Ano novo, novos caminhos, novas
possibilidades, novos desafios, outras portas. Novas forças e sonhos... E
também novos cachorros, com certeza
enviados por são Francisco às pessoas que os merecem e aguardam com as
suas casas e corações abertos de par em par. Eu ganhei o meu, uma cadela preta,
bem grandona e um pouquinho manca, a quem batizei como “Morena”, após três intentos
falidos com dois cachorros de rua que quis adotar. Chegou uma manhã para roubar
a ração que eu botava para o cachorro de rua que tentava seduzir. Quando a vi,
imediatamente a escorracei e ela fugiu, atravessou a rua e sentou na grama da
frente pra me olhar... E aquele olhar... Bom, o resto é história. Já vive
conosco e todos nos adaptamos, especialmente as minhas outras duas cadelinhas
muito territoriais, melindrosas e ciumentas... Mas vamos trabalhando, vivendo o dia a dia, nos amando e respeitando. E “Morena” é um anjo de doçura, humildade
e paciência. Então, tenho certeza de que tudo vai dar certo. Porque se foi o
Francisco quem a enviou até nós, então ele irá botar a sua mão nesta nova família.
PIPAS
ESQUECIDAS
Faço todos os dias o mesmo percurso, mas
nunca tinha olhado para a copa daquela árvore, hoje nua por causa da poda de
inverno. Talvez por isso pouco atraente para mim... Vinha caminhando, sentindo
o vento refrescar meu corpo úmido de suor, quando um barulho diferente me fez
diminuir a marcha. Olhei em volta, procurando achar a sua procedência. Naquela
hora da tarde destacava-se entre os murmúrios da rua, que se preparava
preguiçosamente para a janta. Tentei identificar o som, pois não me era
estranho. Então percebi que ele vinha do alto, de algum lugar bem em cima de
mim. Parei e ergui o olhar. Ali estava: a pipa colorida, novinha, enroscada
entre os galhos pelados da árvore e os fios de alta tensão. Sua cauda de
franjas debatia-se furiosamente sob o impulso do vento enquanto a pipa parecia
tremer, em desespero, produzindo aquele som que chamara a minha atenção. Fiquei
um momento a contemplá-la. Um pedaço de linha ainda pendia dela, enroscada na
árvore... E de pronto aquela sensação de tristeza foi tomando conta de mim.
Aquela pipa deveria estar no céu, dançando e fazendo piruetas, desafiando o
vento para subir mais e mais alto, fazendo a alegria de alguma criança. E, no
entanto, alguma fatalidade tinha-a derrubado, condenando-a a morrer ali, presa
entre os galhos e os fios... Mesmo assim, ainda se debatia, em vão, e reagia às
rajadas de vento... Meu coração encolheu-se, angustiado, ao ver este quadro,
pois pareceu-me a representação dos nossos sonhos, às vezes arrastados por maus
ventos e jogados ao chão, no meio dos galhos das árvores, dos fios elétricos,
detidos em sua ascensão, chorados, mas finalmente esquecidos à intempérie até
perderem as cores, até o papel rasgar e se desfazer, restando tão só o
esqueleto de varetas. Pois sempre fica esta armação, triste, resistindo, como
que dizendo que ainda serve, que se alguém a resgatar e colar nela um novo
papel e uma nova cauda, será ainda capaz de elevar-se e desafiar o vento...
Assim, a pipa me trazia a imagem dos sonhos que, apesar de abandonados porque
sofreram um revés, persistem em algum lugar dentro de nós, como o esqueleto de
varetas que nos convida a colar nele novos papéis coloridos, a caprichar numa
cauda comprida, a comprar uma outra linha, mais resistente, a melhorar nossas
habilidades e a lança-lo de novo ao vento... Nunca é tarde para os sonhos,
mesmo que quem sonhou não seja o mesmo de quando os sonhou.
Mas
quantos deles ficam assim, como aquela pipa, enroscados, abandonados... Teria
de se subir na árvore e libertá-los ao invés de virar-lhes as costas e desistir
deles. Outra chance. Um novo esforço. Alguns arranhões. Muito, muito cuidado.
Pois os sonhos deveriam ter infinitas chances.
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