sábado, 9 de agosto de 2008

O homem-ogro

E lá vem ele, gordo, mal-ajambrado, balançando sua enorme barriga ao caminhar com a mais absoluta e risível deselegância. Meio careca, com algumas mechas crespas e desordenadas flutuando ao redor do seu crânio oval como se quisessem fugir dali e um nariz desproporcional enfeitando a sua cara, que parece ser feita de sabão derretido. Sempre de chinelos velhos e carregando uma sacola plástica que contém algo de forma indefinida, avança com um ar levemente ameaçador, feito uma bola de boliche à caminho de derrubar os pinos à sua frente... Baixo e vestido com roupas surradas e largas, aproxima-se com a energia de um quebra-gelo singrando a calçada, sua boca de lábios grossos e informes balançando de leve com o vaivém das suas passadas firmes... E atrás dele, uma corte de cachorros sujos e saltitantes latindo e fazendo festa, pulando em cima dele e brigando alegremente para roubar-lhe a tal sacola, que com certeza contém a ração que acabou de comprar na casa agropequária. A cada certo tempo pára e acaricia os cães, fala com eles, sorri e os afasta, brincalhão, para poder continuar caminhando, pois eles mais parecem uma nuvem barulhenta e agitada em sua volta... Surpresa, percebo que os animais mostram-se não temerosos ou ressabiados, mas encantados com a sua presença, e disputam aos pulos e empurrões um afago das suas mãos rudes e desajeitadas. Evidentemente, eles o consideram seu dono e parecem muito satisfeitos com a sua escolha.
Diminuo o ritmo da minha caminhada só para ver onde o tal homem mora, pois todo dia o encontro em meu percorrido matinal, porém até agora sozinho. A aparição dos cachorros é uma total surpresa e, como a atitude -e a quantidade- deles chamou a minha atenção, decido saber um pouco mais sobre ele. Então, finjo parar para amarrar meu tênis na sacada do bar e fico observando. Deve morar por aqui, pois já tirou as chaves do bolso e vai diminuindo o ritmo da marcha. Os cachorros também parecem reconhecer algo familiar e ficam mais agitados ainda. Outros latidos se unem aos deles, provenientes de alguma casa próxima... Pego a minha toalha e sento na bancada vermelha do bar, limpando o suor e suspirando como se estivesse muito cansada, meus olhos discretamente pousados na cena ao lado... O homem pára diante de uma casa de madeira verde, velha e desbotada, com o quintal cheio de mato e pedregulho e o alpendre quase que despencando em cima da pequena e arruinada varanda da frente. Fico surpresa, pois pensei que a casa estivesse vazia, tal é seu ar de abandono. Os antigos moradores -sobre quem já escrevi um texto justamente por causa da transformação que promoveram naquela velha e decadente residência- conseguiram transformá-la numa espécie de casinha de contos de fada, cheia de flores e sinos de vento, um jardim colorido e perfumado, uma nova demão de tinta e novas telhas, calçada limpa e quintal sem mato ou lixo, mas depois que partiram a casa ficou durante um bom tempo sem ser alugada e tudo que eles fizeram -principalmente a muher, dona de uma cratividade sem tamanho- acabou desaparecendo, comido pelo abandono. Por isso a minha surpresa quando vejo o homem abrir o pequeno portão enferrujado e ser recebido por uns três ou quatro cães -um deles com uma das patas dianteiras grotescamemnte retorcida, provável vítima de atropelamento- latindo e pulando euforicamente, saídos de algum canto do quintal quente estéril. Há um breve instante de confusão, pois aqueles que estavam dentro querem sair e os que estão fora querem entrar, mas o homem solta algumas exclamações em voz alta, adejando energicamente, e a ordem é rapidamente restabelecida. Ele dá a volta pela área traseira, cujo telhado também ameaça desabar, enquanto balança a sacola diante dos cachorros e os chama carinhosamente. Eles ficam simplesmente fora de si!... Hora do café da manhã! Aqueles que ficaram na calçada choramingam e tentam pular a grade, latem com desespero e arranham a parede, reclamando a sua parte da refeição, mas o homem não retorna e eles ficam ali, com o olhar fixo na pequena área coberta onde ele desapareceu.
Eu, totalmente envolvida pela cena, me pego também aguardando a volta do homem, junto com os cachorros, pateticamente sentada na mureta do bar, sendo lentamente tomada por uma tremenda decepção... Ainda esperançosa, aguard mais alguns minutos, mas nada acontece. Os cães continuam andando pra cá e pra lá diante da casa, os olhos pendurados na área do fundo, resmungando e apoiando-se na grade sobre as patas traseiras para tentar enxergar alguma coisa. Porém, o homem e seus cachorros parecem ter-se esvanecido lá dentro. Não se ouve um barulho.
Vendo que o tempo transcorre e que nada vai acontecer, decido então continuar a minha caminhada, que já está bastante atrasada por conta deste incidente. Levanto da murada, guardo a minha toalha e, passando entre os animais, que não desistem na sua espera, vou rua acima soltando um profundo e dolorido suspiro de solidariedade com para eles. Chego no final do meu percorrido e é hora de voltar, mas não sei por que capricho decido fazê-lo pela mesma rua pela qual vim. Quer dizer, vou passar novamente diante da casa do homem dos cachorros, movida pela mesma esperança teimosa que fez os cães permanecerem lá... Sorrindo abertamente diante da minha atitude "investigativa", dou meia volta e agora começo a descer a rua com passadas firmes e mais rápidas, apesar do meu cansaço. Meu coração acelera, meus olhos querem enxergar lá na frente, antes do meu corpo chegar. Passaram-se mais de quarenta minutos, mas de longe já avisto os cachorros na frente da casa, mas nada parece ter mudado. Estes animais deveriam receber um prêmio pela sua perseverança... Porém, chegando mais perto, consigo distinguir alguma coisa na calçada, rente ao muro descascado, onde os cães estão amontoados. Então, ao chegar diante da casa me deparo com uma grande tampa de latão cheia de ração e algumas cobertas esgarçadas e pedaços de pano ajeitados a modo de cama junto ao muro. Os cachorros comem animadamente e dois já se apossaram da "suíte" e cochilam em satisfeita beatitude após a refeição... Um enorme asorriso de simpatia por aquele homem-ogro ilumina a minha alma e fico parada ali por alguns minutos, observando os afortunados cachorros que, sujos, pulguentos, magros e normalmente escorraçados de qualquer canto sem nenhuma contemplação, começam a fazer parte de uma família que realmente se importa com eles. Entendo que o homem não os tenha colocado para dentro por causa dos outros que já vivem com ele. Seria uma inesperada invasão de território que com certeza acabaria em briga. Porém, a sua compaixão não os abandona. Pôxa, este cara acabou de ganhar um lugar no altar dos meus santinhos anônimos!.
Nos próximos dias cruzo com ele em várias ocasiões e, ao encará-lo por trás dos meus óculos escuros, percebo que possui um pequeno e lindo par de olhos de um verde cristalino e vivo, como duas faíscas destacando-se em sua face estroncha. Pisco, surpresa, e instintivamente esboço um sorriso de cumprimento, como se aquele detalhe tivesse quebrado algum tipo de encanto. Mais surpreso do que eu, ele responde discretamente e continua seu caminho. Um pouco mais tarde, quando volto da minha caminhada pela avenida, o vejo sentado na mureta do posto de gasolina em frente à casa agropequária, com a sacola de plástico, um cachorro deitado aos seus pés e um outro correndo e pulando pela grama do jardim do posto, jogando-se no seu colo para lamber seu rosto e brincar de roubar-lhe a sacola. Ele sorri, totalmente abstraido em seu silencioso diálogo com o animal, e continua a esperar, gordo e desajeitado, com as poucas mechas morenas alvoroçadas pelo vento frio, feito um paciente e desengonçado Buda urbano... Fico olhando para ele enquanto me afasto e penso em todas as vezes em que devo ter me enganado ao respeito de uma pessoa pelo seu aspecto físico, assim como outros devem ter-se enganado com respeito a mim por causa da minha aparência... Nossa, mas será que as nossas avaliações são todas baseadas neste tipo de equívoco? Não seria raro e, provavelmente, é por isso que a nossa comunicação com os outros anda tão ruim e dá tanta briga e maus-entendidos.
Me viro para ver pela última vez o homem-ogro e seus cachorros e meu coração parece repentinamente aquecido por algum tipo de conforto, nascido da percepção do meu erro e da confirmação de que a feiúra pode ser tremendamemnte compassiva e generosa, talvez justamente por ela não possuir os enfeites e enganos da beleza.

Um comentário:

Vradson Castro disse...

Muitas vezes mesmo que involuntariamente, nos pegamos criticando alguém por sua aparência... na maioria das vezes nem tentamos sabem o que se passa pela cabeça daquela pessoa. Julgamos as pessoas tanto por questão de vestuário quanto por fisionomia, mas julgar não quer dizer interpretar. Pra se interpretar algo, devemos pesquisar a fundo a sua origem e o motivo do qual levou aquela pessoa a ter certas marcas de expressão ou usar certos trajes. Realmente não é legal cuidar da vida dos outros, mas não critique também se não souber. Não só pra pessoas mas pra tudo, uma critica só vale se tem um argumento plausível e uma solução!

Adorei o texto Paz, sempre que puder u deixo algum comentário... beijoss...