segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Quatro vezes por dia

Com um par de dias de atraso e algumas dificuldades para conseguir que o pc escreva em arial - que é a letra que mais gosto- cá estou mais uma vez, após um fim de semana de muito trabalho e muita dor de estômago por conta das porcarías que andei comento só para compensar o cansaço (estou louca pra sair de férias!), porém animada para começar tudo de novo, incluindo a dieta... Bom... Quem não conhece esse papo de segunda?... E aqui vai a de hoje:
"-Se você visse um destes pobres comer, você entenderia por que alimentá-los é a razão da minha vida.- foram as palavras que tentaram explicar a cruzada de caridade de uma mulher de 83 anos para com as aproximadamente mil pessoas que diariamente vão fazer a sua única refeição do dia em sua casa, já faz mais de cinqüenta anos... Franzina, cabelos brancos encaracolados emoldurando a sua face serena, de olhos claros e brilhantes, pele sulcada por todas as rugas da experiência, voz tão pequena e firme quanto a sua estampa, mangas arregaçadas, avental xadrez, colher de pau na mão e um imenso sorriso, entre emocionado e orgulhoso, que parecia alastrar-se pelo recinto todo e dar-lhe outras cores, um outro calor, feito um abraço de mãe... Eu tirei o dedo do controle remoto e parei, encostando-me no sofá, tomada por uma repentina e fascinada curiosidade diante da declaração daquela velhinha que, me pareceu, podia muito bem estar sentada no sofá da sua sala tricotando, assistindo novela ou brincando com os netos ao invés de transitar -já com bastante dificuldade- em meio àquele oceano de panelões fervendo, bacias com frango e macarrão, fornos assando pão e todas aquelas jarras de café e suco, as montanhas de pratos e talheres, copos e guardanapos que entulhavam a pequena cozinha e a área da modesta casa... Abismada, me perguntei quem ainda podia, nestes tempos de total egoísmo e ambição, fazer tamanho sacrifício em prol de qualquer coisa e sem nenhum intuito de se auto-promover com alguma finalidade política ou religiosa. Uma mulher que abria todo dia -há cinqüenta anos!- as portas da sua própria casa para um bando de pessoas miseráveis e esquecidas, sem mostrar o menor receio ou cansaço, era, com certeza, digna de um momento da minha atenção naquele domingo sonolento em que tudo parecia parado e vazio...
A câmera então focalizou um velho, de barba e cabelos desgrenhados, mal vestido, mãos trêmulas a segurar uma terrina de arroz, feijão, macarrão e frango ensopado e a colher de latão, que enfiava, transbordante, na boca desdentada. Estava sentado num canto da área, num banco de madeira onde havia deixado polidamente seu chapéu surrado e desbotado, e olhava alternadamente para a lente e para a terrina fumegante -como se tivesse medo de que esta lhe desaparecesse das mãos- com uns olhos tristes e opacos, humilhados, que lembravam uma criança desapontada: Papai Noel não existe!... Percebi então que aquela era a sua vida, aquela e não outra, e que ele não formava parte do elenco de nenhum filme ou novela, de nenhuma campanha para nos comover e arrancar-nos alguma doação. A fome e o desamparo daquele homem eram reais, a miséria agarrando-se às suas carnes enrugadas feito infames carrapatos, corroendo seus ossos doloridos, seus sapatos esburacados... E ele comia. Levava à boca a colher como quem enfia a própria vida pela goela abaixo, meio envergonhado de ser visto assim, feito algum bicho numa exposição, olhando para nós com aqueles olhos mansos e resignados diante da nossa estupefação e curiosidade, que já devia conhecer muito bem.
-Este é meu cliente mais antigo- disse então a mulher, aproximando-se dele e acariciando-lhe o rosto magro e barbudo. E ele, meio que sorriu sem graça, e continuou a comer metodicamente, com a calada teimosia de quem só quer sobreviver mais um dia, embalado pelo ritmo da sua fome sem fim...
O que aquele velho esperava da vida?, me perguntei, com o coração começando a apertar em meu peito. E a resposta veio instantaneamente: pois era isso mesmo que eu estava vendo, tão somente aquela terrina de comida. Esta era a sua única certeza. A terrina, o pão e o copo de suco. Tâo simples, tão banal, tão sem luxo, sem exigêncas! Para que mais?...Mas, o que tinha acontecido com ele, afinal, como foi que a sua existência havia chegado a isto? Como um ser humano podia se reduzir ao mero ato de comer e mais nada?... Porém, enquanto tentava entender a situação e encontrar alguma resposta, reparei de repente no rosto da mulher junto ao mendigo... Onde eu já tinha visto aquela expressão de bondade absoluta?... Vi a sua mão frágil e de dedos deformados se apoiar, com a extrema delicadeza de quem conhece bem o sofrimento, no ombro do velho e, em seguida, brindar-lhe um dos sorrisos mais deslumbrantes, compassivos e acolhedores que já vi na minha vida... E mais uma vez disse para mim mesma: "Onde já vi esse sorriso?"... O homem então, deixando a colher cheia de macarrão no ar, virou-se para ela e lhe sorriu também, a boca toda lambuzada de molho, e me pareceu que ambos olhares fundiam-se num abraço, numa espécie de comunhão que nada poderia explicar ou descrever. Aquela era, com certeza, uma cena tremendamente conhecida, mais parecida com uma revelação... Pois naquele instante, olhando para aqueles dois na tela da televisão, tão distantes e tão próximos ao mesmo tempo, duas histórias unidas pelo mesmo amor, entendi que o que verdadeiramente importava e atraia o mendigo não era só a terrina de comida e o pão -que preenchiam a sua fome física, sim, o que é uma questão de sobrevivência- mas o carinho, o olhar, o abraço cálido e compreensivo desta mulher que não só abria as portas da sua pequena casa e despensa, mas as portas do seu coração para este exército ignorado de esquecidos, famintos, negligenciados, marginalizados de todas as idades, cores, lugares e credos, que traziam até ela as suas histórias de fracasso e decepção, de erros, perdas ou arrependimento e saudades... E a todos ela acolhia sem questionar, sem cobrar, sem dar sermão ou pedir mudanças. Simplesmente acolhia, e este me pareceu ser o ingrediente mais saboroso e atrativo, o tempero especial e diferente que fazia do seu cardápio algo vital para cada dia nas vidas de todos eles.
"Esta mulher", pensei, piscando uma e outra vez para não deixar as lágrimas caírem, "faz mesmo alguma diferença neste planeta".
E qual a recompensa dela por todo aquele esforço e sacrifício, pela ininterrupta dedicação e persistência, ao longo de cinqüenta anos, arrecadando alimentos e roupas para seus protegidos (seus "clientes", como ela os chamava, rindo)... Pois era, justamente, a visão que nós, telespectadores, estávamos tendo: a fome saciada, a certeza do alimento hoje e amanhã, a acolhida, o sorriso. O abraço à caridade, a partilha alegre desta pequena refeição quente e gostosa, preparada com carinho, somente para eles... O estômago cheio, o coração aquecido, a alma ressuscitada naquele gesto básico, primário, elementar e sagrado que, para a maioria de nós, passa despercebido quatro vezes por dia.

3 comentários:

D Z disse...

Paz,

Um texto realmente emocionante...

Uma ótima noite para vc...

Bjs!

Dany Ziroldo

Paz Aldunate - Palavras disse...

Cara Dany:
Realmente, depois de assistir àquela reportagem, fiquei alguns dias pensando muita coisa, mas sobretudo sobre quão ingratos podemos ser apesar de tudo que temos...
Abração:
PAZ

DANIELA BUZETI disse...

Dona Paz

Linda sua última crônica, adorei.
E você como está, curtindo bastante as férias??

Saudades
Dani