sábado, 30 de agosto de 2008

Casas

As casas, como nós, também vão adquirindo cicatrizes ao longo do tempo: enchem-se de ferrugem, rachaduras, manchas, descascados e remendos; o corredor lateral ou o quintal do fundo vão sendo tomados por caixas, móveis velhos, vasos quebrados, suportes de metal, restos de material de reforma, ferramentas e um monte de tralha que não sei por quê as pessoas têm dó de jogar fora. A construção nova e bem definida na qual fomos morar há dez anos foi se transformando, adquirindo novos contornos, cores e cheiros por causa da nossa estadia nela. Surgiram manchas, cantos, prateleiras, quartinhos, canteiros, grades, áreas, vasos e degraus que foram aos poucos mudando a sua fisionomia original. Uma plácida e condescendente desordem espalhou-se pelos cômodos, pois cada habitante foi arrumando as suas coisas de acordo com as suas necessidades ou estados de espírito. Assim, parece que cada parte da casa tem um pedaço da personalidade de seus moradores, o que lhe confere um ar eclético e por vezes caótico que é tremendamente íntimo e cheio de significados. A rotina doméstica impões rituais que vão ocupando serena e definitivamente os espaços, tornando-os por isso muito especiais e amados, como portos seguros em meio às mudanças e correrias do mundo lá fora... Entrar na cozinha e deparar-se com a fileira de potes de mantimentos, já gastos e medio descorados, ou chegar da rua no fim da tarde e encontrar na sala aqueles mesmos sofás de almofadas informes, com pequenas manchas nos braços e a mesinha de centro com os pés lascados pelas mordidas do cachorro, sentar à mesa e descobrir os mil arranhões e manchas na sua superfície e as marcas de velhos molhos de tomate ou bolo na toalha, ver-se rodeado pelos imãs da geladeira, os vidrinhos de condimentos, os panos de prato , a vasilha de água dos cachorros e as fotografias no balcão, cujos puxadores originais não existem mais, nos dá uma uma sensação de maravilhosa estabilidade e segurança, de certeza e aconchego que não sentimos em nenhum outro lugar. Todos os defeitos e marcas que a nossa casa foi adquirindo ao longo do tempo -seqüelas da nossa existência nela- contam a nossa história e mostram a nossa personalidade, unindo-nos a ela com laços de uma força que jamais imaginaríamos. Nem sempre são transformações planejadas ou acontecidas de maneira agradável, mas são, certamente, inevitáveis, pois a nossa casa -a construção de alvenaria, ferro, madeira e vidro- não é insensível ao nosso existir. Sempre deixamos marcas por onde passamos, o que será então do lugar no qual moramos anos e anos!...
Gosto de casas novas e cheirando a tinta e argamassa, com seus jardins planejados e cada móvel e enfeite em seu lugar, sem armários cheios de tralha nem manchas no chão da cozinha, tudo combinando, nada sobrando, arrumadas como para uma sessão de fotos de alguma revista de decoração... Mas, definitivamente, prefiro aquelas que têm história para contar, que se orgulham -ou não- de mostrar as suas manchas, seus remendos, suas rachaduras e bagunças, suas portas que rangem, suas áreas desordenadas, seus quartos cheios de persponalidade e significado, de objetos queridos... Sempre me lembro daquela sensação de ausência e falta de aconchego que tomava conta de mim cada vez que adentrava em nossa nova casa, ou quando levantava pela manhã e ia até a cozinha preparar o café. Estava tudo tão imaculado, tão perfeito, tão silencioso! Era uma virgindade perturbadora, fria, como se aquele prédio na verdade não tivesse dono. Éramos completos estranhos: eu, acanhada, e ele, silencioso e expectante. Mas era tão difícil travar intimidade com aquela perfeição!... Demorei um bom tempo para me sentir forte e capaz o suficiente como para impor meu carisma àqueles cômodos, àquele jardim, àquela área, ao meu próprio quarto; para que o ar começasse a ter nosso cheiro e as paredes nosso som e cor, para que o chão se acostumasse com os nossos passos e o tempo ali dentro tivesse o nosso ritmo.
Hoje caminho pela casa e sinto como se estivesse fazendo-o dentro de mim mesma. É meu território, meu refúgio, parte da minha identidade, e me orgulho de cada marca que nela deixei e vou deixar ainda, pois trata-se da minha vida, da minha história, que está transcorrendo entre estas paredes, transformando-as num fiel reflexo do que sou.
Casas novas estão mortas, até o dono impregnar-lhes a sua personalidade. Casas velhas estão vivas porque já existiram junto com seus habitantes e deles sabem tudo.

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