sábado, 1 de novembro de 2008

A estrela

Após o temporal, a calma ressurge, lenta e tímida; se espreguiça e sai do seu esconderijo, pois foi incapaz de enfrentar a fúria do vento e das águas e teve de se proteger ela mesma, abandonando-nos à nossa sorte. Por onde ando vejo casas destelhadas, com jardins cheios de entulho e sujeira, árvores humilhadas, depenadas, mutiladas; montanhas de folhas secas e galhos, ninhos desfeitos, ovos despedaçados e filhotes mortos... E é curioso como este cenário de catástrofe contrasta hoje com o sol que reina, indiferente à nossa desgraça, num céu cristalino, com as nuvens que parecem brincar preguiçosamente e o perfume das mangueiras que impregna o ar fresco e paradoxalmente cheio de promessas. O céu e o inferno, como sempre, se misturam, se confundem diante dos meus olhos, e acabam por encontrar seu equilíbrio para que nós, pobres mortais, não desistamos de continuar vivendo e lutando.
Bom, esta foi uma pequena crônica de brinde, porque a de hoje, na verdade, é outra. Mas é que fiquei verdadeiramente impressionada com este último temporal pois, pela primeira vez, pude enxergar a sua beleza violenta e desgovernada, destrutora, a sua passagem veloz e barulhenta, que deixou atrás de si este cenário apocalíptico sobre o qual o homem se levanta e reinventa, mais uma vez, a sua existência, reencontrando a paz e a força entre os destroços e o lixo.
E aqui vai a crônica de hoje:
Um dia no palco, vestida e maquiada feito uma pequena obra de arte, recitando com paixão um texto inspirado sob os holofotes coloridos, envolta pelo clima mágico da história, da música e das outras personagens e, no fim, calorosamente aplaudida pelo público... No outro, sentada num caixote de madeira atrás da pequena banca de metal e tábuas onde estão expostas cenouras, beterrabas, maços de salsinha, hortelã e cebolinha, alguns de couve e batatas. Gorro de lã, agasalho grande demais, tênis surrados, expresão de sono e fome no rostinho miúdo e moreno, de grandes olhos puxados e sonhadores, corpo franzino encolhido sob o frio da manhã. Deve ter chego na feira de madrugada, com somente um café no estômago, para ajudar o pai a montar a barraca e ajeitar as verduras em cima da lona amarela...
A vejo ao passar com meu carrinho de compras, e aceno para ela, que em resposta me sorri com aquela pincelada de tristeza distante que já lhe conheço, pois é uma das alunas do curso de teatro infantil da Fundação Cultural. Me afasto, esquivando a multidão que enche a feira naquela hora -todos vindo na direção contrária à minha, ao que parece!- mas a sua imagem permanece na minha mente, ainda mais nítida do que todo o resto que me rodeia... De novo, lembro dela na noite anterior, feito uma estrela num outro céu, uma borboleta num universo tão dramaticamente diferente deste de hoje, falando e se mexendo naquele cenário inventado, desfilando nas cenas da peça que, por algum tempo, a rouba do seu palco habitual, rude, tingido de sacrifício e provações, feito de terra e rua, de chão batido, de roupas herdadas, cara lavada e poucas palavras... Não sei por quê de alguma forma me surpreende encontrá-la aqui. Talvez seja porque não estou certa de aonde ela é mais real, se no teatro ou na feira. Talvez um pouco em cada um destes universos?... E então me pergunto: qual é o mundo real para cada um de nós? Onde nos sentimos melhor, mais amados, valorizados, admirados, acolhidos? E para esta menina, como funciona este jogo bizarro? Sente-se acanhada por me encontrar aqui, sabendo que sou um dos jurados que dará nota à sua performance e à sua peça? Ou lhe sou indiferente porque, afinal, em nenhum instante perde realmente a consciência de que tudo não passa de um sonho?... Me olha como se reconhecesse sem lugar a dúvidas quais são os nossos papéis nesta história e, para meu espanto, mostra-se conformada com o seu, apesar daquela nuvem no fundo dos seus olhos.
Na volta, paro diante da sua barraca e a parabenizo pelo desempenho da noite anterior, e compro um maço de cenouras e outro de hortelã. Ela agradece, enquanto sua carinha de olhos aveludados se ilumina brevemente, e se despede com um sorriso franco e cativante, quase o mesmo que exibia no momento em que cumprimentava o público desde o palco. Porém, hoje ele tem umas gotas de amargor, de resignação e pesar, de realidade, de decepção até. Recebe meu dinheiro e torna a sentar no caixote, encolhendo-se vagarosamente, como se voltasse para o lugar onde as suas lembranças permanecem intocadas, gloriosas e cheias de luz e calor, preciosas, perfeitas. Quase que um sonho que vai ser esquecido ao acordar, mas ela sabe que aquilo tudo foi verdade, que por uma noite foi a estrela mais brilhante do céu e que a sua luz penetrou e aqueceu o coração de uma platéia que só tinha olhos para ela... E penso que talvez seja esta certeza o que irá sustentá-la nos muitos momentos difícieis pelos quais sem dúvida passará.
A certeza do sonho realizado -não importa quão pequeno e breve- nos deixa marcas tão sólidas e duradouras quanto uma tatuagem, e se torna o alicerce sobre o qual podemos ser capazes de construír uma nova história, abrir a porta inesperada, encontrar a força que tudo vence e dar o primeiro passo em busca da felicidade.

4 comentários:

sol disse...

Ja me senti assim,sendo uma estrela sob um holofote na noite anterior e, durante o dia ter um que de vergonha de minha rotina e das pessoas não verem como eu podia brilhar.então baixava os olhos ao andar e só os reerguia onde eu realmente existia,no palco!!

Paz Aldunate - Palavras disse...

Cara Sol:
E como é difícil este anacronismo em nossa vida! Como somos obrigados a existir em dois universos tão distintos o tempo todo!... Porém, acredito que podemos extrair de um lições que podem nos servir no outro, pois não estamos neles por capricho ou castigo, mas para crescer e aprender a sermos reais em ambos, já que é nestes dois que somos necessários e temos uma missão a cumprir.
Beijão!

D Z disse...

Paz,

Por aqui a tempestade passou forte também, acho que nunca vi nada igual...

Adorei sua crônica... O que seria de nós se não fosse nossos sonhos?
E quão valioso é ser uma estrela, mesmo que por um instante, talvez seja triste o momento em que percebemos que a vida voltou a sua normalidade, da qual, muitas vezes, desejamos fugir, mas a esperança de nos tornamos estrelas novamente, nem que seja por uma noite, nos devolve a alegria e o sonho...

Um ótimo domingo para você!

Bjs!

Dany Z.

Unknown disse...

oi paz...sou eu a vanessa..ou vanana, como me chamavam, quanto tempo ... sabe...anos de aprendizado anos de experiencia me fez perceber que o tempo eh morte sem Deus...entao hj vivo tempo de vida , rsss,me encontrei ...kkk...estou bem, ainda vivo no japao, vai se fazer 6 anos...afiii...mas gosto daqui...sinto falta do Brasil,ainda faço teatro e dou aulas aqui no japao...trabalho animaçoes de festa tambem,eh que teatro esta em meu sangue kkk, e o melhor, minha inspiraçao vem de Deus...vc eh especial...sinto saudades, bjo no coraçao, mande noticias, meu email eh florzinha_de_jesus@msn.com...ate mais