sábado, 22 de novembro de 2008

Ligações

Mais um sábado, porém menos cansada e com mais tempo, já que levantei mais cedo e não fiz a minha caminhada, pois ontem à noite acabei indo deitar quase às duas da manhã... Por quê? Fiquei assistindo -pela enêsima vez- "King Kong" e, como todas as outras vezes, chorei feito uma Madalena quando o gorilão despenca do Empire State e a mocinha fica lá em cima, desesperada, olhando ele se arrebentar na calçada lá embaixo... Já vi esta cena infinidade de vezes, em várias versões, e sempre acabo me emocionando. Coisas que têm a ver com animais são meu ponto fraco, definitivamente... E talvez agora estou mais sensível porque um dos meus cachorros, o "Arthur", que já está com 13 anos, está com um sério problema de displacia nas patas traseiras, então de repente não consegue se levantar e alguém -eu, claro- tem que correr para ajudá-lo passando-lhe uma toalha pela barriga e puxando-o para que assim possa ficar em pé... Ai, que dó!... Ele fica tão agradecido e envergonhado da sua incapacidade, me olha com uns olhos úmidos e brilhantes e vem se esfregando nas minhas pernas toda vez que consegue ficar em pé, que só não desando a chorar porque podem pensar que estou ficando maluca...Mas, caramba, o afeto que a gente desenvolve para com os nossos bichos de estimação é uma coisa realmente impressionante!... E uma vez que se tem um, não se pára mais. Quando este morre a gente diz: "Ah, nunca mais", porém, dali a alguns meses, já está levando pra casa um outro e dando-lhe igual ou mais amor do que ao anterior. O segredo é, eu acho, ter consciência de que os animais duram menos do que a gente e que, quando nos deixam, nosso coração deve ficar sossegado porque sabemos que eles foram amados, se divertiram, comeram, foram paparicados e acariciados, alimentados e cuidados da melhor forma possível, então... É o argumento que estou preparando para quando os meus se forem, e acho que vai funcionar, apesar da semana que vou passar chorando e olhando para seus pratos vazios e as suas almofadas e "cheirinhos"... Mas nós os amamos, não amamos? E é isso que conta no fim.
Bom, e a crônica de hoje ( a de cima foi de graça):
Vindo pela rua já dava para ver de longe aquela singular escultura vegetal no jardim da frente da pequena casa amarela. A gente até piscava um par de vezes, como para se certificar de que era isso mesmo e, inevitavelmente, terminava parando diante do portão para admirar aquela original obra de arte: um enorme galo esculpido à tesoura de podar num pinheiro que se erguia, majestoso, bem no meio da grama. O galo do seu Tuta, o jardineiro. Pelo menos duas vezes por mês podiamos ver o homem, de tesoura na mão, aparando com todo esmero e concentração os galinhos que haviam crescido, desfazendo assim os contornos da escultura. Às vezes, ele estava encarrapitado numa escada de madeira, às vezes deitado no chão, em cima de um jornal, outras ajoelhado embaixo da sombreada barriga do galo ou, então, de chapéu de palha para se proteger do sol, dando voltas e mais voltas ao redor da escultura para se cerciorar de que não restase nenhum galho rebelde. Seu Tuta mantinha a sua obra sempre verde a perfeitamente aparada; com chuva ou com sol, lá estava ele, podando-a, todo orgulhoso e recebendo modestamente os elogios de transeuntes e vizinhos (e algumas piadas também). O galo ficou conhecido em toda a cidade e virou uma espécie de ponto de referência para todos.
Algum tempo depois, e aparentemente não satisfeito com esta única escultura, seu Tuta decidiu plantar mais dois pinheiros para se tornarem as suas próximas criações. Uma seria a sagrada família e o burrico e a outra um cogumelo com uma centopéia em cima fumando um narguilé, personagem de "Alice no país das maravilhas". Quando o primeiro pinheiro atingiu o tamanho certo, seu Tuta deu início ao seu paciente trabalho. Esperava sem pressa até que os ramos crescessem para ir cortando-os segundo seu projeto e assim, a sagrada família foi se definindo e aparecendo um pouco mais a cada mês... Todos aguardávamos ansiosos pelo resultado final e estávamos sempre perguntando a ele quando a escultura ficaria pronta. E feito Michelangelo respondia ao Papa toda vez que este o interrogava sobre os afrescos da Capela Sixtina, seu Tuta dizia para nós, sorrindo marotamente: "Só quando ficar pronta"... E prosseguia cortando aqui e ali, olhando em cima e embaixo, arrancando delicadamente as folhinhas rebeldes que insistiam em ficar fora dos contornos da escultura, apreciando de longe, de perto, com olhar crítico e mãos nos lábios, o nascimento da sua criação. Seu Tuta não era um jardineiro muito bom, mas a sua paixão pelas esculturas vegetais e a perfeição com que as executava -para deleite de quem se deparava com elas em algum jardim- desculpava as suas deficiências em nossas gramas e canteiros.
Porém, o tempo foi passando e a escultura não ficava pronta. Inclusive começaram a surgir uns galhos compridos e desordenados no galo e algumas trepadeiras parasitas infiltraram-se sub-repticiamente no meio da sua folhagem, como se seu Tuta tivesse esquecido da apará-lo durante um bom tempo. Foi então que notei que ele não aparecia mais na rua para seu costumeiro passeio de fim de tarde até o bar do seu Pedrinho, onde sentava num banquinho e bebia a sua cerveja gelada jogando conversa fora com os amigos ou disputando algumas partidas de truco ou sinuca. No jardim da casa amarela, os pés do burrinho, já esculpidos, encheram-se de galhos e brotos, acabando por perder as formas, assim como as outras duas figuras e, finalmente, para nosso espanto, começaram a amarelar a secar... Curiosamente, o resto do pinheiro continuava verde, só a escultura escureceu e morreu, perdendo por completo as folhas... Uma tarde, passei em frente ao jardim e vi que tinham-na podado completamente. Foi uma sensação tão esquisita ver aquele espaço vazio!... Olhei então para o galo e percebi que alguns galhos altos escapavam da cauda bem modelada e que o buraco do olho começara a secar também. Tinha todo ele um estranho e lúgubre ar de abandono e mau agouro... Foi quando soube que seu Tuta estava doente. Mal de Parkinson. Logo ele, que precisava tanto das mãos para levar a cabo seus trabalhos!... Fiquei triste mesmo, imaginando a sua frustração e impotência.
O encontrei ainda algumas vezes na rua, andar inseguro, olhar embaçado, mãos trêmulas, pálido e extremamente magro. Eu passava por ele e o cumprimentava com meu mais alegre sorriso, mas ele não mais me respondia. Só murmurava algo ininteligivel e dava um sorriso vazio. Depois, eu passava diante da sua casa, onde o galo tinha perdido quase que totalmente a forma original e era tomado gradativamente por aquele tom marrom escuro e seco que prenunciava a sua morte, e um calafrio me percorria, sem saber por quê.
O tempo passou e eu comecei a ir para o trabalho de ônibus, assim, não encontrei seu Tuta nem vi o estado das suas esculturas durante um bom tempo. Mas um dia em que decidi voltar caminhando para casa percebi, já de longe, aquele terrível vazio no jardim da casa amarela. Cheguei perto e parei, sem acreditar no que via: o enorme pinheiro no qual fora esculpido o galo tinha sido cortado rente ao chão, e agora mostrava apenas um toco seco e endurecido... Foi como receber um tapa no rosto... Nesse momento divisei a nora do jardineiro saindo da casa e decidi me aproximar para perguntar-lhe sobre o que acontecera.
-Nossa, o que foi da escultura? Estava tão bonita!...
-Pois é, morreu.- me respondeu ela -O pinheiro queimou todinho, como se alguém tivesse botado fogo nele.
-Mas ,seu Tuta não vai plantar um outro?- inquiri.
Ela me olhou, surpresa, e perguntou:
-Então você não sabe?...- e acrescentou, triste: -Seu Tuta morreu.
Fiquei parada ali, pasma, tentando acreditar e lembrando dos maus augúrios que sentira no ar quando vi os primeiros sinais da morte do pinheiro. Podia ser tanta coincidência?... Dei os pêsames à moça e ela entro no seu carro, acenou para mim, deu partida e se afastou pela rua abaixo, deixando-me ali, atordoada... Olhei de novo para o pinheiro e de repente senti uma trememnda falta daquele galo verde e pomposo. E me perguntei, espantada: "Pode-se desenvolver uma ligação tão íntima com aquilo que se toca, que se ama, que se produz, ao ponto disto transformar-se no reflexo da própria vida?"... As plantas adoeceram e apodreceram junto com seu jardineiro criador e junto com ele morreram, feito passarinho que definha de tristeza pela falta do dono. Parece que ao faltar-lhe o contato amoroso e a alegria e inspiração de cada pequena poda, os pinheiros pressentiram a agonia e a morte do seu escultor e, sem futuro nem objetivo, abandonaram a vida no mesmo compasso das batidas do coração do homem.
Fui para casa em pesaroso silêncio, pensando nas infinitas ligações de todos os tipos que criamos ao longo da nossa existência e na pouca importância que damos à maioria delas. Mas o que me deixou mais impressionada foi perceber que, a despeito disto, estes elos que se criam parecem indestrutíveis e todas estas ligações acabam permanecendo muito mais próximas do que imaginamos, criando as suas conseqüências, suas lembranças, suas raízes e ensinando-nos as suas lições, e por mais subjetivas que algumas possam parecer, todas são absolutamente reais e têm um objetivo específico em nossas vidas. Num mundo de solitários cibernautas e acirrados combartes por poder e prestígio, o sentido da ligação com algo ou alguém sem nenhum interesse está quase perdido entre nós, mas devemos entender que ligar-se não é enfraquecer e sim tornar-se mais forte e sábio, pois é desta ligação com a diversidade que nos rodeia que nascerá a nossa sabedoria.

sábado, 15 de novembro de 2008

Sábios, reis, artistas, evangelizadores.

Toda vez que posto uma nova crônica gosto de começar contando algo sobre meu dia-a-dia, assim os leitores podem me conhecer mais um pouco e talvez até se identificar com as minhas peripécias e sentimentos. Hoje, porém, havia decidido não escrever nada e publicar só a crônica -não só porque o pc se dedicou a me sabotar a manhã inteira com um letreirinho de "depuração" que apagava tudo que tinha escrito- mas porque não estava lá aquelas coisas de animada. Ontem fui num aniversário e, ao invés de desfrutar da festa e da companhia de pessoas queridas e agradáveis, fiquei quieta e isolada num dos bancos de granito do jardim do prédio, sentindo raiva e frustração por uma situação que não tem solução, e pena de mim mesma -detesto quando sou assaltada por estas crises de auto-compaixão, mas ainda bem que duram pouco- por ter de passar por ela imune, coisa que já deveria ter aprendido, já que ela se alastra por três anos sem nenhum indício, nem sequer microscópico, de mudança ou melhora... Mas, como tudo na vida passa, hoje já acordei contente, dancei a música do radio despertador, conversei com meus velhos cachorros aleijados, respirei fundo o ar fresco e cheio de novos perfumes da manhã, liguei para a minha filha, dei uma boa olhada ao meu redor e me senti novamente disposta e confiante para continuar com as minhas batalhas -grandes e pequenas- para correr atrás de vitórias e não de derrotas ou lamúrias e persistir na paciência, o otimismo e a criatividade para lidar com aquelas situações que não têm saída, pois como bem dizem os árabes: "Se tem solução, para que se preocupar? E se não tem, para que se prpeocupar?"... E, claro, estão absolutamente certos. Nâo vou desperdiçar meu tempo, a minha energia e a minha inspiração neste tipo de coisa quando tem tanta coisa boa ao meu redor! Se olhar para a balança dos prós e dos contras, sem dúvida há uma coisa negativa enchendo um dos pratos, porém, em compensação, no outro as coisas positivas estão caindo pelas tabelas e não posso ser ingrata com Deus ao ponto de desprezar ou esquecer todas elas para me ocupar somente daquela outra que às vezes machuca meu pé, feito um pedregulho que se mexe para lá e para acá, segundo caminho... O negócio então, é continuar andando, sempre para a frente, sempre de olhos e coração bem abertos para não perder nenhum dos milagres que acontecem ao nosso lado para animar-nos, ensinar-nos e fazer-nos crescer.
E aqui vai a crônica de hoje:
A caminho do trabalho hoje de manhã, enquanto tentava fazer um planejamento das minhas atividades na Fundação, encontrei uma mendiga carregando um grande saco de juta cheio de latas vazias e garrafas plásticas -mulher negra, gorda, de cabelos pretos e andar desengonçado- que passou por mim cantarolando. Usava uma camiseta velha e esburacada enrolada na cabeça, vestido largo demais, mesmo para seu corpo rechonchudo, de um tecido mole e surrado, que já tivera estampa florida, todo remendado e sem sor definida, e chinelos gastos -um de cada cor- nos pés de calcanhares rachados e deformados... Primeiro, escutei a sua voz surpreendentemente melodiosa e afinada vindo por trás. Em seguida, senti a vibração poderosa do seu corpanzil se aproximando junto com a música, e logo ela passou por mim, batendo de leve em meu ombro e na minha sacola com seu saco de latinhas e garrafas. Caminhava animadamente, de cabeça erguida e olhos atentos, apesar da evidente dificuldade que o excesso de peso lhe ocasionava, e eu não pude evitar ficar observando-a enquanto se afastava de mim, admirada pelo seu bom humor apesar do seu aspecto miserável e da prpomessa de chuva e frio que pairava sobre nós... Me mantive a uma certa distância atrás dela, o que me permitiu perceber que mancava, fazendo com que as suas costas entortassem perigosamente para a esquerda a cada passada. No entanto, nada na sua atitude demonstrava dor ou aborrecimento, cansaço ou tristeza... De repente, no mei do quarteirão, encontramos uma mulher que vinha com seu saquinho de pão quente e cheiroso saindo da padaria da esquina. De longe, ela olhou para a mendiga e deimproviso abriu um sorriso largo e luminoso e veio tortreando cumprimentá-la como se se tratasse de uma velha amiga que não via fazia muito tempo. Mantendo aquele sorriso cálido e terno e sem se acanhar pelo aspecto da outra, perguntou-lhe pela família, pela saúde, pela vida, e a mendiga respondeu a tudo com a maior naturalidade e, por sua vez, perguntou à mulher pela vida dela, pelo esposo doente e a carreira dos filhos. A mulher fez um suscinto relatório e ambas se despediram com um beijo, continuando em seguida seu caminho sem que a mulher fizesse -para meu desconcerto- nem o esboço de lhe oferecer um ou dois pãezinhos dos que carregava e que despediam um aroma de dar água na boca. E a minha mendiga tampouco fez questão de pedir nem sequer indiretamente... Eu, espantada diante de tal cena, decidi ficar por perto para ver o final desta história, nem que por causa disto chegasse atrasada ao trabalho!.
Mais adiante -eu no encalço da mendiga fazendo de conta que lia calmamente alguma coisa muito importante em minha agenda e fazia anotações igualmente importantes- um senhor de botas e chapéu de feltro parou para cumprimentá-la também, e depois mais duas mulheres e ainda mais uma, que estava indo deixar a filhinha na escola... Minha surpresa e fascinação cresciam a cada um destes inesperados encontros, pois normalmente, todos prefeririam manter-se a distância de alguém como ela, no entanto. Esta mendiga -da qual eu me afastaria discretamemnte se cruzasse com ela na rua pelo seu aspecto sujo e meio grotesco- era conhecida de todo mundo!... Mas, quem diria? Como isso era possível? Afinal, quem era ela para ser tão popular assim?... Então, comecei a me perguntar qual seria a sua história, pois com certeza devia ser bem incomum. Nâo pude deixar de notar que a sua fala era até polida e muito clara, usava as palavras corretamente e a sua pronúncia era como a de alguém que cursou a escola. Seus modos eram afáveis e anacronicamente suaves para alguém com seu tamanho e aspecto. Porém, o mais desconcertante para mim era o fato de que ela parecia conhecer todo mundo intimamente e que isto era recíproco da parte dos que cruzavam com ela... Será que ela já fora vizinha deles? Da mesma igreja? Os filhos estudaram na mesma escola? Freqüentaram as mesmas lojas e mercados, trocaram receitas e confidências no portão ao entardecer ou enquanto esfregavam a calçada?... E qual foi a desgraça absurda e impiedosa que jogou esta mulher na rua para acabar recolhendo latas e garrafas no lixo? No lixo daqueles que, ao parecer, foram seus conhecidos... Mas que ironia cruel... No entanto, e por alguma razão que não cheguei a descobrir, ela não se mostrava infeliz, envergonhada ou revoltada com a sua sorte, pela sua atual posição diante deles, que tinham prosperado e criado família e raizes. Muito pelo contrário, sorria e conversava com todos com a maior naturalidade e sincera alegria, e eles -como se tivessem algum acordo tácito e inviolável- tampouco pareciam sentir-se incomodados ou com pena por causa da sua miséria... O que fez com que eu cogitasse, incrêdula: "Será, então, que foi uma escolha dela e não uma imposição do destino?" Mas, por quê? Qual seria seu propósito? Poderia alguém, sobretudo nestes tempos de ambição e egoismo, escolher por livre e espontánea vontade a rua, a pobreza, a necessidade, e sentir-se feliz com isso?... Instintivamente, veio à minha cabeça a imagem de Francisco de Assis e seus pripmeiros irmãos, que largaram fortouna e família para dedicar-se à probreza evangelizadora e à pacificação... Então, será que eu estava diante de alguém assim? Uma santa, talvez?...
Nesse instante, a mendiga virou a esquina e se afastou alegremente rua acima, balançando seu barulhento saco enquanto eu pensava no quanto ela teria para me ensinar se eu tivesse a coragem, o tempo e a disposição para desviar ou deter meu caminho por algúm tempo e escutá-la. E tive certeza de que seria muita coisa... Mas eu estava em cima d a hora para o trabalho e desta forma deixei passar meu encontro com ela, talvez marcado há muito tempo pelo sábio destino. Bater o cartão, naquela manhã, pesou mais do que aprender o que a vida me reservara para aquele dia.
Há um sábio dentro de cada um de nós, nas mais diferentes áreas, que está sempre pronto para nos ensinar, não importa onde nem quando, se com ações ou palavras, se bem vestido e culto ou em farrapos e usando os tempos verbais errado. Dentro de cada um há um sábio, um rei, um artista, um evangelizador, um professor, e, r esumo, um ser humano com todas as suas qualidades e que não podemos desprezar ou marginalizar pelo fato de não ser parecido conosco, de não ser do "nosso nivel", de não falar corretamemnte ou por ser simples e desajeitado. Nunca se deve perder a chance que o destino coloca diante de nós em cada um destes encontros -às vezes desconcertantes, às vezes surpreendentes, às vezes milagrosos- pois nada sabemos sobre o caminho que cada um percorreu até este encontro, sobre as suas opções, seus dilemas e reflexões, sobre as suas descobertas e conclusões, e tudo isto pode ser uma lição capaz de clarear nossos próprios caminhos. Assim como os outros nada sabem sobre nós e por isso mesmo não queremos que nos julguem só pelas aparências, assim nós tampouco podemos julgar ou descartar quem não conhecemos. Um ser humano é um universo e não podemos rotulá-lo até conhecê-lo por inteiro, fato que é quase impossível, já que ele está sempre em transformação, o que faz com que, na verdade, ninguém possa ser rotulado. Hà que estar sempre aberto aos encontros, aos olhares, aos gestos, às palavras que vêm dos outros, sem nos deixar impressionar pela forma, pois esta é a melhor forma de aprender e crescer.
Julgar e condenar por antecipação é uma tremenda falta de caridade e não faz mais do que pôr em evidência a nossa enorme vaidade e presunção.

segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Quatro vezes por dia

Com um par de dias de atraso e algumas dificuldades para conseguir que o pc escreva em arial - que é a letra que mais gosto- cá estou mais uma vez, após um fim de semana de muito trabalho e muita dor de estômago por conta das porcarías que andei comento só para compensar o cansaço (estou louca pra sair de férias!), porém animada para começar tudo de novo, incluindo a dieta... Bom... Quem não conhece esse papo de segunda?... E aqui vai a de hoje:
"-Se você visse um destes pobres comer, você entenderia por que alimentá-los é a razão da minha vida.- foram as palavras que tentaram explicar a cruzada de caridade de uma mulher de 83 anos para com as aproximadamente mil pessoas que diariamente vão fazer a sua única refeição do dia em sua casa, já faz mais de cinqüenta anos... Franzina, cabelos brancos encaracolados emoldurando a sua face serena, de olhos claros e brilhantes, pele sulcada por todas as rugas da experiência, voz tão pequena e firme quanto a sua estampa, mangas arregaçadas, avental xadrez, colher de pau na mão e um imenso sorriso, entre emocionado e orgulhoso, que parecia alastrar-se pelo recinto todo e dar-lhe outras cores, um outro calor, feito um abraço de mãe... Eu tirei o dedo do controle remoto e parei, encostando-me no sofá, tomada por uma repentina e fascinada curiosidade diante da declaração daquela velhinha que, me pareceu, podia muito bem estar sentada no sofá da sua sala tricotando, assistindo novela ou brincando com os netos ao invés de transitar -já com bastante dificuldade- em meio àquele oceano de panelões fervendo, bacias com frango e macarrão, fornos assando pão e todas aquelas jarras de café e suco, as montanhas de pratos e talheres, copos e guardanapos que entulhavam a pequena cozinha e a área da modesta casa... Abismada, me perguntei quem ainda podia, nestes tempos de total egoísmo e ambição, fazer tamanho sacrifício em prol de qualquer coisa e sem nenhum intuito de se auto-promover com alguma finalidade política ou religiosa. Uma mulher que abria todo dia -há cinqüenta anos!- as portas da sua própria casa para um bando de pessoas miseráveis e esquecidas, sem mostrar o menor receio ou cansaço, era, com certeza, digna de um momento da minha atenção naquele domingo sonolento em que tudo parecia parado e vazio...
A câmera então focalizou um velho, de barba e cabelos desgrenhados, mal vestido, mãos trêmulas a segurar uma terrina de arroz, feijão, macarrão e frango ensopado e a colher de latão, que enfiava, transbordante, na boca desdentada. Estava sentado num canto da área, num banco de madeira onde havia deixado polidamente seu chapéu surrado e desbotado, e olhava alternadamente para a lente e para a terrina fumegante -como se tivesse medo de que esta lhe desaparecesse das mãos- com uns olhos tristes e opacos, humilhados, que lembravam uma criança desapontada: Papai Noel não existe!... Percebi então que aquela era a sua vida, aquela e não outra, e que ele não formava parte do elenco de nenhum filme ou novela, de nenhuma campanha para nos comover e arrancar-nos alguma doação. A fome e o desamparo daquele homem eram reais, a miséria agarrando-se às suas carnes enrugadas feito infames carrapatos, corroendo seus ossos doloridos, seus sapatos esburacados... E ele comia. Levava à boca a colher como quem enfia a própria vida pela goela abaixo, meio envergonhado de ser visto assim, feito algum bicho numa exposição, olhando para nós com aqueles olhos mansos e resignados diante da nossa estupefação e curiosidade, que já devia conhecer muito bem.
-Este é meu cliente mais antigo- disse então a mulher, aproximando-se dele e acariciando-lhe o rosto magro e barbudo. E ele, meio que sorriu sem graça, e continuou a comer metodicamente, com a calada teimosia de quem só quer sobreviver mais um dia, embalado pelo ritmo da sua fome sem fim...
O que aquele velho esperava da vida?, me perguntei, com o coração começando a apertar em meu peito. E a resposta veio instantaneamente: pois era isso mesmo que eu estava vendo, tão somente aquela terrina de comida. Esta era a sua única certeza. A terrina, o pão e o copo de suco. Tâo simples, tão banal, tão sem luxo, sem exigêncas! Para que mais?...Mas, o que tinha acontecido com ele, afinal, como foi que a sua existência havia chegado a isto? Como um ser humano podia se reduzir ao mero ato de comer e mais nada?... Porém, enquanto tentava entender a situação e encontrar alguma resposta, reparei de repente no rosto da mulher junto ao mendigo... Onde eu já tinha visto aquela expressão de bondade absoluta?... Vi a sua mão frágil e de dedos deformados se apoiar, com a extrema delicadeza de quem conhece bem o sofrimento, no ombro do velho e, em seguida, brindar-lhe um dos sorrisos mais deslumbrantes, compassivos e acolhedores que já vi na minha vida... E mais uma vez disse para mim mesma: "Onde já vi esse sorriso?"... O homem então, deixando a colher cheia de macarrão no ar, virou-se para ela e lhe sorriu também, a boca toda lambuzada de molho, e me pareceu que ambos olhares fundiam-se num abraço, numa espécie de comunhão que nada poderia explicar ou descrever. Aquela era, com certeza, uma cena tremendamente conhecida, mais parecida com uma revelação... Pois naquele instante, olhando para aqueles dois na tela da televisão, tão distantes e tão próximos ao mesmo tempo, duas histórias unidas pelo mesmo amor, entendi que o que verdadeiramente importava e atraia o mendigo não era só a terrina de comida e o pão -que preenchiam a sua fome física, sim, o que é uma questão de sobrevivência- mas o carinho, o olhar, o abraço cálido e compreensivo desta mulher que não só abria as portas da sua pequena casa e despensa, mas as portas do seu coração para este exército ignorado de esquecidos, famintos, negligenciados, marginalizados de todas as idades, cores, lugares e credos, que traziam até ela as suas histórias de fracasso e decepção, de erros, perdas ou arrependimento e saudades... E a todos ela acolhia sem questionar, sem cobrar, sem dar sermão ou pedir mudanças. Simplesmente acolhia, e este me pareceu ser o ingrediente mais saboroso e atrativo, o tempero especial e diferente que fazia do seu cardápio algo vital para cada dia nas vidas de todos eles.
"Esta mulher", pensei, piscando uma e outra vez para não deixar as lágrimas caírem, "faz mesmo alguma diferença neste planeta".
E qual a recompensa dela por todo aquele esforço e sacrifício, pela ininterrupta dedicação e persistência, ao longo de cinqüenta anos, arrecadando alimentos e roupas para seus protegidos (seus "clientes", como ela os chamava, rindo)... Pois era, justamente, a visão que nós, telespectadores, estávamos tendo: a fome saciada, a certeza do alimento hoje e amanhã, a acolhida, o sorriso. O abraço à caridade, a partilha alegre desta pequena refeição quente e gostosa, preparada com carinho, somente para eles... O estômago cheio, o coração aquecido, a alma ressuscitada naquele gesto básico, primário, elementar e sagrado que, para a maioria de nós, passa despercebido quatro vezes por dia.

sábado, 1 de novembro de 2008

A estrela

Após o temporal, a calma ressurge, lenta e tímida; se espreguiça e sai do seu esconderijo, pois foi incapaz de enfrentar a fúria do vento e das águas e teve de se proteger ela mesma, abandonando-nos à nossa sorte. Por onde ando vejo casas destelhadas, com jardins cheios de entulho e sujeira, árvores humilhadas, depenadas, mutiladas; montanhas de folhas secas e galhos, ninhos desfeitos, ovos despedaçados e filhotes mortos... E é curioso como este cenário de catástrofe contrasta hoje com o sol que reina, indiferente à nossa desgraça, num céu cristalino, com as nuvens que parecem brincar preguiçosamente e o perfume das mangueiras que impregna o ar fresco e paradoxalmente cheio de promessas. O céu e o inferno, como sempre, se misturam, se confundem diante dos meus olhos, e acabam por encontrar seu equilíbrio para que nós, pobres mortais, não desistamos de continuar vivendo e lutando.
Bom, esta foi uma pequena crônica de brinde, porque a de hoje, na verdade, é outra. Mas é que fiquei verdadeiramente impressionada com este último temporal pois, pela primeira vez, pude enxergar a sua beleza violenta e desgovernada, destrutora, a sua passagem veloz e barulhenta, que deixou atrás de si este cenário apocalíptico sobre o qual o homem se levanta e reinventa, mais uma vez, a sua existência, reencontrando a paz e a força entre os destroços e o lixo.
E aqui vai a crônica de hoje:
Um dia no palco, vestida e maquiada feito uma pequena obra de arte, recitando com paixão um texto inspirado sob os holofotes coloridos, envolta pelo clima mágico da história, da música e das outras personagens e, no fim, calorosamente aplaudida pelo público... No outro, sentada num caixote de madeira atrás da pequena banca de metal e tábuas onde estão expostas cenouras, beterrabas, maços de salsinha, hortelã e cebolinha, alguns de couve e batatas. Gorro de lã, agasalho grande demais, tênis surrados, expresão de sono e fome no rostinho miúdo e moreno, de grandes olhos puxados e sonhadores, corpo franzino encolhido sob o frio da manhã. Deve ter chego na feira de madrugada, com somente um café no estômago, para ajudar o pai a montar a barraca e ajeitar as verduras em cima da lona amarela...
A vejo ao passar com meu carrinho de compras, e aceno para ela, que em resposta me sorri com aquela pincelada de tristeza distante que já lhe conheço, pois é uma das alunas do curso de teatro infantil da Fundação Cultural. Me afasto, esquivando a multidão que enche a feira naquela hora -todos vindo na direção contrária à minha, ao que parece!- mas a sua imagem permanece na minha mente, ainda mais nítida do que todo o resto que me rodeia... De novo, lembro dela na noite anterior, feito uma estrela num outro céu, uma borboleta num universo tão dramaticamente diferente deste de hoje, falando e se mexendo naquele cenário inventado, desfilando nas cenas da peça que, por algum tempo, a rouba do seu palco habitual, rude, tingido de sacrifício e provações, feito de terra e rua, de chão batido, de roupas herdadas, cara lavada e poucas palavras... Não sei por quê de alguma forma me surpreende encontrá-la aqui. Talvez seja porque não estou certa de aonde ela é mais real, se no teatro ou na feira. Talvez um pouco em cada um destes universos?... E então me pergunto: qual é o mundo real para cada um de nós? Onde nos sentimos melhor, mais amados, valorizados, admirados, acolhidos? E para esta menina, como funciona este jogo bizarro? Sente-se acanhada por me encontrar aqui, sabendo que sou um dos jurados que dará nota à sua performance e à sua peça? Ou lhe sou indiferente porque, afinal, em nenhum instante perde realmente a consciência de que tudo não passa de um sonho?... Me olha como se reconhecesse sem lugar a dúvidas quais são os nossos papéis nesta história e, para meu espanto, mostra-se conformada com o seu, apesar daquela nuvem no fundo dos seus olhos.
Na volta, paro diante da sua barraca e a parabenizo pelo desempenho da noite anterior, e compro um maço de cenouras e outro de hortelã. Ela agradece, enquanto sua carinha de olhos aveludados se ilumina brevemente, e se despede com um sorriso franco e cativante, quase o mesmo que exibia no momento em que cumprimentava o público desde o palco. Porém, hoje ele tem umas gotas de amargor, de resignação e pesar, de realidade, de decepção até. Recebe meu dinheiro e torna a sentar no caixote, encolhendo-se vagarosamente, como se voltasse para o lugar onde as suas lembranças permanecem intocadas, gloriosas e cheias de luz e calor, preciosas, perfeitas. Quase que um sonho que vai ser esquecido ao acordar, mas ela sabe que aquilo tudo foi verdade, que por uma noite foi a estrela mais brilhante do céu e que a sua luz penetrou e aqueceu o coração de uma platéia que só tinha olhos para ela... E penso que talvez seja esta certeza o que irá sustentá-la nos muitos momentos difícieis pelos quais sem dúvida passará.
A certeza do sonho realizado -não importa quão pequeno e breve- nos deixa marcas tão sólidas e duradouras quanto uma tatuagem, e se torna o alicerce sobre o qual podemos ser capazes de construír uma nova história, abrir a porta inesperada, encontrar a força que tudo vence e dar o primeiro passo em busca da felicidade.