Bom, e aqui vai a crônica de hoje:
Não sei por quê gosto tanto de ficar observando as pessoas e os lugares onde moram. Há um quê de revelação, de fala, de símbolos e sinais em tudo isso que me deixa totalmente fascicnada e me leva a profundas reflexões sobre a existência, a história que construímos, o legado que deixamos, sobre quem somos e o que procuramos e sobre os meios dos quais nos utilizamos para consegui-lo. A humanidade está em constante movimento; ela busca, se transforma, transforma o entorno, luta, vive e sobrevive, ganha e perde, é sublime, é abjeta, se comunica, se esconde... E tudo isso se reflete não só no lugar onde mora, mas também na roupa que veste, na comida que leva à boca, nas palavras e gestos que utiliza ao se expressar, no local onde trabalha, no tipo de trabalho que desenvolve, nos olhares e fisionomias. E é justamente este reflexo o que me fascina e me faz permanecer quase que em constante contemplação e meditação, analisando e chegando à conclusõses às vezes surpreendentes, porém sempre claras e fortes, que me ajudam em minha própria existência, mesmo se nem sempre são muito positivas.
Adoro quintais, varais de roupa que enchem o ar com seu perfume, vasos de avencas, áreas com cadeiras e mesas, grama com estátuas de sapos e anões, casinhas de cachorros, canários na janela, jardins confusos e hortas no corredor. Me encanto com o cheiro do feijão cozinhando, o som da panela de pressão, a novela da noite, o churrasco de domingo e as cadeiras e garrafas espalhadas pela área, a lavagem sagrada da calçada que deixa aquele cheirinho de detergente floral no ar. Que visão agradável a dos vizinhos reunidos numa ciranda de cadeiras na calçada, aproveitando a brisa do começo da noite! Que sensação gostosa a de encontrar o sorveteiro rodeado de crianças, as duas evangélicas dando um tempo na sua missão para comer salgado e beber refrigerante de saquinho, os cachorros deitados preguiçosamente na sombra, a velhinha aguando seus vasos de pneu e latas de tinta... É tão bom ver os pedreiros voltando para casa, banho tomado e sacola no ombro, deixando para atrás as construções silenciosas e imóveis, à caminho de seu prato de arroz com feijão e bife -quando há bife...
Não consigo explicar esta sensação que toma conta de mim toda vez que paro e fico por alguns minutos observando alguém, uma casa, uma sala com a sua mobília e seus quadros e enfeites pela janela aberta, um jardim de canteiros demarcados por pedras pintadas de branco, um catador de papelão empurrando seu carrinho mal-ajambrado, lotado além das bordas, rua acima, seguido pelo seu fiel companheiro, o vira-latas... E o que dizer do pessoal que espera em frente à igreja a chegada do ônibus especial que os levará de volta à periferia, de onde saíram pela manhã bem cedo, trajando suas melhores roupas e bijuterias, para descer até a cidade fazer as compras do mês, passear, conhecer as novidades, comer um cachorro-quente na praça e encontrar seus companheiros de aventura?... Aguardam em animados grupos, apesar do cansaço evidente em seus rostos, cheios de sacolas, pacotes e caixas, bebês chorões em seus carrinhos, restos de lanches e refrigerante que passam de mão em mão, crianças despenteadas e suadas, com as roupas já sujas e amarfanhadas, sapatos numa mão e o brinquedo de 1,99 na outra, que correm e gritam sem parar, cheios ainda de uma energia invejável; mães de sombrinhas, bolsas e sapatos coloridos e empoeirados, disputando aos brados e gargalhadas a chance de contar tudo que viram e ouviram, feito crianças maravilhadas e invejosas, suas vozes rudes ecoando pelo quarteirão e invadindo a escura e silenciosa igreja atrás delas. Os homens mais quietos, fumando e comentando as novidades em grupos separados, carteira vazia, rostos desconfiados ou ávidos, barba feita, cabelo com gel, um leve cheiro de colônia exalando das suas roupas domingueiras...
É muita coisa, muita gente, muitas situações, uma mais fascinante do que a outra, impossível de passarem despercebidas para mim. É como dar um passo dentro das vidas alheias para interpretá-las, para senti-las ou escutá-las, para aprender sobre humanidade, sobre sonhos, sobre lutas, diversidade e igualdade. É para pensar, para crescer e compreender, para aceitar, para não esquecer o milagre da vida, que acontece a cada segundo em todo lugar.
Com certeza este dom de contemplação e reflexão que me foi dado, esta capacidade de penetrar e sentir o outro como se fosse eu mesma é para isto, para não esquecer da humanidade que me rodeia e da qual faço parte.
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