma nuvem barulhenta e agitada em sua volta... Surpresa, percebo que os animais mostram-se não temerosos ou ressabiados, mas encantados com a sua presença, e disputam aos pulos e empurrões um afago das suas mãos rudes e desajeitadas. Evidentemente, eles o consideram seu dono e parecem muito satisfeitos com a sua escolha.
Diminuo o ritmo da minha caminhada só para ver onde o tal homem mora, pois todo dia o encontro em meu percorrido matinal, porém até agora sozinho. A aparição dos cachorros é uma total surpresa e, como a atitude -e a quantidade- deles chamou a minha atenção, decido saber um pouco mais sobre ele. Então, finjo parar para amarrar meu tênis na sacada do bar e fico observando. Deve morar por aqui, pois já tirou as chaves do bolso e vai diminuindo o ritmo da marcha. Os cachorros também parecem reconhecer algo familiar e ficam mais agitados ainda. Outros latidos se unem aos deles, provenientes de alguma casa próxima... Pego a minha toalha e sento na bancada vermelha do bar, limpando o suor e suspirando como se estivesse muito cansada, meus olhos discretamente pousados na cena ao lado... O homem pára diante de uma casa de madeira verde, velha e desbotada, com o quintal cheio de mato e pedregulho e o alpendre quase que despencando em cima da pequena e arruinada varanda da frente. Fico surpresa, pois pensei que a casa estivesse vazia, tal é seu ar de abandono. Os antigos moradores -sobre quem já escrevi um texto justamente por causa da transformação que promoveram naquela velha e decadente residência- conseguiram transformá-la numa espécie de casinha de contos de fada, cheia de flores e sinos de vento, um jardim colorido e perfumado, uma nova demão de tinta e novas telhas, calçada limpa e quintal sem mato ou lixo, mas depois que partiram a casa ficou durante um bom tempo sem ser alugada e tudo que eles fizeram -principalmente a muher, dona de uma cratividade sem tamanho- acabou desaparecendo, comido pelo abandono. Por isso a minha surpresa quando vejo o homem abrir o pequeno portão enferrujado e ser recebido por uns três ou quatro cães -um deles com uma das patas dianteiras grotescamemnte retorcida, provável vítima de atropelamento- latindo e pulando euforicamente, saídos de algum canto do quintal quente estéril. Há um breve instante de confusão, pois aqueles que estavam dentro querem sair e os que estão fora querem entrar, mas o homem solta algumas exclamações em voz alta, adejando energicamente, e a ordem é rapidamente restabelecida. Ele dá a volta pela área traseira, cujo telhado também ameaça desabar, enquanto balança a sacola diante dos cachorros e os chama carinhosamente. Eles ficam simplesmente fora de si!... Hora do café da manhã! Aqueles que ficaram na calçada choramingam e tentam pular a grade, latem com desespero e arranham a parede, reclamando a sua parte da refeição, mas o homem não retorna e eles ficam ali, com o olhar fixo na pequena área coberta onde ele desapareceu.
Eu, totalmente envolvida pela cena, me pego também aguardando a volta do homem, junto com os cachorros, pateticamente sentada na mureta do bar, sendo lentamente tomada por uma tremenda decepção... Ainda esperançosa, aguard mais alguns minutos, mas nada acontece. Os cães continuam andando pra cá e pra lá diante da casa, os olhos pendurados na área do fundo, resmungando e apoiando-se na grade sobre as patas traseiras para tentar enxergar alguma coisa. Porém, o homem e seus cachorros parecem ter-se esvanecido lá dentro. Não se ouve um barulho.
Vendo que o tempo transcorre e que nada vai acontecer, decido então continuar a minha caminhada, que já está bastante atrasada por conta deste incidente. Levanto da murada, guardo a minha toalha e, passando entre os animais, que não desistem na sua espera, vou rua acima soltando um profundo e dolorido suspiro de solidariedade com para eles. Chego no final do meu percorrido e é hora de voltar, mas não sei por que capricho decido fazê-lo pela mesma rua pela qual vim. Quer dizer, vou passar novamente diante da casa do homem dos cachorros, movida pela mesma esperança teimosa que fez os cães permanecerem lá... Sorrindo abertamente diante da minha atitude "investigativa", dou meia volta e agora começo a descer a rua com passadas firmes e mais rápidas, apesar do meu cansaço. Meu coração acelera, meus olhos querem enxergar lá na frente, antes do meu corpo chegar. Passaram-se mais de quarenta minutos, mas de longe já avisto os cachorros na frente da casa, mas nada parece ter mudado. Estes animais deveriam receber um prêmio pela sua perseverança... Porém, chegando mais perto, consigo distinguir alguma coisa na calçada, rente ao muro descascado, onde os cães estão amontoados. Então, ao chegar diante da casa me deparo com uma grande tampa de latão cheia de ração e algumas cobertas esgarçadas e pedaços de pano ajeitados a modo de cama junto ao muro. Os cachorros comem animadamente e dois já se apossaram da "suíte" e cochilam em satisfeita beatitude após a refeição... Um enorme asorriso de simpatia por aquele homem-ogro ilumina a minha alma e fico parada ali por alguns minutos, observando os afortunados cachorros que, sujos, pulguentos, magros e normalmente escorraçados de qualquer canto sem nenhuma contemplação, começam a fazer parte de uma família que realmente se importa com eles. Entendo que o homem não os tenha colocado para dentro por causa dos outros que já vivem com ele. Seria uma inesperada invasão de território que com certeza acabaria em briga. Porém, a sua compaixão não os abandona. Pôxa, este cara acabou de ganhar um lugar no altar dos meus santinhos anônimos!.
Nos próximos dias cruzo com ele em várias ocasiões e, ao encará-lo por trás dos meus óculos escuros, percebo que possui um pequeno e lindo par de olhos de um verde cristalino e vivo, como duas faíscas destacando-se em sua face estroncha. Pisco, surpresa, e instintivamente esboço um sorriso de cumprimento, como se aquele detalhe tivesse quebrado algum tipo de encanto. Mais surpreso do que eu, ele responde discretamente e continua seu caminho. Um pouco mais tarde, quando volto da minha caminhada pela avenida, o vejo sentado na mureta do posto de gasolina em frente à casa agropequária, com a sacola de plástico, um cachorro deitado aos seus pés e um outro correndo e pulando pela grama do jardim do posto, jogando-se no seu colo para lamber seu rosto e brincar de roubar-lhe a sacola. Ele sorri, totalmente abstraido em seu silencioso diálogo com o animal, e continua a esperar, gordo e desajeitado, com as poucas mechas morenas alvoroçadas pelo vento frio, feito um paciente e desengonçado Buda urbano... Fico olhando para ele enquanto me afasto e penso em todas as vezes em que devo ter me enganado ao respeito de uma pessoa pelo seu aspecto físico, assim como outros devem ter-se enganado com respeito a mim por causa da minha aparência... Nossa, mas será que as nossas avaliações são todas baseadas neste tipo de equívoco? Não seria raro e, provavelmente, é por isso que a nossa comunicação com os outros anda tão ruim e dá tanta briga e maus-entendidos.
Me viro para ver pela última vez o homem-ogro e seus cachorros e meu coração parece repentinamente aquecido por algum tipo de conforto, nascido da percepção do meu erro e da confirmação de que a feiúra pode ser tremendamemnte compassiva e generosa, talvez justamente por ela não possuir os enfeites e enganos da beleza.

O rio

Bom, hoje vocês vão ter que ter muuuuita paciência porque acordei especialmente inspirada e vou postar duas crônicas bastante extensas, mas que são especiais para mim... Na verdade, tem semana que publicaria uma por dia, mas assim vou acabar ficando sem material e vou encher a paciência de vocês, né? Sempre é bom um pouco de expectativa...
E aqui vai a primeira:
O rio.
De alguns anos para acá não sei por que me sinto tão fascinada pela forma em que as pessoas levam as suas vidas. Já devo ter escrito mais de uma dúzia de vezes sobre isto e, mesmo assim, o tema continua a chamar a minha atenção. É que há algo de tão peculiar e encantador na maneira em que cada um vive, se mexe, come, olha, conversa ou simplesmente fica sentado na varanda ao entardecer, que não consigo para de observar e meditar sobre isto. Cada dia encontro inúmeras pessoas indo ao trabalho, varrendo calçadas, jogando sinuca, levando os filhos à escola, estendendo roupa no varal, bebendo uma cerveja ou almoçando num restaurante, sentadas nos bancos das praças ou passando por mim em suas bicicletas de manhã cedo; arrumando vitrines, enchendo o tanque do carro, aguando as plantas, conversando e rindo em grupos ou caminhando rápido e ensimesmadas, atravessando ruas, pagando contas, apostando na loteria, olhando vitrines com cobiça ou decepção, subindo e descendo de ônibus -lotados ou vazios, segundo o horário- ou aguardando algo ou alguém numa esquina, embaixo de uma marquise, na entrada do shopping... São tantas pessoas fazendo tantas coisas diferentes! E mesmo que algumas estejam fazendo a mesma coisa, cada uma tem seu próprio e especial jeito, seu tom, a sua intensidade, a sua eficiência... O homem que descarrega os enormes cortes de boi do caminhão, levando-os sobre os ombros sem tropeçar nem derrubá-los. O pedreiro que ergue o muro assentando tijolo sobre tijolo até completar uma casa dentro da qual uma família irá morar. O feirante que chega às quatro da manhã para armar a sua barraca de metal e lona e dispor a sua mercadoria de forma atraente para os fregueses. A cozinheira do bar que logo cedo frita os pastéis e as coxinhas e prepara o café para os que vêm toda manhã tomar seu desjejum nas mesinhas de metal. A professora que, com seus livros embaixo do braço, encara mais uma dia de aula, mais uma turma que não está nenhum pouco interessada em suas lições, na sala fria e depredada de uma escola de periferia... E assim segue infinitamente. Olhando para eles sou capaz de afrmar que cada um deve ter a sua história e, sinceramente, eu adoraria escrevê-las todas, porque com certeza cada uma delas possui seu encanto especial. As casas -luxuosas e modernas, ou arruinadas e com quintais tomados pelo mato- silenciosas e perfumadas ou animadas por crianças e cachorros correndo em meio ao lixo esparramado, as varandas onde velhinhos sentam em cadeiras tão decrépitass quanto eles para comer a sua sopa num pote de sorvete usado, ou aquelas cheias de vasos e trepadeiras, que ostentam lindos conjuntos de mesa e cadeiras de metal trabalhado, tudo tema sua peculiar história, é como se tudo e todos -mesmo sem abrir a boca ou sequer possuir uma- falassem para mim e me contassem seus segredos. E eu não consigo deixar de ouvi-los nem deixar de querer escrevê-los, pois eles sempre trazem uma mensagem, significam alguma coisa, um tipo de aprendizado, de interação, de compreensão sobre como as pessoas funcionam, como as situações acontecem. Há algo sobre respeito e compaixão, sobre diversidade, sobre valorização, sobre ser um com o outro, sobre os papéis que desempenhamos no plano de Deus, sobre a importância dos uns para os outros -mesmo se raramente nos damos conta disto- sobre prioridades, opções e escolhas, sobre talentos, perdas, ganhos, fracassos e vitórias. Há um universo de vida pulsante, de esforço, de esperança, de luz e trevas em cada ação, em cada pensamento e intenção. Todos buscam, todos querem, todos vivem, cada qual do seu feitio, certo ou errado, mas vivem e lutam, perseguem, crescem, procriam, envelhecem, morrem e, mesmo assim, continuam a viver, pois são uma gota no rio da existência, que está sempre em movimento e renovação. Uma gota, uma vida inteira, tudo e nada num sopro que mal conseguimos perceber... Por isso há que prestar atenção, abrir os olhos e a alma, escutar as mensagens e meditar sobre elas. Por isso há que viver junto com tudo que existe e deixar serenamente que o rio nos leve até o nosso destino final.

sábado, 2 de agosto de 2008

Tudo e nada

"A vida no vale nada. A vida vale tudo. Estes dois opostos encontraram-se na minha mente logo após desligar o celular, enquanto tentava segurar meu coração e procurava uma cadeira para sentar. Vradson acabara de me contar o motivo pelo qual Alison, um outro aluno, não havia comparecido à aula de domingo. Ele tinha falecido naquele dia mesmo, num acidente de carro que decepara a sua cabeça... Enquanto Vadson falava, com a voz embargada, a imagem do Alison, gordo, sorridente e muito entusiasmado durante a sua primeira aula, vinha uma e outra vez à minha cabeça, que se negava a aceitar a notícia. Ele era tão simpático, tão alto-astral, com aqueles olhinhos brilhantes e infantis! Estava tão cheio de planos, disposto a percorrer novos caminhos, a experimentar novas sensações, a aprender e melhorar seus dotes de ator! A gente até brincou com ele ao vê-lo suar rios e estralar as juntas durante os exercícios, assegurando-lhe que com certeza iria perder alguns quilinhos após umas semanas de aula... E ele ria, bem-humorado, e concordava conosco. Eu a té escrevi um monólogo para ele e iria lhe propor, naquele domingo, que o montasse para a nossa apresentação em agosto!... O texto tratava de um rapaz que morre e se encontra com Deus, não sem antes passar por alguns sustos e negociações e receber algumas explicações e revelações... Meu Deus, que ironia! Me arrepio só de lembrar...
"Ninguém morre na véspera", diz o ditado, e é a mais pura verdade. Por isso a vida não vale nada, porque não sabemos como nem quando vamos perdê-la, e vale tudo, pois por essa mesma razão, devemos aproveitá-la a cada instante dando o melhor de nós mesmos, desfrutando e abraçando com paixão e honestidade cada pequena oportunidade que ela nos oferece. Eu não sei se amanhã, apesar de todos meus cuidados, vou atravessar a rua e um caminhão vai passar por cima de mim e me transformar numa mancha no asfalto, ou se, daqui a cem anos, ainda vou estar por aqui zanzando, escrevendo em meu blog e dando as minhas caminhadas matinais para abaixar a glicemia e buscar inspiração... O Alison sabia? Desconfiou de alguma coisa no instante em que entrou naquele carro?... Com certeza, não. E de um segundo para outro, sem nenhum aviso, todos seus planos, até os mais imediatos, transformaram-se em pó, deixaram de existir na história da humanidade. Sua existência parou ali, seu corpo se foi, a velhice não o alcançou. Nâo vai mais vir na aula e nos encantar com a sua alegria e disposição, não o veremos melhorar a sua performance, fazer devoluções, improvisações, construir personagens, decorar textos ou dar idéias para uma montagem... Nem tive tempo de anotar seu sobrenome na lista de chamada, a sua matrícula ficou sem pagar. Só tenho a sua imagem generosa e algo desengonçada se movimentando pela sala - suando às bicas e limpando o rosto com a manga da camiseta- e o som da sua voz, ainda a de um adolescente, falando sobre a sua amiga que mora no Japão -ex aluna minha também- e das peças que encenava quando fazia parte do grupo de teatro da sua igreja.... Nada mais me resta dele. Nada dele ficou para ninguém, a não ser a sua lembrança... Mas, e não é somente isto que restará de nós, afinal?"