sábado, 22 de novembro de 2008

Ligações

Mais um sábado, porém menos cansada e com mais tempo, já que levantei mais cedo e não fiz a minha caminhada, pois ontem à noite acabei indo deitar quase às duas da manhã... Por quê? Fiquei assistindo -pela enêsima vez- "King Kong" e, como todas as outras vezes, chorei feito uma Madalena quando o gorilão despenca do Empire State e a mocinha fica lá em cima, desesperada, olhando ele se arrebentar na calçada lá embaixo... Já vi esta cena infinidade de vezes, em várias versões, e sempre acabo me emocionando. Coisas que têm a ver com animais são meu ponto fraco, definitivamente... E talvez agora estou mais sensível porque um dos meus cachorros, o "Arthur", que já está com 13 anos, está com um sério problema de displacia nas patas traseiras, então de repente não consegue se levantar e alguém -eu, claro- tem que correr para ajudá-lo passando-lhe uma toalha pela barriga e puxando-o para que assim possa ficar em pé... Ai, que dó!... Ele fica tão agradecido e envergonhado da sua incapacidade, me olha com uns olhos úmidos e brilhantes e vem se esfregando nas minhas pernas toda vez que consegue ficar em pé, que só não desando a chorar porque podem pensar que estou ficando maluca...Mas, caramba, o afeto que a gente desenvolve para com os nossos bichos de estimação é uma coisa realmente impressionante!... E uma vez que se tem um, não se pára mais. Quando este morre a gente diz: "Ah, nunca mais", porém, dali a alguns meses, já está levando pra casa um outro e dando-lhe igual ou mais amor do que ao anterior. O segredo é, eu acho, ter consciência de que os animais duram menos do que a gente e que, quando nos deixam, nosso coração deve ficar sossegado porque sabemos que eles foram amados, se divertiram, comeram, foram paparicados e acariciados, alimentados e cuidados da melhor forma possível, então... É o argumento que estou preparando para quando os meus se forem, e acho que vai funcionar, apesar da semana que vou passar chorando e olhando para seus pratos vazios e as suas almofadas e "cheirinhos"... Mas nós os amamos, não amamos? E é isso que conta no fim.
Bom, e a crônica de hoje ( a de cima foi de graça):
Vindo pela rua já dava para ver de longe aquela singular escultura vegetal no jardim da frente da pequena casa amarela. A gente até piscava um par de vezes, como para se certificar de que era isso mesmo e, inevitavelmente, terminava parando diante do portão para admirar aquela original obra de arte: um enorme galo esculpido à tesoura de podar num pinheiro que se erguia, majestoso, bem no meio da grama. O galo do seu Tuta, o jardineiro. Pelo menos duas vezes por mês podiamos ver o homem, de tesoura na mão, aparando com todo esmero e concentração os galinhos que haviam crescido, desfazendo assim os contornos da escultura. Às vezes, ele estava encarrapitado numa escada de madeira, às vezes deitado no chão, em cima de um jornal, outras ajoelhado embaixo da sombreada barriga do galo ou, então, de chapéu de palha para se proteger do sol, dando voltas e mais voltas ao redor da escultura para se cerciorar de que não restase nenhum galho rebelde. Seu Tuta mantinha a sua obra sempre verde a perfeitamente aparada; com chuva ou com sol, lá estava ele, podando-a, todo orgulhoso e recebendo modestamente os elogios de transeuntes e vizinhos (e algumas piadas também). O galo ficou conhecido em toda a cidade e virou uma espécie de ponto de referência para todos.
Algum tempo depois, e aparentemente não satisfeito com esta única escultura, seu Tuta decidiu plantar mais dois pinheiros para se tornarem as suas próximas criações. Uma seria a sagrada família e o burrico e a outra um cogumelo com uma centopéia em cima fumando um narguilé, personagem de "Alice no país das maravilhas". Quando o primeiro pinheiro atingiu o tamanho certo, seu Tuta deu início ao seu paciente trabalho. Esperava sem pressa até que os ramos crescessem para ir cortando-os segundo seu projeto e assim, a sagrada família foi se definindo e aparecendo um pouco mais a cada mês... Todos aguardávamos ansiosos pelo resultado final e estávamos sempre perguntando a ele quando a escultura ficaria pronta. E feito Michelangelo respondia ao Papa toda vez que este o interrogava sobre os afrescos da Capela Sixtina, seu Tuta dizia para nós, sorrindo marotamente: "Só quando ficar pronta"... E prosseguia cortando aqui e ali, olhando em cima e embaixo, arrancando delicadamente as folhinhas rebeldes que insistiam em ficar fora dos contornos da escultura, apreciando de longe, de perto, com olhar crítico e mãos nos lábios, o nascimento da sua criação. Seu Tuta não era um jardineiro muito bom, mas a sua paixão pelas esculturas vegetais e a perfeição com que as executava -para deleite de quem se deparava com elas em algum jardim- desculpava as suas deficiências em nossas gramas e canteiros.
Porém, o tempo foi passando e a escultura não ficava pronta. Inclusive começaram a surgir uns galhos compridos e desordenados no galo e algumas trepadeiras parasitas infiltraram-se sub-repticiamente no meio da sua folhagem, como se seu Tuta tivesse esquecido da apará-lo durante um bom tempo. Foi então que notei que ele não aparecia mais na rua para seu costumeiro passeio de fim de tarde até o bar do seu Pedrinho, onde sentava num banquinho e bebia a sua cerveja gelada jogando conversa fora com os amigos ou disputando algumas partidas de truco ou sinuca. No jardim da casa amarela, os pés do burrinho, já esculpidos, encheram-se de galhos e brotos, acabando por perder as formas, assim como as outras duas figuras e, finalmente, para nosso espanto, começaram a amarelar a secar... Curiosamente, o resto do pinheiro continuava verde, só a escultura escureceu e morreu, perdendo por completo as folhas... Uma tarde, passei em frente ao jardim e vi que tinham-na podado completamente. Foi uma sensação tão esquisita ver aquele espaço vazio!... Olhei então para o galo e percebi que alguns galhos altos escapavam da cauda bem modelada e que o buraco do olho começara a secar também. Tinha todo ele um estranho e lúgubre ar de abandono e mau agouro... Foi quando soube que seu Tuta estava doente. Mal de Parkinson. Logo ele, que precisava tanto das mãos para levar a cabo seus trabalhos!... Fiquei triste mesmo, imaginando a sua frustração e impotência.
O encontrei ainda algumas vezes na rua, andar inseguro, olhar embaçado, mãos trêmulas, pálido e extremamente magro. Eu passava por ele e o cumprimentava com meu mais alegre sorriso, mas ele não mais me respondia. Só murmurava algo ininteligivel e dava um sorriso vazio. Depois, eu passava diante da sua casa, onde o galo tinha perdido quase que totalmente a forma original e era tomado gradativamente por aquele tom marrom escuro e seco que prenunciava a sua morte, e um calafrio me percorria, sem saber por quê.
O tempo passou e eu comecei a ir para o trabalho de ônibus, assim, não encontrei seu Tuta nem vi o estado das suas esculturas durante um bom tempo. Mas um dia em que decidi voltar caminhando para casa percebi, já de longe, aquele terrível vazio no jardim da casa amarela. Cheguei perto e parei, sem acreditar no que via: o enorme pinheiro no qual fora esculpido o galo tinha sido cortado rente ao chão, e agora mostrava apenas um toco seco e endurecido... Foi como receber um tapa no rosto... Nesse momento divisei a nora do jardineiro saindo da casa e decidi me aproximar para perguntar-lhe sobre o que acontecera.
-Nossa, o que foi da escultura? Estava tão bonita!...
-Pois é, morreu.- me respondeu ela -O pinheiro queimou todinho, como se alguém tivesse botado fogo nele.
-Mas ,seu Tuta não vai plantar um outro?- inquiri.
Ela me olhou, surpresa, e perguntou:
-Então você não sabe?...- e acrescentou, triste: -Seu Tuta morreu.
Fiquei parada ali, pasma, tentando acreditar e lembrando dos maus augúrios que sentira no ar quando vi os primeiros sinais da morte do pinheiro. Podia ser tanta coincidência?... Dei os pêsames à moça e ela entro no seu carro, acenou para mim, deu partida e se afastou pela rua abaixo, deixando-me ali, atordoada... Olhei de novo para o pinheiro e de repente senti uma trememnda falta daquele galo verde e pomposo. E me perguntei, espantada: "Pode-se desenvolver uma ligação tão íntima com aquilo que se toca, que se ama, que se produz, ao ponto disto transformar-se no reflexo da própria vida?"... As plantas adoeceram e apodreceram junto com seu jardineiro criador e junto com ele morreram, feito passarinho que definha de tristeza pela falta do dono. Parece que ao faltar-lhe o contato amoroso e a alegria e inspiração de cada pequena poda, os pinheiros pressentiram a agonia e a morte do seu escultor e, sem futuro nem objetivo, abandonaram a vida no mesmo compasso das batidas do coração do homem.
Fui para casa em pesaroso silêncio, pensando nas infinitas ligações de todos os tipos que criamos ao longo da nossa existência e na pouca importância que damos à maioria delas. Mas o que me deixou mais impressionada foi perceber que, a despeito disto, estes elos que se criam parecem indestrutíveis e todas estas ligações acabam permanecendo muito mais próximas do que imaginamos, criando as suas conseqüências, suas lembranças, suas raízes e ensinando-nos as suas lições, e por mais subjetivas que algumas possam parecer, todas são absolutamente reais e têm um objetivo específico em nossas vidas. Num mundo de solitários cibernautas e acirrados combartes por poder e prestígio, o sentido da ligação com algo ou alguém sem nenhum interesse está quase perdido entre nós, mas devemos entender que ligar-se não é enfraquecer e sim tornar-se mais forte e sábio, pois é desta ligação com a diversidade que nos rodeia que nascerá a nossa sabedoria.

Um comentário:

D Z disse...

Oi Paz,

O que aconteceu com os textos novos?

Passando rapidinho por aqui para lhe desejar um Feliz Natal e um Ano Novo repleto de paz, saúde, alegrias e muita inspirações!!!

Fique com Deus!

Bjsssssssssssssss!!!

Dany Z.