sábado, 6 de setembro de 2008

Contemplação

Finalmente a correria do festival de teatro da cidade terminou e estou com um pouco mais de tempo para voltar às minhas observações e reflexões, que são a matéria prima destas crônicas. Não vou estar mais pendente de cenários, figurinos, dicção, maquiagem ou interpretação, mas das pessoas na rua, dos cachorros, as crianças, as árvores, as roupas nos varais e os pássaros no céu. Vou poder voltar a ficar parada observando a vida ao meu redor, aprender com ela e contar sobre isto para vocês... Nâo que não gostei de ser jurado do festival, pelo contrário, foram duas semanas emocionantes -apesar de extremamemnte cansativas- e espero que o trabalho não pare, pois adoro estar ocupada produzindo, ensinando, despertando potenciais, abrindo portas, recebendo alunos e vendo-os crescer e se tornar seres humanos melhores como conseqüência do seu contato com a arte. Isso é muito bom, e como temos uma chefa que possibilita tudo isso, eu não poderia estar mais feliz por ter taaaanto trabalho. É realmente gratificante trabalhar assim, mesmo numa sala esburacada, com ventiladores que não funcionam e um banheiro lá do outro lado do prédio... O fato de ver a transformação, a união e a generosidade destes alunos faz tudo isso valer a pena, acreditem.
Bom, e aqui vai a crônica de hoje:
Não sei por quê gosto tanto de ficar observando as pessoas e os lugares onde moram. Há um quê de revelação, de fala, de símbolos e sinais em tudo isso que me deixa totalmente fascicnada e me leva a profundas reflexões sobre a existência, a história que construímos, o legado que deixamos, sobre quem somos e o que procuramos e sobre os meios dos quais nos utilizamos para consegui-lo. A humanidade está em constante movimento; ela busca, se transforma, transforma o entorno, luta, vive e sobrevive, ganha e perde, é sublime, é abjeta, se comunica, se esconde... E tudo isso se reflete não só no lugar onde mora, mas também na roupa que veste, na comida que leva à boca, nas palavras e gestos que utiliza ao se expressar, no local onde trabalha, no tipo de trabalho que desenvolve, nos olhares e fisionomias. E é justamente este reflexo o que me fascina e me faz permanecer quase que em constante contemplação e meditação, analisando e chegando à conclusõses às vezes surpreendentes, porém sempre claras e fortes, que me ajudam em minha própria existência, mesmo se nem sempre são muito positivas.
Adoro quintais, varais de roupa que enchem o ar com seu perfume, vasos de avencas, áreas com cadeiras e mesas, grama com estátuas de sapos e anões, casinhas de cachorros, canários na janela, jardins confusos e hortas no corredor. Me encanto com o cheiro do feijão cozinhando, o som da panela de pressão, a novela da noite, o churrasco de domingo e as cadeiras e garrafas espalhadas pela área, a lavagem sagrada da calçada que deixa aquele cheirinho de detergente floral no ar. Que visão agradável a dos vizinhos reunidos numa ciranda de cadeiras na calçada, aproveitando a brisa do começo da noite! Que sensação gostosa a de encontrar o sorveteiro rodeado de crianças, as duas evangélicas dando um tempo na sua missão para comer salgado e beber refrigerante de saquinho, os cachorros deitados preguiçosamente na sombra, a velhinha aguando seus vasos de pneu e latas de tinta... É tão bom ver os pedreiros voltando para casa, banho tomado e sacola no ombro, deixando para atrás as construções silenciosas e imóveis, à caminho de seu prato de arroz com feijão e bife -quando há bife...
Não consigo explicar esta sensação que toma conta de mim toda vez que paro e fico por alguns minutos observando alguém, uma casa, uma sala com a sua mobília e seus quadros e enfeites pela janela aberta, um jardim de canteiros demarcados por pedras pintadas de branco, um catador de papelão empurrando seu carrinho mal-ajambrado, lotado além das bordas, rua acima, seguido pelo seu fiel companheiro, o vira-latas... E o que dizer do pessoal que espera em frente à igreja a chegada do ônibus especial que os levará de volta à periferia, de onde saíram pela manhã bem cedo, trajando suas melhores roupas e bijuterias, para descer até a cidade fazer as compras do mês, passear, conhecer as novidades, comer um cachorro-quente na praça e encontrar seus companheiros de aventura?... Aguardam em animados grupos, apesar do cansaço evidente em seus rostos, cheios de sacolas, pacotes e caixas, bebês chorões em seus carrinhos, restos de lanches e refrigerante que passam de mão em mão, crianças despenteadas e suadas, com as roupas já sujas e amarfanhadas, sapatos numa mão e o brinquedo de 1,99 na outra, que correm e gritam sem parar, cheios ainda de uma energia invejável; mães de sombrinhas, bolsas e sapatos coloridos e empoeirados, disputando aos brados e gargalhadas a chance de contar tudo que viram e ouviram, feito crianças maravilhadas e invejosas, suas vozes rudes ecoando pelo quarteirão e invadindo a escura e silenciosa igreja atrás delas. Os homens mais quietos, fumando e comentando as novidades em grupos separados, carteira vazia, rostos desconfiados ou ávidos, barba feita, cabelo com gel, um leve cheiro de colônia exalando das suas roupas domingueiras...
É muita coisa, muita gente, muitas situações, uma mais fascinante do que a outra, impossível de passarem despercebidas para mim. É como dar um passo dentro das vidas alheias para interpretá-las, para senti-las ou escutá-las, para aprender sobre humanidade, sobre sonhos, sobre lutas, diversidade e igualdade. É para pensar, para crescer e compreender, para aceitar, para não esquecer o milagre da vida, que acontece a cada segundo em todo lugar.
Com certeza este dom de contemplação e reflexão que me foi dado, esta capacidade de penetrar e sentir o outro como se fosse eu mesma é para isto, para não esquecer da humanidade que me rodeia e da qual faço parte.

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