domingo, 9 de janeiro de 2022

 

    Ano novo, novos caminhos, novas possibilidades, novos desafios, outras portas. Novas forças e sonhos... E também novos cachorros, com certeza  enviados por são Francisco às pessoas que os merecem e aguardam com as suas casas e corações abertos de par em par. Eu ganhei o meu, uma cadela preta, bem grandona e um pouquinho manca, a quem batizei como “Morena”, após três intentos falidos com dois cachorros de rua que quis adotar. Chegou uma manhã para roubar a ração que eu botava para o cachorro de rua que tentava seduzir. Quando a vi, imediatamente a escorracei e ela fugiu, atravessou a rua e sentou na grama da frente pra me olhar... E aquele olhar... Bom, o resto é história. Já vive conosco e todos nos adaptamos, especialmente as minhas outras duas cadelinhas muito territoriais, melindrosas e ciumentas... Mas vamos trabalhando, vivendo o dia a dia, nos amando e respeitando. E “Morena” é um anjo de doçura, humildade e paciência. Então, tenho certeza de que tudo vai dar certo. Porque se foi o Francisco quem a enviou até nós, então ele irá botar a sua mão nesta nova família.

 

                                 PIPAS ESQUECIDAS

 

   

 

    Faço todos os dias o mesmo percurso, mas nunca tinha olhado para a copa daquela árvore, hoje nua por causa da poda de inverno. Talvez por isso pouco atraente para mim... Vinha caminhando, sentindo o vento refrescar meu corpo úmido de suor, quando um barulho diferente me fez diminuir a marcha. Olhei em volta, procurando achar a sua procedência. Naquela hora da tarde destacava-se entre os murmúrios da rua, que se preparava preguiçosamente para a janta. Tentei identificar o som, pois não me era estranho. Então percebi que ele vinha do alto, de algum lugar bem em cima de mim. Parei e ergui o olhar. Ali estava: a pipa colorida, novinha, enroscada entre os galhos pelados da árvore e os fios de alta tensão. Sua cauda de franjas debatia-se furiosamente sob o impulso do vento enquanto a pipa parecia tremer, em desespero, produzindo aquele som que chamara a minha atenção. Fiquei um momento a contemplá-la. Um pedaço de linha ainda pendia dela, enroscada na árvore... E de pronto aquela sensação de tristeza foi tomando conta de mim. Aquela pipa deveria estar no céu, dançando e fazendo piruetas, desafiando o vento para subir mais e mais alto, fazendo a alegria de alguma criança. E, no entanto, alguma fatalidade tinha-a derrubado, condenando-a a morrer ali, presa entre os galhos e os fios... Mesmo assim, ainda se debatia, em vão, e reagia às rajadas de vento... Meu coração encolheu-se, angustiado, ao ver este quadro, pois pareceu-me a representação dos nossos sonhos, às vezes arrastados por maus ventos e jogados ao chão, no meio dos galhos das árvores, dos fios elétricos, detidos em sua ascensão, chorados, mas finalmente esquecidos à intempérie até perderem as cores, até o papel rasgar e se desfazer, restando tão só o esqueleto de varetas. Pois sempre fica esta armação, triste, resistindo, como que dizendo que ainda serve, que se alguém a resgatar e colar nela um novo papel e uma nova cauda, será ainda capaz de elevar-se e desafiar o vento... Assim, a pipa me trazia a imagem dos sonhos que, apesar de abandonados porque sofreram um revés, persistem em algum lugar dentro de nós, como o esqueleto de varetas que nos convida a colar nele novos papéis coloridos, a caprichar numa cauda comprida, a comprar uma outra linha, mais resistente, a melhorar nossas habilidades e a lança-lo de novo ao vento... Nunca é tarde para os sonhos, mesmo que quem sonhou não seja o mesmo de quando os sonhou.

Mas quantos deles ficam assim, como aquela pipa, enroscados, abandonados... Teria de se subir na árvore e libertá-los ao invés de virar-lhes as costas e desistir deles. Outra chance. Um novo esforço. Alguns arranhões. Muito, muito cuidado. Pois os sonhos deveriam ter infinitas chances.