sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

"A santinha"

    Um natal precioso junto da família... Poderia querer mais? Talvez que meu filho mais novo estivesse com a gente, porém, gracas à minha irma recebi o melhor presente de todos: da sua casa pude ligar para ele no Brasil e escutar-lhe a voz... Ai, coracao de mae, que nao morre de emocao só porque tem a forca de um tita!... Porém, fora esta tristeza, todo o resto foi simplesmente perfeito, tal como tinha imaginado e mais um pouco. Família, amigos, ceia, risadas, lembrancas, a arvorezinha reinando, iluminada, cheia de pacotes misteriosos e todo mundo aguardando meia-noite para abri-los... Me senti menina, mae, irma, tia, amiga, tudo ao mesmo tempo, feito uma sinfonia de emocoes que nunca pensei voltar a sentir. Nao desse jeito. Nao junto destas pessoas amadas.
    Sim, com certeza posso dizer que o menino Jesús me trouxe o presente que pedi: a felicidade.
    E como estava tao feliz, acabei esquecendo de postar a crônica da semana passada, entao, antes que me empolgue de novo e a felicidade me deixe literariamente incapacitada, aqui vai a desta semana. Em todo caso, acho que é melhor nao escrever por estar demasiado feliz do que nao fazê-lo por estar demasiado triste, nao é mesmo?


    Sem lugar a dúvidas, esta é uma santinha muito milagrosa. Basta ver o altar onde um quadro seu está entronizado, na nave esquerda da igreja centenária: está sempre lotado de flores -especialmente rosas- de todos os tipos e cores, em primorosos e caros arranjos dentro de cestinhas ou vasos, em ramalhetes embrulhados em celofane ou em modestos duos ou trios, ou até uma só, amarrada com uma fita. Tem também aqueles de flores artificiais, que querem durar tanto quanto a gratidao do devoto, mas a maioria sao naturais e murcham ao cabo de alguns dias, lembrando-nos a humanidade frágil e efêmera que vem pedir seus favores. Como sao tantas -e para que a santinha nao se confunda nem se sinta sobrecarregada- tem duas pessoas encarregadas de ir trocando-as durante a semana, para que assim todos tenham oportunidade de expressar a sua gratidao. Nos bancos colocados diante do altar sempre tem gente sentada ou ajoelhada, expressao concentrada, fervorosa, olhando para o rosto etéreo no quadro com fe e adoracao absolutas e desavergonhadas. Olhar de intimidade, de esperanca, de sinceridade. Sao feito criancas ao redor de uma mae que tudo compreende e que por todos se sacrifica e intercede. Mae poderosa esta, que quase se afoga nas pétalas da gratidao dos seus filhos porque sempre lhes alcanca o milagre, a cura, o trabalho, o empréstimo, a carreira, a casa... Nao tem uma missa durante a qual eu nao tenha visto pelo menos dez ou quinze pessoas entrar, se aproximar do altar -com bicicletas, sacolas, carrinhos de feira, criancas e até cachorros- e depositar uma flor ali junto com um agradecimento ou algum pedido, cheios de uma emocao que realmente impressiona. O sermao do padre pode ser o mais inspirado do mundo, mas eu nao consigo deixar de olhar para esta pequena e constante procissao que transita modestamente pela nave esquerda... Desde meu lugar (porque sempre tento sentar perto do altar, onde possa vê-la) sorrio, comovida, e fico a contemplar a religiosa angelicalmente retratada, que parece estar prestes a sair dali num êxtase interminável de feliciade e paz. Entao a imagino em sua época: uma mulher simples, obediente, fervorosa, que nao desejava outra coisa a nao ser enclausurar-se num mosteiro para louvar e servir ao seu Deus, para sacrificar-se pelos que tinham extraviado o caminho. Ela nao queria ser santa, nunca sonhou com um altar, um quadro, uma relíquia ou um exército de devotos. Nao era ninguém, somente uma boa  mulher, uma religiosa velha e humilde, que passou seus últiimos anos desterrada numa cela afastada do convento por causa do que parecia ser algum tipo de doenca repugnante e que no fim revelou-se um sinal divino. Uma pessoa que, na sua insignificância histórica (naquela época) fazia o bem ao seu redor, até onde lhe era possível, sem maiores ambicoes, sem jamais desconfiar que hoje tería um altar cheio de flores e de fiéis agradecidos. Nao, definitivamente, a possibilidade da ser famosa nao era o que motivava as suas acoes, mas a consciência clara do que era correto, misericordioso, justo... E eu me pergunto: será que nós poderíamos fazer a mesma coisa? Será que precisamos da publicidade, dos elogios, as homenagens, os seguidores o reconhecimento para agir corretamente? Fazer o bem pelo bem já nao é o bastante? E por que pretender abranger e converter o mundo todo? Por que viver esperando por um grande sinal para comecar a fazer o bem? E por quê, se nao é grande, parece que nem vale a pena comecar?... Mas é com um grao de areia que se comeca um arranha-céu! Esta santinha nao quis conquistar o mundo, senao, simplesmente, fazer a sua parte, agir com compaixao, sinceridade e justica ali em seu conventinho, entre as suas irmas. Aquele era o entorno que tinha para fazer o bem. E nós? O que fazemos em nosso entorno? Ou vivemos aguardando algum evento sobrenatural que seja fiador e motor das nossas boas acoes?... Nao, o mundo nao é nosso palco, apenas um pedacinho dele, mas se todos decidimos fazer o bem naquele que nos toca, talvez possamos comecar a viver o paraíso aqui mesmo.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

"Neblina"

    "Outro dia no paraiso", como se diz por aí, e se continua lutando, acreditando, apostando, caminhando de encontro às aventuras e seus desafios, que parecem nao ter fim. Uns sao mais fáceis, outros mais difíceis, mas todos têm de ser encarados e vivenciados da melhor forma possível. É verdade que nem sempre saímos vitoriosos, mas é preferível isto a dizer que nunca tentamos... Ultimamente tenho tido que reunir coragem para abrir algumas portas e enfrentar novas situacoes muito antes do que esperava, mas o esforco está valendo a pena porque está me ensinando de novo a liberdade, a independência, a iniciativa e o prazer de uma nova solidao, desta vez entre meus compatriotas ao invés de num país estranho, o que a torna uma experiência totalmente nova e emocionante pois, apesar de ter referências pouco agradáveis sobre mudancas e entrosamento em ambientes novos, desta vez nao está sendo um processo assustador, mas uma experiência sorpreendente e reveladora, que a cada dia me confirma que fiz o certo e que, finalmente, estou em casa, desta ez para sempre.
    E com este astral cheio de otimismo e esta coragem que há muito nao sentia, aqui vai a crônica desta semana, antes que o mundo acabe!


    Tem dias que comecam estranhos, cinzentos e frios, nos quais parece que nao somos nós mesmos  e nos vemos repentina e insistentemente assaltados por pressentimentos sombrios ou inquietantes, desconcertantes, que nos desestabilizam e nos tiram a vontade de sair de casa e enfrentar o mundo lá fora. Sao dias em que acordamos como que movendo-nos numa espécie de neblina que nos deixa a impressao de que, na verdade, continuamos dormindo...
    Lembro que isto me acontecia na adolescência, nos dias de inverno quando, para chegar na escola, tinha de atravessar um enorme terreno vazio e ele se encontrava totalmente tomado pela neblina da manha. Lembro que ia adentrando nela devagar, enquanto toda a paisagem à minha volta ia sumindo a cada passo, como que engolido por aquela névoa branca e movedica. Eu também via a mim mesma desaparecer, e perdia a nocao de direcao, de tempo, de espaco, de realidade... Era algo realmente surreal... Às vezes vislumbrava ao longe algumas silhuetas -as de outros alunos que também se dirigiam à escola- que me pareciam fantasmas flutuando no meio daquela neblina fria que se mexia feito algo vivo à minha passagem. Quando alcancava o meio do terreno baldio, parava, respirando fundo, e girava sobre mim mesma, com os olhos escancarados e piscando sem parar, mas nao dava para distinguir absolutamente nada. Era tao somente eu no centro daquele oceano branco... Era nesse instante que eu comecava a me perguntar se me encontrava realmente ali ou se continuava dormindo em minha cama e isto nao passava de um sonho desagradável. Tinha receio de continuar avancando porque algo terrível e inesperado poderia surgir desse nada, mas também tinha medo de ficar parada ali, pois tinha a certeza de que seria engolida e desapareceria para sempre dentro daquela panca gasosa.
    Entao, de repente, o sino do colégio comecava a tocar: som vibrante, imperioso, quase celestial, que atravessava feito uma lanca a neblina paralisante e me arrancava do seu feitico. Era o som da realidade chegando até mim, da rotina, da ordem, da lógica... Meus pés tornavam a sentir o chao e, percebendo-o firme, tornava a caminhar, sabendo agora qual direcao seguir, procurando o contorno conhecido da grade e os pavilhoes do colégio, as vozes dos meus colegas, o cheiro do leite com chocolate da merenda, o cumprimento dos professores. O sino  chamava e aos poucos o mundo entrava novamente em seus eixos, o dia retornava à normalidade e tudo acontecia como tinha de ser.
    Quando finalmente atingia os degraus da entrada, me escapava um sorriso de alívio e gratidao, pois agora tinha certeza de que tudo acabaria bem. A travessia tinha chego ao fim.
     Hoje, quando abro os olhos e percebo que é um daqueles dias estranhos nos quais o medo, as dúvidas e a inseguranca comecam a rodear-me feito aquela névoa no campo vazio, respiro fundo e me endireito, procurando imediatamente o som do sino, a chamada firme e clara que me manterá com os pés no chao e a mente focada na realidade, que me porá diante dos pavilhoes da vida, dos quais nao há por que ter medo pois, como na minha época de estudante, sei que ali estao as respostas, as licoes, as descobertas, os mestres, os amigos e os inimigos, as alegrias e as tristezas, os fracasoss e os triunfos que serao a base do nossos futuro. A vida nao tem neblinas nem campos vazios que podem nos fazer acreditar que sonhamos. A vida tem certezas que podemos escolher ou nao, histórias que podemos viver ou nao, encontros que podemos ter ou nao. Os campos vazios e a névoa somos nós mesmos quem os criamos, porém, se procuramos um sino que nos chame em direcao dos contornos daquilo que é verdadeiramente real e importante, com certeza nao permaneceremos muito tempo ali.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

"Oportunidades"

    Hoje estou sozinha em nosso apartamento porque a minha filha foi passar o fim de semana fora com seu namorado, entao aproveitei para sair e fazer as últimas compras para o natal, me dar um pequeno banho de loja, incluindo manicure, botar a música que adoro e sentar aqui para escrever. Entre hoje e amanha quero botar em dia todos meus escritos, que têm estado bem abandonados por conta da nossa maratona de compras natalinas antes que, simplesmente, nao possa mais se entrar nas lojas... Bom, nao que o resto do tempo a quantidade de gente diminua, mas pelo menos os vendedores nao estao completamente fora de si  nem os produtos somem antes que a gente decida comprá-los. Foi desse jeito que perdi um precioso jogo de bolas prateadas para a árvore de natal... Virei para dar uma olhada em alguns pisca-pisca que tinha num outro balcao e quando voltei, as minhas bolas tinham sumido! Entao decidi agarrar e carregar tudo que tinha gostado, pois de outro jeito acabaria perdendo o resto das coisas também. Coitado do vendedor, quando me viu chegar com aquele monte de bolas, luzinhas, anjos, guirlandas, presépios e estrelas achou que acabara de fazer a venda do ano! Vocês deviam ver a cara do homem quando botei somente  menos da metade das coisas no balcao do caixa... Bom, é a lei da selva, tinha que proteger o que tinha gostado para depois poder escolher com calma. Mas tenho certeza de que aquele vendedor tirará uma boa comissao, porque esta loja vive completamente lotada, entao nao me sinto culpada por nao ter levado tudo. Fora isso, o nosso apartamento é tao pequeno que se botarmos mais alguma coisa nós é que vamos ter de sair. Criamos o nosso "cantinho natalino" na mesinha de arrimo com umas velas prateadas, uma pequena árvore -que traz as luzinhas incluidas- e umas folhas brilhantes que misturamos com as flores naturais do vaso. O lustre teve de ir para cima de um banquinho, mas ficou muito bonito. Também penduramos um enfeite com umas pombas prateadas e um sininho no trilho da cortina, entao, quando bate um vento, escutamos seu som alegre e suave... É claro que nao podemos fechar a cortina, mas isso nao nos incomoda, já que adoramos que a luz entre pela janela.
    Bom, e deixando de lado tanto detalhe sobre a nossa decoracao de natal, é melhor comecar a postar esta crônica, já que é bem longa e quero fazê-lo antes da janta porque depois de comer fico totalmente inutilizada. Em todo caso, espero que a desfrutem. Tomem-se um descanso entre as compras e o trabalho e leiam.


    Estou convencida de que já me conhecem. Quase toda tarde apareco no chafariz da igreja com a minha sacola de pao velho e me instalo ali, frente à porta majestosa, à sombra da água que refresca o ar. Se olhar em volta nao vejo muitas delas, mas pressinto que estao por ali, à espreita, fazendo de conta que nao estao interessadas, mas sei que basta atirar o primeiro punhado de migalhas para vê-las lancar-se no ar em graciosas revoadas e, planando, vir aterrisar aos meus pés, emergindo nao se sabe de onde, arrulhando e abrindo as asas,  estufando o peito e dando uma de donas do pedaco... E quase que de imediato, como uma espécie de efeito colateral, aterrisam os pardais, também nao sei de onde, e se enfiam ousadamente entre o enxame que se agita para pegar a sua parte do banquete... As pombas lhes dao uma olhada meio de soslaio, um pouco espantadas diante da sua insolência, e após algumas ameacas e curtas perseguicoes, parecem cansar-se da sua saltitante rapidez e os deixam roubar a sua parte, já que é mínima. Talvez percebam que, dado seu tamanho, o pao vai dar para todos.
    Aos poucos, algumas pombas mais ousadas vêm rodeando, rodeando, vao e vêm, me observam furtivamente, meio de lado, e vêm se aproximando com cautela, prontas  para fugir ao menor sinal de peligro, até que, mais confiadas, acabam passeando entre meus sapatos para comer as migalhas que caem ali. Estas nao têm medo do barulho nem do esvoacar da sacola plástica em que trago o pao, nem dos carros que saem do hotel, as criancas que passam e gritam, empolgados ao ver tanto pássaro junto e, inevitavelmente, correm atrás deles. Inclusive, desprezam olimpicamente os turistas que param para tirar fotos e os operários que arrumam a calcada... Sei que os bons frades as escorracam a vassouradas para que nao sujem os telhados e os muros do convento, nem as esculturas históricas, e elas fazem como que vao embora, se escondem nas árvores e telhados vizinhos e sempre acabam voltando, sobretudo se tem alguém feito eu, que as atenta com saborosas migalhas de pao sovado, baguete e pao de forma... Estou convencida de que os franciscanos, apesar do seu amor pelos animais, devem me odiar.
    No entanto, apesar de toda a propaganda adversa que recebem (infeccoes, piolhos, sujeira e penas) as pombas, como quase todas as criaturas que nos rodeiam e compartilham este planeta conosco, têm algumas licoes para nos ensinar, se prestamos um pouco de atencao.
    Eu já tinha notado que existe uma grande quantidade de pombas mutiladas por causa dos fios de alta tensao, os ares acondicionados e as antenas -fora, é claro, os idiotas que se dedicam a acertá-las com qualquer coisa- Muitas delas perderam uma pata, ou os dedos, ou as têm quebradas e atrofiadas, inclusive tenho visto sabiás e bem-te-vi que sofreram o mesmo injusto destino, porém isto nao parece abalar a sua intimidade com o ser humano e continúam aproximando-se dele e seus restos de comida... Assim, uma tarde veio aterrisar junto do chafariz uma pomba marrom, de olhinhos brilhantes e umas engracadas penas brancas ouricadas no cocuruto. Primeiro nao entendi por quê, ao chegar ao chao, o fez tan desengoncadamente, meio que de lado, meio que de ponta, quase enfiando o bico na calcada. Inclusive algumas das outras pombas levaram um baita susto diante daquela estapafúrdia aterrisagem. A ave pareceu ficar meio atordoada e permaneceu alguns instantes deitada no chao, olhando para lá e para cá, como que tentando se localizar. Simpatizando imediatamente com ela, lhe joguei um punhado de migalhas para tentá-la, mas ela nao se mexeu e as outras, imediatamente, se lancaram avidamente para roubar-lhe a comida... Desconcertada, aguardei seu próximo movimento. Entao, tomando fôlego, endireitou-se com muita dificuldade. E aí vi. Apoiava-se tao só sobre dois cotos retorcidos. Nao tinha patas. Eu segurei uma exclamacao, horrorizada. A pomba avancou um pouco, cambaleando sobre os cotos, em direcao das migalhas, mas as outras tinham-nas devorado e nao restara mais nada. Repeti a acao mais um par de vezes e aconteceu a mesma coisa. A pomba inválida nao tinha nenhuma chance. Nunca teria. A coitada olhava ansiosamente para a minha mao e acompanhava o movimento quando eu jogava o pao, mas a sua deficiência a impedia de chegar em tempo para brigar por algum pedaco.
    Entao, pensando que talvez a sua limitacao  pudesse tê-la feito diferente de alguma forma que nao fosse desvantajosa, tive a idéia de me acocorar bem devagar e estender em sua direcao a minha mao aberta, cheia de migalhas, suavemente... As outras pombas se agitaram de imediato, desconcertadas com a minha movimentacao, e comecaram com umas corridas e revoadas desordenadas, como se nao soubessem de que jeito reagir à minha ousadia. Mas eu tinha certeza de que nenhuma delas teria a coragem de se aproximar e comer da minha mao.
    Totalmente  abstraida do mundo, fui me aproximando à pomba inválida que, absolutamente imóvel, me contemplava fixamente, como perguntando-se quais seriam as minhas intencoes. Mas nao parecia querer fugir. A minha mao estava a apenas alguns centímetros dela quando seus olhinhos desviaram-se de mim e foram pousar nas migalhas brancas e macias diante dela. Pareceu considerar o assunto muito seriamente durante alguns momentos... Eu aguardava, segurando o fôlego, feito uma estátua... Até que, finalmente, fiz um movimento muito, muito suave e botei a mao bem debaixo do seu bico. A pomba me deu um último olhar, como se me perguntasse: "Posso mesmo pegar? Você nao vai me machucar?"... E acredito que, diante do meu silêncio e a minha completa imobilidade, decidiu aceitar a oportunidade, que poderia ser mortal, considerando a sua deformidade.... Piscou mais uma vez e, finalmente, esticou o pescoco e comecou a comer, ainda meio nervosa.
    Enquanto isso, as outras pombas continuavam em total alvoroco, correndo pra cá e pra lá, ameacando aproximar-se, arrulhando desafiadoramente e estufando o peito, mas no fim das contas nao tiveram a coragem de vir e quem acabou tendo um banquete foi a pomba inválida, pois aproveitando sábia e arriscadamente a chance que lhe era oferecida, ganhou mais do que as demais que, apesar da fome e das fanfarronadas, nao ousaram se aproximar, mesmo vendo que nada acontecia com a outra.
    E contemplando esta pomba marrom com seu cocuruto branco e despeinteado e seus tristes cotos retorcidos, me perguntei quantas vezes nós, os humanos, à despeito das nossas limitacoes, temos a coragem, a sabedoria ou a fé para aceitar e abracar as oportunidades que nos oferecem ou aparecem diante de nós, e quantas deixamos passar por ignorância, medo, teimosia, orgulho, po rnao acreditar em nós mesmos nem nos outros... Mas precisamos lembrar que as oportunidades sao únicas, singulares em seu momento, que nos trazem algo que necessitamos nesse exato momento e que, se nao as aproveitamos, nao voltarao a aparecer. Pelo menos nao da mesma forma nem com os mesmos resultados.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

"Escutar o silêncio"

    A primavera está arredia, um dia mostra a cara e nos encanta, nos tira a roupa grossa, parece que liberta algo dentro de nós, e no outro esconde aquele precioso sol atrás de nuvens e rajadas de vento gelado... Ninguém está entendendo nada! Eu sei que a nossa primavera é feito  menininha, cheia de vontades, volúvel e caprichosa, adora nos atormentar com as suas mudancas de humor e o suspense pela definitiva chegada do calor, mas faz tanto tempo que nao a desfruto que nao fico brava com ela e prefiro ser paciente porque quando ela chega de vez a gente vê que a espera e a indecisao valeram a pena. Assim, quando acordo cada manha, a primeira coisa que faco é olhar pela janela, ainda na cama, para conferir se há nuvens no céu, mas mesmo que tenha algumas flutuando por ali, fico com a esperanca de que mais tarde irao embora e poderemos curtir a luz do sol e as cores com que ela pinta este cenário esplêndido. Hoje amenheceu bem nublado, depois abriu e agora fechou de novo. Tomara que o vento leve embora estas nuvens para que assim amanha tenhamos um dia daqueles de tirar o fôlego... Até porque vou visitar a minha irma na pré-cordilheira e espero poder tomar muitas fotos. A paisagem lá em cima é simplesmente deslumbrante! As fotos ficariam lindas em meu facebook.
    E é com esta esperanca e os acordes meio desafinados do meu vizinho que tenta tirar "Noite feliz" em seu saxofone, que vai a crônica desta semana.


    Buzinas, motores, sinos, sirenes, telefones, telesoes, rádios, cachorros, criancas, grúas, bem-te-vi... Fecho os olhos e escuto tudo isto -e muito mais- ao meu redor,às vezes harmonioso, outras desafinado e estridente... Sao as inúmeras vozes da cidade, a sua gama quase infinita de expressoes, os sons da sua existência, que as vezes podem confundir-nos, asustar-nos, irritar-nos, desconcertar-nos, e outras podem alegrar-nos, guiar-nos, identificar-nos, pois nos reconhecemos neles. Altos e baixos, próximos ou distantes, novos ou velhos, esta identidade auditiva nos acompanha o tempo todo... O que nos dizem os cascos dos cavalos, os latidos dos cachorros, as chamadas dos vendedores ambulantes, os sinos da igreja? O que murmura o zunido do metrô, o arrulho das pombas? Cada som tem seu significado, seu apelo em nossa alma, e nos provoca algum tipo de reacao, pois às vezes este barulho externo encontra eco dentro de nós, juntando-se ao universo acústico que ferve em nossa mente e nosso coracao.
    Lembro quando levava meus alunos ao parque, ao saguao do teatro, à praca ou para alguma outra área da fundacao e lhes pedia que dancassem ou expressassem de alguma forma corporal os sons que escutavam: o vento, os regadores jogando água, os motores, os pardais, as vozes dos outros alunos, os instrurmentos ecoando nas outras salas, a serra do marceneiro que construia os nossos cenários... Tudo era possível de ser transformado em algum tipo de movimentacao, pois havia una conexao, uma reacao, uma emocao envolvida... Performances belíssimas resultavam destas experiências.
    No entanto, aquilo era somente o comeco. Depois os levava de volta à nossa sala e, fechando portas e janelas, os expunha, agora, ao silêncio absoluto para que tentassem repetir a experiência do movimento. Dura prova para eles! Abandonar-se docilmente a esta espécie de "nada", a este tabú opressivo que é o silêncio, a este vazio de morte com que ele é quase sempre associado!... A maioria sofria angústias terríveis, pois se sentiam abandonados, indefesos, em perigo, perdidos, apavorados, e apenas conseguiam executar um ou outro movimento. Com tudo, após algum tempo, eu acabava com seu suplício e lhes pedia para que tentassem escutar os sons que seus próprios corpos emitiam: respiracao, as batidas do coracao, o farfalhar das roupas e do cabelo, pés mexendo-se, pequenos sons involuntários... Isto já era muito mais fácil e conseguiam até me dar uma boa devolucao no fim da aula. E para terminar, um dos meus exercícios favoritos: produzir os próprios sons e criar uma coreografia em cima deles. Entao eram estralos, suspiros, sussurros, palavras soltas, exclamacoes, frases ininteligiveis, músicas inêditas... Os acentos mais íntimos e peculiares que um ser humano pode emitir enchiam a sala silenciosa e os corpos executavam movimentos que pareciam rituais, preces, revelacoes. Alguns choravam, outros sorriam, extáticos, uns poucos ficavam parados, como que iluminados. Esta era la experiência completa, após a qual percebiam que o nosso corpo possui uma linguagem única e peculiar, que normalmente nao tem muito a ver com o que o cérebro lhe ordena emitir. Isto lhes ensinava a parar e prestar mais atencao ao que este corpo tinha a dizer e que às vezes podia ser muito mais coerente e sábio do que a lógica acadêmica que tinham nos ensinado.
    E hoje, rodeada por todo o barulho fascinante e inebriante desta imensa cidade, me pergunto se ainda conseguimos fazer silêncio, escutar o silêncio (porque sempre digo que o silêncio nao é tao só a ausência de ruído, mas também uma atitude interior) dancá-lo, vivenciá-lo. Me pergunto se temos a coragem de silenciar para escutar o que nosso corpo e nossa alma têm para dizer-nos. Será que temos medo dos nossos próprios e mais verdadeiros sonidos? O que poderíam revelar? Seriam um espelho da nossa  verdade, um reflexo da nossa essência? Será que Deus se  encontra ali? Mas, a divindade tem mesmo um som?...
    O primeiro que se ouve quando a vida comeca sao as batidas do coracao, rápido, feroz, cheio de urgência para botar-nos no mundo, e este compasso nos acompanha  até nosso último fôlego, dizendo-nos a todo instante que estamos vivos, conscientes, ativos, que podemos escolher, agir, decidir, criar, receber, amar e sermos amados... E quando esse som se apaga, a existência também termina, pois ambos estao indissoluvelmente ligados. Entao, por que nao aproveitamos para escutá-lo enquanto temos a chance?.

quinta-feira, 22 de novembro de 2012

"As verdadeiras boas vindas"

    Os dias continúam lindos e as árvores vestindo-se com esse verde novo e vigoroso que nos traz aquela velha e deliciosa sensacao de renascimento, de esperanca e pura felicidade, tanto assim que eu retomo as minhas inspiradoras caminhadas pelas ruas de manha cedo... Tem tanto para ver, tanta gente para descobrir, tantos cantos e paisagens dentro desta imensa paisagem urbana, que acho que mesmo que  caminhasse por aqui pelo resto da minha vida, sempre encontrarei novidades, surpresas, personagens e histórias. Até já conheco alguns: a tia que faz seu suco de laranja para os apressados que nao tiveram tempo de tomar café da manha, o senhor que passeia seus poodles brincalhoes, a menina que agua a grama no fim do passéio, o rapaz de mochila vermelha que, junto a sua bicicleta, senta na beira do canteiro esperando por alguém, o gordinho que chega em sua motoca azul assustando as pombas e estaciona junto a um poste, ao qual amarra seu veículo. O senhor e a sua mesinha de ervas e o fiel cao que senta na grama, sobre um cobertor velho, encostando nas costas do seu dono... E assim, tantos rostos e gestos, tantas vozes que vao entrando em meu próprio mundo e dos quais, com certeza, vocês vao ler mais adiante. Aqui tudo me inspira, mesmo quando nao é um bom dia (sim, porque também tenho dias meio chatos) tudo me da forcas, me enche de uma felicidade inexplicável e verdadeira que me deixa com vontade de mais... Me sinto feito uma crianca numa loja de doces!
    E assim escrevo hoje, confortavelmente instalada no sofá da sala, escuchando a Tribuna FM - a minha rádio favorita no Brasil- enquanto o macarrao cozinha no fogao... Querem algo mais caseiro e confortável?.
    Preciso explicar, no entanto, que na  verdade estas sao duas crônicas, porém quando as reli percebi que tinha de publicá-las juntas. Afinal, nao se pode separar uma família, nao é mesmo?...



    Ela nao é muito alta, de pele branca um pouco queimada pelo sol do campo, olhos claros, de olhar direto e inteligente,  cabelos completamente brancos, curtos, sempre meio despenteados. Tem uma voz firme e um pouco rouca, que expressa as suas opinioes com muita clareza e autoridade, porém com um quê de benevolência e compreensao. É magra e ereta, de movimentos certeiros e seguros -a nao ser por um pequeno tremor na mao direita, ao qual ela nao da a menor importância- está sempre bem vestida, mas com modéstia. Dona da sua cozinha e do seu jardim, capita orgulhosa da sua prole -filhos, netos, genros, noras, sobrinhos- e da sua casa acogedoramente desordenada. Viúva valente, católica fiel, empresária empreendora, líder admirada em sua comunidade já nao mais tao pequena. Oitenta anos de experiência que nao parecem pesar-lhe nem no corpo nem na saúde, mas dar-lhe mais disposicao e energia para continuar com o que assumiu como a msisao da sua vida: educar, formar futuros cidadaos tao retos e empenhados quanto ela própria, fazer florescer no coracao e a mente dos jovens de hoje alguns conceitos rotulados de antiquados e severos, mas que no fim sao os que lhe dao propósito e dignidade a uma vida.
    Em sua grande casa se juntam e misturam todas as tribos, as histórias e as personagens sem conflito nem discriminacao, cada um em seu pequeno território, tudo com ordem e respeito, como ela gosta. É uma constante e fluente diversidade bem alimentada fisica e intelectualmente, sempre bem recebida e acollhida, porque em seu lar há sempre ouvidos para escutar, bracos para abracar, palavras para aconselhar, uma xícara de chá, uma fatia de bolo, uma taca de vinho para aquecer o papo... Pequenos e complexos universos orbitam em volta desta mulher exigente a quem nao agradam os queixumes nem as faltas de caráter, que é aberta porém severa, amiga e sempre mestra, diretora da sua própria existência.Mulher plena, casa plena, vida plena.
    Assim a observava eu desde a cadeira na qual tinha me ajeitado, sob a parreira que já mostrava suas primeiras folhas de um verde esplêndido, no meio do jardin cheiroso e todo enfeitado para a festa daquela tarde.O céu se mostrava levadico, uma hora carregado de nuvens escuras e ameacadoras, outra  com um sol cálido contra o azul glorioso.Dúzias de pipas aproveitavam para fazer piruetas ao sabor do vento, o pessegueiro florescido, perfumado, provocava a nossa inveja com a sua beleza. Mesas, cadeiras, o cachorro correndo para lá e para cá, alvorocado com o antecipo das coxas de frango, a costela e as linguicas pipocando sobre as grelhas. Convidados chegando, carvao, picanha, bexigas e guirlandas vermelhas, azuis e brancas, música típica enchendo o ar através das caixas de som. Cheiro de vinho, de chicha, de chá, de empadas, de favas e batatas assadas. Conhecidos e desconhecidos chegando para formar uma só família, o tempo e as vozes transcorrendo, entrelacando-se, envolvendo-me feito um cobertor quentinho e tao familiar...
    Inauguramos a "barraca da Taty"-como apelidam todos à dona da casa- entoamos o hino nacional, emocionados, se dancou com graca e coracao, de ponta e salto, lencos feito mariposas nas maos das mocas, esporas tilintando nas botas dos rapazes. Foi uma tarde plena, cheia de emocoes, de reencontros, de lembrancas, de lacos que se reatavam com mais forca do que nunca, apesar do tempo e a distância transcorridos... E era esta mulher admirável, dura feito rocha e tenra feito uma brisa, quem comandava toda esta comemoracao que, para mim, ia muito além de uma festa pátria: a tia Paty.
    E logo vinham, como partes indivisíveis dela,o Mando Xavier, a Pachi, o Cristian e o Alberto, seus filhos, meus primos, filhos do irmao da minha mae... Ah, abracar cada um deles foi como mergulhar no calor do sangue, na terra, numa docura apertada, longamente desejada. As suas vozes e seu jeito de falar permaneciam as mesmas da nossa infância, mas hoje com acentos adultos... E era curioso,maso quando olhava para eles eu nao conseguia ver os cabelos brancos, as rugas ou quaisquer outros indicios que o tempo pudesse ter deixado neles. Nao, eu continuava olhando para meus primos da fazenda, da vila rural, da casa barulhenta dos meus avós e a sua garagem mágica, onde inventávamos todo tipo de brincadeira e aventuras. E os seus sorrisos continuavam inocentes, seus risos e gestos generosos, simples, espontâneos, sem receios nem julgamentos. Para mim, eles tinham conservado intata aquela ingenuidade, aquele espírito sempre alegre, cálido, de gente boa, bem educada, trabalhadora, sem frescuras, reta e aberta... E nesse momento pensei, grata: "Já nao se faz mais gente assim, e eu tenho a sorte de pertencer a esta família". Na capital as pessoas também sao amáveis, educadas, acolhedoras e abertas, mas nao têm comigo estes lacos, esta intimidade, as histórias, o afeto puro e sincero, intocado, que temos com a família. Todos eles sao dignos descendentes de um sonhador e de uma guerreira, reúnem neles o melhor do tio Armando e da tia Paty e eu espero que eles consigam passar isto aos seus próprios filhos para que assim, este rio de carinho, alegria e calor se estenda por muchas y muchas geracoes. Isto seria o melhor legado que poderiam deixar para nós.
    E assim, foram seus abracos apertados e sinceros, suas vozes bem chilenas e seu carinho calido e sem reservas os que naquela tarde de festa me deram as verdadeiras boas vindas à minha pátria.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

    Bom, e como dizem por aí: quem espera sempre alcanza. Porque cá estou eu, comodamente instalada no sofá da sala enquanto a minha filha está no centro resolvendo as suas coisas e comprando outras, digitando pela primeira vez em nosso próprio, maravilhoso, veloz e silencioso notebook... Aaah, vocês nao imaginam -na verdade acho que sim, porque a maioria do mundo possui algum tipo de computador- a felicidade, a facilidade, a tranquilidade e a rapidez com que posso escrever agora! Esta coisinha branca, leve e silenciosa é quase mágica. Até posso escutar música (a minha estacao preferida de Brasil, a Tribuna FM) enquanto digito! Imaginem! Estou parecendo crianca em loja de doces! (como vêem, aqui nao existe o ce cedilha nem o til, entao, nao é que estou esquecendo o português) Nao mais computador jurássico, nao mais frio ou dor nas costas! É claro que agradeco imensamente o servico dos pré-históricos, sem os quais nao teria podido continuar a comunicar-me com meus seres queridos nem postar estas crônicas, mas já estava na hora de modernizar, nao é mesmo? Demorou um pouquinho, mas valeu a pena. Agora vou passar menos tempo diante da tevê comendo porcarias ou pensando besteira e vou comecar a botar em dia meu diário e a minha correspondência, fora desenvolver todo tipo de idéias que me vên na cabeca... Em fim, que vou estar ocupada e feliz, disso nao me cabe a menor dúvida!.
    E para fazer jus a esta pequena maravilha (a quem já apelidei de Branca de Neve porque é branquinho e fininho) aqui vai a crônica desta semana. E nao se preocupem, porque à partir de agora  nao vou atrasar nunca mais.


    O dia amanhecera glorioso, cálido, céu azul, cerejeiras e amendoeiras espiando a primavera com seus pequenos e ainda tímidos brotos, que já anseiam encher de cor e perfume as ruas, pracas e parques... Saí na rua para fazer algumas diligências e meus olhos se encheram de água diante desta selva de concreto, voraz y veloz, que também comecava a se transformar com a mudanca de estacao: bandeiras chilenas em todos os quiosques e vitrines, nos táxis e sacadas, os gerânios dos postes jogando seu verde novo ao vento, os chincoles, pardais e tordos alvorocando nos galhos ainda nus, como chamando à seiva para que se apressasse a encher de vida as árvores. Cachorros preguicosos deitados ao sol, roupas mais leves, coloridas,vozes animadas, camisetas regata, sandálias, sorvetes, janelas abertas, cortinas dancando, gatos espreguicando-se nos parapeitos...
    Caminhava sorrindo feito uma boba, sentindo o vento que brincava com meus cabelos e a minha roupa como se fosse a primeira vez, com o peito estourando desta felicidade gratuita que com tanta frequência toma conta de mim desde que regresamos... Como podia ser tao bom? Como podia ser tao lindo? Como podia me sentir tao bem?... Sonhava? Atuava? Enganava a mim mesma? Quanto tempo mais iria durar esta magia? Pois a mim parecia que nao iria acabar jamais. Estou convencida de que nunca  mais vou deixar de me sentir feliz, grata, cheia de expectativas pelas aventuras que ainda me aguardam, corajosa, otimista. Acho que nunca vou deixar de enxergar o belo, o bom, o especial, o milagre que Deus bota em meu caminho. Meus olhos nao cansarao desta cordilheira, destas ruas, desta gente. Tudo é feito um constante milagre, uma permanente descoberta para mim, e tentarei fazer tudo que puder para que continue desse jeito até meu último fôlego.
    E de pronto, ao chegar neste ponto das minhas reflexoes, tive um imenso sobressalto, porque me perguntei: "Mas, até quando serei capaz de curtir tudo isto?"... Pois a consciência de que estou ficando velha se fez presente, ameacadora, muito real e próxima. Quanto tempo desta saúde física e mental me resta? Será que algum tipo de incapacidade vai me impedir de continiuar vivendo assim? Vai alienar a minha percepcao, a minha capacidade de expressao, a minha produtividade e interacao? Vai me confinar numa cadeira de rodas, numa cama de hospital, no quarto de uma casa de repouso?... Me cuido e me vigio o melhor que posso, mas... Quem conhece o amanha?... Dúvidas angustiantes, opresivas, assustadoras, sem resposta... Quanto tempo vou poder curtir nosso apartamento? Por quanto tempo vou poder trabalhar e produzir ainda?... O futuro incerto, fora de controle, implacável, erguia-se diante de mim. Por um momento tudo pareceu parar, anuviar-se, perder o sentido. "Entao, para que tantos planos?", me perguntei, desanimada "Qual é a resposta, a reacao, a nao ser se resignar? Mas resignacao nao é vida, é vegetar aguardando a morte!".
    Cheguei no apartamento cansada e triste, meio desacorcoada e cheia de pessimismo, pois tinha percebido que nao se pode fugir da velhice, e muito menos da morte. Me joguei no sofá e liguei a televisao. Passei os canais uma e outra vez. Nada interessante ou diferente que pudesse me tirar da minha aflicao. De qualquer jeito, estava convencida de que, naquela hora, nem o mais entretido dos programas seria capaz de melhorar meu ânimo... Sim, aqui estava, finalmente tinha regressado à minha pátria. Mas, por quanto tempo? Foi ali que pensei que deveria ter vindo antes, mas já era tarde para arrependimentos.
    De repente, um cao galgo cinza, magro e de olhar fugidio, encheu a tela. Conduzido pelo "líder da manada", César Millán, que tem um bem sucedido programa de televisao no qual resgata e encontra novos lares para cachorros abandonados, se aproximou de um outro cachorro, este pequeno e peludo, de um branco imaculado, com uma coleira vermelha. O dono do cachorro branco, que estava recebendo o galgo enquanto procuravam outro lar para ele, disse que nao queria adotar mais nenhum outro cao, pois já tinha sofrido o suficiente com a morte dos outros que teve. Confessou que estava sempre vigiando seu animal, angustiando-se e preocupando-se ao perceber como ele envelhecia tan rapidamente, estressando-se diante de qualquer sintoma ou mudanca... Entao, César olhou para ele, sorrindo compreensivamente,e respondeu:
    -Olha, os cachorros vivem cada dia, um de cada vez, porque para eles nao existe o amanha. Na verdade, é o ser humano quem se preocupa e se aflige com o futuro e com a morte. Para o cao, basta o dia de hoje.- e rindo suavemente concluiu -Nós deveríamos aprender com eles, você nao acha?.
    Eu fiquei olhando para a tela, com o controle ainda suspenso numa mao. As imagens continuavam: outros animais, outros casos, outras solucoes... Mas eu tinha ficado com a visao do cachorrinho branco tranquilamente deitado no tapete, olhinhos fechados, respiracao calma, corpo relaxado. O retrato da felicidade, da paz e a despreocupacao. O quadro da confianca, da satisfacao e a gratidao por outro dia, outra comida, outro passéio, um novo amigo.
    Bom, se estava precisando de uma resposta para sossegar a minha angústia e  meu pessimismo, este cachorrinho branco tinha acabado de me dar.

sábado, 3 de novembro de 2012

"Janelas"

    Tem sido duas semanas de muita correria, porém todo o estresse e as noites sem dormir valeram a pena porque, finalmente, conseguimos juntar o dinheiro para dar a entrada do nosso apartamentinho... Ah, vocês nao imaginam -ou talvez sim- a felicidade e o alívio que tomou conta de nós quando entramos na sala da imobiliária segurando o comprovante do depósito na mao!... Agora fico o dia todo sonhando com cada quarto, cada móvel, cada enfeite, cada planta que vou botar ali... E de repente me apanho pensando: "Nesta idade e comprando meu primeiro apartamento!"... Eu lhes digo, esta senhora aqui ainda tem gas para muita coisa! Muitos desafios, muitas aventuras, muita felicidade e muita criatividade, muita realizaçao! Cada dia fico mais convencida de que algo magnífico me aguarda aqui, entao estou bem atenta e muito otimista, porque tenho certeza de que nao irá demorar.
    E antes que acabe congelando nesta sala, apesar de que lá fora está um sol radiante, aqui vai a crônica da semana, mais uma vez totalmente atrasada. Mas como agora poderemos comprar um notebook com parte da grana que nos sobrou, provavelmente nao tornarei a faltar, já que nao terei de descer até o hotel para poder escrever... Bom, mas também nao vou ser ingrata porque estes computadores jurássicos do hotel têm sido muito eficientes para que possamos comunicar-nos e fazer as nossas coisas, nao é mesmo?...


    Sento na beirada da cama, em frente à janela, e fico ali durante algum tempo... O quarto está escuro e silencioso. A minha filha assiste televisao na sala ao lado, e sei que ficará até bem tarde, mas para mim já é hora de ir para cama... Olho para a janela e está tudo em sombras. Apenas distingo meu próprio reflexo no vidro. Sei que estou rodeada por três blocos de prédios de apartamentos, mas neste negrume parece que tao só eu existo neste momento. Sinto-me numa espécie de cápsula cálida e vibrante enquanto o universo lá fora está como que suspenso no nada... O peso de uma solidao desconhecida cai sobre mim, pois mesmo sabendo que estou rodeada de prédios e pessoas, tenho a sensaçao de estar numa outra realidade, minha somente, na qual meu corpo e a minha mente sao únicos, densos, onde nao há espaço  para mais ninguém. A minha própria vida se torna pesada, tortuosa, isolada, como se nao formasse parte da história, como se nao tivesse nenhuma relevância. É como um elo perdido no meio da noite. As angústias e inseguranças desta nova vida estao à minha volta feito mariposas ao redor de uma lâmpada e me tocam com as suas asas frias e aveludadas. Como nao tenho para onde olhar, visoes da minha existência passam diante de mim e nao tenho com quem compartilhá-las. Desligada de tudo e de todos, de pronto ela me parece inútil e sem sentido...
   No entanto, eis aqui que, de repente, a janela do apartamento na frente acende. O retângulo de cortina marrom parece flutuar no frio noturno. Percebo silhuetas que se movimentam atràs dele e, como caindo em mim diante desta imagem, lembro que ali mora um casal de chineses jovens, e que faz um par de dias compraram uma cama nova... Estou lembrando a cena do colchao e a armaçao de madeira entrando aos empurroes pela pequena porta, quando acendem outras duas janelas, quase que ao mesmo tempo. A da cortina verde é do apartamento do dono da padaria onde compramos o pao e o presunto e aqueles abacates deliciosos. Seu Fernando anda com um dedo enfaixado por causa de um acidente domêstico... A cortina vermelha esconde um casal com uma criança pequena que adora andar pela sala empurrando a sua cadeirinha...
    Em seguida, outras tres janelas iluminam-se... "Todo mundo está retornando para casa", digo a mim mesma, começando a sorrir ."É, os chilenos realmente trabalham até tarde"... O poodle lá embaixo corre em direçao à porta que se abre, latindo e saltitando, e alguém entra e se abaixa para afagá-lo. A mulher loira abre a porta do terraço e pendura uma toalha no varal improvisado. O vizinho ao lado sai com a sua xícara de cafe e seu cigarro e fica parado ali, observando lânguidamente a fumaça que se eleva da sua boca. O gordinho de cima aparece na janela falando ao celular. A senhora a minha esquerda aparece no balcao com uma jarra de água e rega generosa e  delicadamente suas samambaias, cravos e violetas...
    Ainda sentada na beira da cama, contemplo cada um destes quadros ao meu redor, e nao posso conter um sorriso. Quanta gente conheço! E que perto estao de mim!... E começo a fazer as contas: a moça da academia -Madalena- o conserje -seu Arturo- as zeladoras -Joana e Maria- o senhor da lan house na estaçao do metrô, a dona da floricultura, a senhora do mini marquet -dona Teresa- o cabelereiro -André- a sua cachorrinha -"Florencia"- e seu amigo -Mario- o faz de tudo do hotel -Carlos- a professora de canto da minha filha -Paulina- os empregados das lojas,  as caixas dos mercados, o vendedor do quiosque de frutas, a minha vendedora na feira... Pisco e solto um suspiro, endireitando-me, pois uma multidao de rostos, de vozes, anedotas e encontros, de momentos compartilhados desfila diante dos meus olhos, e cada um deles deixa a sua marca em minha vida, se entrelaça na minha história de uma ou outra forma, acrescenta uma experiência à minha vida, assim como eu mesma devo acrescentar alguma à vida deles.
    Deixo que as luzes acessas protejam a minha escuridao e vou até o banheiro escovar os dentes. Fico olhando a água correr, faladeira e poderosa, e percebo que nao estou sozinha como pensei, mas que faço parte de um todo, que tenho meu papel. E mais, percebo que todos devemos fazer parte, que precisamos viver o nosso papel, cumprir o nosso destino e deixar o nosso legado. Estamos rodeados por outros como nós, aqueles com quem cruzamos todo dia por alguma razao. Precisamos uns dos outros e mesmo que às vezes pareça que estamos sós ou que fomos abandonados, precisamos saber  e acreditar que, escondidos nas sombras -inclusive as mais escuras- há outros que, mais cedo ou mais tarde, acenderao suas janelas para iluminar nosso caminho.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

"A cerejeira"

    Às vezes as coisas parecem caminhar tan devagar que dao a impressao de estar se arrastando. Outras, vao tao rápido que nao percebemos como acontecem e de repente, bam! já está tudo solucionado e a gente pode continuar com a vida feliz e despreocupado... Bom, para nós as coisas andam mais ou menos desse jeito: um dia insuportavelmente devagar, noutro alucinantemente rápido. É feito uma montanha russa - coisa nada favorável para a glicemia ou a pressao arterial- mas tenho certeza de que toda esta loucura e esta ansiedade vao acabar valendo a pena porque obteremos a nossa recompensa. Quer dizer: nosso tao sonhado apartamento próprio... Falta pouco, muito pouco, posso senti-lo nos ossos. Um suspiro de paciência e fé e já estaremos lá.
    E aproveitando esta onda veloz que vem de encontro a nós, trazendo bons presságios, um sol esplendoroso e uma brisa cheia de perfumes, sento aqui para postar a crônica da semana. Meio atrasada, para variar, mas...


    -Encadernaçao?...- perguntou a atendente do hotel e, após pensar por alguns momentos, sorriu e disse: -Tem um lugar aqui perto, na rua Paris, a um quarteirao daqui. Nós fazemos todas as encadernaçoes lá.
    Agradeci a informaçao com um sorriso, peguei a sacola com meus papéis e fui para a rua atrás da tal imprenta. O dia estava lindo, ensolarado, o ar cristalino, apesar das lufadas de vento frio que de repente varriam as esquinas  e os cantos, assobiando entre as paredes históricas e as suas fendas e  levantando redemoinhos de folhas secas  nas calçadas de paralelepípedos... Inverno com ameaça de primavera, típico de Santiago... Me enfronhei na parca e subi pela rua que a mulher tinha me indicado, olhando bem para nao me perder porque, como ela tinha me explicado, o local era pequeno e meio escondido. Eu observava os casaroes de pedra com as suas sacadas e terrazas de grades trabalhadas, as janelas caprichosamente esculpidas, as garagens imponentes, e nao imaginava onde poderia estar uma pequena imprenta pois tudo me parecia grande e majestoso.
    No entanto,  andando um pouco mais, divisei, ao longe, um letreiro verde e branco no qual dizia: "Imprenta. Ge Go fotocópias" apoiado na entrada do que parecia ser a garagem de um casarao. Me aproximei, percebendo que outros pequenos estabelecimentos de todo tipo tinham se instalado também nas garagens ou entradas das mansoes, até chegar ao lugar. Quando o vi, fiquei meio prepocupada, pois achei que a senhora do hotel tinha cometido um erro. Aquilo nao era mais do que um espaço minúsculo, sem balcao de atendimento, apenas com uma placa de compensado meio torta, sem pintar, separando os clientes dos funcionários. Uma escrivaninha arcáica, pesada e escura, um sofá de couro surrado, com certeza resgatado de alguma venda de garagem ou de uma mansao em decadência, uma estante mal feita, paredes amareladas, gastas, manchadas. Era um lugar sombrio e estreito, no qual quase nao tinha espaço para se mexer entre aquele móvel gigantesco e o armário na parede, onde se amontoavam pastas e folhas. No fundo, depois de um umbral meio coberto por uma cortina beige bastante suja, podia ver-se a máquina impressora, antiquada, preta e esquisita, parecendo mais um gigante encarcerado. Uma geladeira, um computador ultrapassado, papéis, máquinas menores, trapos, latas de tinta... Uma desordem respeitável e nada confiável... Um homem alto e desengonçado, com um avental manchado, óculos e quase careca, inclinava-se sobre a prensa, totalmente abstraido... Eu olhei em volta, meio desconcertada, sem saber se devia ir embora ou entao fazer  algum tipo de barulho para que o homem percebesse a minha presença. E bem quando estava prestes a dar meia volta e ir embora, apertando meus preciosos papéis contra o peito como quem salva o filho de uma morte certa e horrível, uma voz feminina veio de detrás de mim, desde algum canto longíquo, e me cumprimentou:
    -Bom dia, minha querida! Em que posso ajudá-la?
    E eu juro que era uma das vozes mais amáveis e alegres que tinha escutado em muito tempo, totalmente  fuera de contexto naquele ambiente lúgubre. Tanto que me fez parar como se tivesse me jogado um laço. Virei imediatamente, curiosa por ver o rosto dono daquela voz quase mágica.
    -Bom dia - repetiu ela - O que posso fazer por você?
    Eu fiquei olhando para ela durante alguns instantes antes de responder, totalmente surpresa. Porque a imagem realmente nao correspondia em absoluto àquele cenário: me encontrava diante de uma senhora de uns cinquenta e poucos anos, de cabelos loiros perfeitamente penteados, pele e olhos claros e brilhantes, maquiagem discreta, lábios rosados, uns brincos pequenos, colar de pérolas, unhas pintadas, um par de anéis sóbrios. Vestia com elegância e as suas botas brilhavam sob a saia lisa. Pequena e franzina, o que mais chamava a atençao -afora sua voz- era seu sorriso, que mostrava uns dentes brancos, algo irregulares. Quando seus lábios se entrabriam parecia que tudo ali dentro se iluminava, tornava-se calido, acolhedor. Tive a sensaçao de que a conhecia desde sempre, de que poderia confiar nela, de que iriamos nos dar muito bem...
   Sem duvidar um segundo, voltei atrás e lhe apresentei a minha sacola.
   -Preciso fazer fotocópias e encadernar estes papéis.- lhe expliquei, sorrindo também.
    -Pois nao!- respondeu, pegando as folhas com movimentos leves e experientes. Em seguida deu uma olhada neles, como para avaliá-los -Ficam prontos numa hora.- disse, e tornou a olhar para mim.
    E aqueles olhos eram tao sinceros, tao acolhedores, tao envolventes, que eu nao queria sair da frente deles. A sua voz melodiosa e animada, seus gestos claros e graciosos e aquela total disponibilidade para comigo e as minhas necessidades tinham me conquistado por completo, instantaneamente.
    Entao, me perguntei: Como será que se tornou assim? Quais foram as experiências que a transformaram nesta mulher cálida e positiva? O que a animava? Por que tinha aquele sorriso?... Será que tinham sido tan só vivências boas? Sorte? Uma vida feliz, saudável, financeiramente estável, próspera? Alguma crença religiosa? Algum amor?... Porém, também me ocorreu que talvez fosse o oposto: que o sofrimento tinha-a lapidado para que aprendesse a perceber e aproveitar cada momento positivo, cada encontro, cada gota de felicidade que encontrasse em seu caminho. Talvez tinha aprendido através da dor que o sorriso e a amabilidade sao feito sementes que, quando jogadas, se multiplicam e dao flores e frutos que retornam a quem as plantou. Talvez uma inabalável esperança nos homens, no destino, no bom combate, aninhava em seu coraçao e sustentava seu corpo, daquela esperança e gratidao que renascem cada manha e sao reforçadas ao longo do dia pela percepçao e a assimilaçao da beleza que nos rodéia, pela consciência de cada pequeno milagre que acontece durante nossa jornada. Talvez acreditava em anjos, no paraiso, na boa fé, na compaixao. Quiçá se sentia tao grata e afortunada que desejava compartilhar a sua felicidade conosco, queria que soubéssemos como era bom estar vivo, poder enxergar, escutar, sentir, se comunicar, ser amável, sorrir, estar disposto a acolher... A imprenta era pequena e féia, sim, mas naquele instante eu tinha a certeza absoluta de que a minha encomenda seria executada com total perfeiçao, pois seria feita com todo o amor e o brilho que esta mulher irradiava.
    "Pôxa!", pensei, enquanto me afastava "Esta mulher poderia fazer florescer um jardim em pleno inverno!"
    E quando ergui a cabeça vi, na calçada bem em frente à imprenta, uma cerejeira cheia de flores abertas que perfumavam o ar.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

O táxi e o ponto de ônibus

    Após alguns dias bastante frios (típica primavera chilena) cá está novamente o sol, luminoso e cálido, dando-nos ânimo e prometendo-nos dias melhores. Nao sei por quê um céu azul feito o de hoje tem o poder de levantar-nos o astral, de renovar a nossa fé, de fazer com que percebamos como o mundo é lindo e como a vida é rica e valiosa...
    Como podem ver, hoje estou  absolutamente poêtica (isto apesar da prepocupaçao e a ansiedade devido à demora na venda dos nossos terrenos, coisa que parece estar levando uma eternidade!) e acredito que este espírito lírico e a pequena felicidade que revoa em minha alma devem-se, justamente, a este céu azul e ao sol, que brilha com alegre insolênciae, bom, talvez também ao meu novo corte de cabelo, que me custou uma fortuna, mas que valeu cada centavo... Num dia feito este, a gente está convencida de que nada pode dar errado, nao é mesmo?
    E assim, aproveitando a temperatura amena e a cabeça mais leve, vou postar a crônica da semana antes de que esfrie aqui no hotel. É uma outra comprida, como verao. Nossa, esse negócio de ter parado de enviar textos à Folha de Londrina está me deixando muito à vontade, já que nao tenho só trinta linhas como limite para desenvolver um tema... Ou será que deveria?... Por favor, se começo a ficar muito chata e comprida, me avisem!...


    Às seis e trinta da tarde o engarrafamento era realmente  fenomenal, interminável. Buzinas, urros, fumaça, impaciência, insultos. Ônibus e carros apinhavam-se, lutando por um espaço, por avançar alguns centímetros, mas a coisa estava tao féia que nem sequer os motoqueiros mais experientes conseguiam passar. Os pedestres contemplavam esta multidao motorizada com uma mistura de espanto e fascinaçao, alguns paravam para fazer comentários e, com toda certeza, chegavam à conclusao de que, naquele momento, era bem melhor ter duas pernas do que quatro rodas.
    Minha filha e eu, enfiadas num táxi à caminho de um ensaio com o coral de uma escola,  nos sentíamos feito sardinhas enlatadas, espremidas por todos lados, vendo os minutos correr sem avançar um metro. Com certeza iríamos chegar atrasadas, e bem no último ensaio geral antes de apresentaçao!... Mas nao tinha jeito, como resmungava o motorista, entre um puxao e outro. Nesta hora era o inferno mesmo. Paciência...
    O sinaleiro finalmente abriu lá na frente e conseguimos adiantar um par de quarteiroes. Em seguida, novo engarrafamento, buzinas, xingamentos y caras furiosas. Ainda bem que, pelo menos, a paisagem era bonita (bairro chique da cidade) elegante, cheio de jardins, prédios modernos, lojas sofisticadas y praças cheias de  fontes e canteiros floridos. Do nosso lado, carros último modelo, rostos refinados atrás do volante, roupas caras, un tênue ar de fastídio, de digna impaciência estóicamente aturada. Do lado oposto, uma fileira interminável e ônibus verdes, laranjas e azuis, y na calçada os pontos cheios de gente aguardando...
    Chegamos à última esquina antes de virar em direçao a uma grande avenida e o sinaleiro estava fechado. O taxista, que já tinha tomado algum impulso, freou bruscamente e soltou alguns palavroes em voz baixa. Minha filha e eu nos entreolhamos e só deixamos escapar um silencioso suspiro de resignaçao. A gente ia chegar atrasada mesmo...
    Ficamos estagnadas ali pelo que pareceu ser uma eternidade, e durante esse tempo me ocorreu dar uma olhada ao que ocorria além da janela embaçada do carro. Entao, prestei atençao nas pessoas que se amontoavam no ponto de ônibus. Estávamos bem em frente dele e realmente tinha uma pequena multidao aguardando ali: homens, mulheres, adolescentes, crianças da mao das suas maes ou em seus colos, expressoes cansadas, cinzentas, opacas. Roupas velhas, sobrepostas de qualquer jeito, só para enganar o frio. Botas, botinas, tênis gastos, tortos, tristes, meias de la, cachecóis, gorros, luvas sujas e furadas. Caras lavadas, rudes, cabelos ajeitados de qualquer jeito, chapéus velhos, casacos surrados... E sacolas, dúzias de sacolas, pacotes, embrulhos, carrinhos, folhetos com promoçoes de supermercados, caixas de papelao... Olhada assim, mesclada com todos aqueles objetos, era uma massa informe de corpos e feiçoes tao similares que pareciam irmaos. Gente humilde, sofrida, sacrificada, teimosa, quase sem esperança... E ao aolhar para eles, de improviso me perguntei: "Mas, o que eles fazem aqui?"... Olhei à minha volta, para todos aqueles prédios luxuosos, cujas sacadas davam a volta por todo o andar, com aquelas janelas panorámicas através das quais podiam ver-se saloes imensos com lustres de cristal, quadros, plantas, espelhos, móveis e tapetes caros. Olhei as ruas limpas, os jardins verdes, as calçadas sombreadas por árvores bem cuidados e frondosos. Vi os vidros polarizados, o metal trabalhado, o concreto caprichosamente moldeado, o ferro domesticado com tanta graça e majestade. Tudo ali era novo, impecável, audacioso, cheio de uma insolente ostentaçao que intimidava. Numa palavra: caro. Olhei de novo para o grupo que se amontoava no ponto: ninguém alto, loiro, de olhos ou pele claros e suaves, bem vestido, com jóias, com aquele ar de superioridade tao natural naqueles que têm tudo... Nao, esta gente era o oposto e, definitivamente, nao pertenciam a este lugar. Entao, quem eram? O que faziam ali?...
    Entao percebi: estes eram os que trabalhavam para os outros que moravam ali: babás, jardineiros, cozinheiras, lavadeiras, secretarias, balconistas, porteiros,  ascensoristas... Por isso destoavam em meio do luxo, eram demasiado simples, ignorantes, feos, cansados, desiludidos, contando as moedas para pegar o primeiro dos três ônibus que os levariam de regresso às suas casas, afastando-os cada vez mais daquele mundo claro e perfumado no qual passavam a maior parte dos seus dias. Às seis e trinta retornavam ao prato minguado, ao espaço apertado, ao quintal minúsculo, à cesta de roupa suja, ao barro, à toalha de plástico, às suas contas, suas dores, suas incertezas... Imaginei que aquilo deveria ser como entrar e sair constantemente do mundo de Alice no paìs das Maravilhas, e supus que no era nada fácil, com certeza. Para mim, que estou bem no meio destes dois mundos, já era chocante esta diferença, entao imagino como era para eles!.
    O sinaleiro abriu e o motorista, aprovechando uma brecha, virou velozmente e deixou para atràs o congestionado ponto e o pequeno universo que asilaba sob a sua sombra. Eu encostei a cabeça no banco e fechei os olhos porque, de repente, toda aquela opulência parecia-me insultante, pois demonstrava nao ter a menor consciência desta "raça" que se movimentava pelas suas entranhas todo dia e à qual tao só oferecia -feito uma esmola- ônibus lotados para que fizessem a sua travesia diária atrás do seu sustento.... Nao, isto nao podia ser justo.
    Entao me perguntei, desconcertada, angustiada: "Quantos mundos existem dentro deste no qual transcorrem as nossas existências? O meu, o do padeiro, o do empresário, o da professora, o médico, o mendigo... E em quantos deles somos capazes de existir, de produzir, de aprender?... Vários universos, vários papéis, muitas liçoes... Nao fechemos a porta às outas histórias que acontecem paralelamente à nossa, pois nunca sabemos quando teremos que entrar nalguma delas ou enlear-nos com suas personagens, compartir experiências com eles, aprender da sua sabedoria, botar nosso grao de areia para que, juntos, demos mais um passo. Hoje estou no táxi. Amanha posso estar no ponto de ônibus.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Nuvens

    Hoje nao vou me alongar demais com o prólogo, pois a crônica desta semana é enooooorme, o que significa que a minha inspiraçao está a mil, o que por sua vez significa que estou me sentindo perfeitamente inserida neste ambiente, o que, finalmente, quer dizer que estou maravilhosamente feliz... Para que querem saber mais? Estou cheia de alegria, de boas intençoes, de bons pressentimentos, de otimismo e serenidade e, apesar de que dizem que os artistas trabalham melhor ou produzem mais quando sao terrivelmente infelizes, eu devo discordar. Já acreditei nesta "lenda urbana", mas hoje acho que nao é sempre assim. Pelo menos nao se aplica a mim neste momento... Graças à Deus!
    E sem mais delongas, aqui vai a desta semana, caso contrário vai ficar longa demais.


    Sempre acreditei que as nuvens gostam de nos enganar, assim como nos enganam os problemas que de vez em quando aparecem em nosso caminho... E como foi que cheguei a esta conclusao?, se perguntarao vocês... Bom, pois foi na primeira vez que viajei de aviao, já adulta. Foi assim que aconteceu:
     Quando cheguei ao aeroporto o dia estava nublado e frio, o vento gelado penetrava por todas as fendas da nossa roupa e corpo e nos fazia tremer. A pista parecia úmida e todo o ambiente era estranhamente lúgubre e denso, lento, prenhe de silenciosos receios.
    -Parece que teremos turbulência durante a decolagem...- anunciou com ar sombrio uma mulher sentada junto a mim, e se remexeu irrequieta dentro do seu agasalho.
    -Credo, nem queira passar uma turbulência durante a decolagem! Nossa, nao tem nada pior. Parece até que o aviao vai desmontar qualquer minuto! É terrìvel!- expressou o cavaleiro junto da sua bagagem, com olhos esbugalhados e temerosos.
    - É verdade...- acresceu outra mulher, mais longe, esquadrinhando-nos por tras dos seus óculos -Parece que você vai se arrebentar no chao ali mesmo! -e soltando um suspiro queixoso, arrematou: - Eu agradeço a Deus toda vez que pousamos em terra firme. Imaginem, já perdi tres parentes em acidentes aéreos!...- e fez o sinal da cruz com devoçao.
    - É o certo a se fazer.- concordou o senhor junto da bagagem, com ar fúnebre -Encomendar-se à Nossa Senhora e a todos os santos.- e fez um gesto de resignaçao.
    Se seguiu um enorme silêncio de mau augurio e todos ficamos olhando para o céu carregado que pronto estaríamos cruzando. Talvez algum engraçadinho de plantao teria soltado o típico comentário: "Bom, e se despencamos nao temos que nos preocupar, porque do chao nao passamos!"... Mas acredito que, naquele dia, nenhum de nós teria achado engraçado.
    Eu, a cada minuto mais tensa en mi cadeira, preferi distrair-me do ominoso silêncio e das caras sombrias (por que sempre tem que aparecer algum idiota para fazer comentários desafortunados nos aeroportos quando o clima está ruim? Nao bastam os nossos próprios e inconfessáveis pavores?) olhando as vitrines de importados, aspirando o perfume tentador das cafeterias, o vai e vem dos passageiros empurrando ou puxando bagagens de todas as formas, cores e tamanhos (às vezes pode ser realmente esdrúxulo o que as pessoas transpostam) os cartazes das companhias aéreas, os uniformes das aeromoças, as notìcias na televisao... Mas meus olhos negavam-se sistematicamente a pousar-se na pequena tela que anunciava as aterrisagens e as decolagens, porque o nosso fatídico vôo era o próximo. Sabia que era inútil, uma infantilidade da minha parte, mas a visao daquele céu cinza e imóvel sobre as nossas cabeças me fazia desejar ter qualquer outra opçao que nao fosse embarcar.
    E como se nao bastasse esta preocupaçao externa, eu viajava com bastante excesso de bagagem: desgostos, dúvidas, preocupaçoes, alguns fracassos estrondosos, brigas, decisoes difíceis, pessimismo e uma incerta tristeza por ter tomado alguns caminhos errados e dito coisas que poderia ter calado... Sim, definitivamente, nao seria uma viagem prazeirosa, pois nao havia nuvens de tormenta tao somente no céu. Meu próprio coraçao também estava escurecido por elas.
    O que fazer, entao?... Respirar fundo, agarrar a mala e entrar o mais dignamente possível na fila de embarque e depois pelo finger até o interior do aviao, onde encontraria a minha poltrona, sentaria, botaria o cinto e me submergeria numa espécie de auto-hipnose até chegar ao meu destino...
    Sendo assim, sentei, resignada, e dei uma última e suplicante olhada ao céu nublado. O aviao começou a rodar, virou, entrou em outra pista, parou durante alguns momentos e finalmente arremeteu, feito uma fera furiosa, e começou a elevar-se... Quase imediatamente fomos engolidos por uma neblina densa que fazia tremer as asas do aviao (e claro, a minha janela dava justamente em cima de uma delas) e apagou toda a paisagem ao nosso redor... Em seguida, enquanto subíamos, a aeronave era impedosamente chacoalhada para cima e para abaixo e todos mostravam suas mais brancas e paralisadas caras de pavor, apesar do sorriso das aeromoças, que pareciam flutuar no estreito corredor feito fadinhas do dente.
    "É um castigo", pensava eu, agarrando-me aos braços da minha poltrona. "Esto é como o resumo do desastre que é a minha vida neste minuto. Nao enxergo nada, parece que nada depende de mim e sou chutada sem piedade pelas circunstâncias e as pessoas. O que posso esperar? Este mal tempo nao passará jamais!", e soltei um grunhido de desgoato e impotência.
    Nesse momento, a voz do capitao, polida e alegre, nos deu as boas vindas (A ISTO?) desculpou-se pela turbulência (como se pudesse tê-la evitado) e anunciou que atingiríamos a altitude para ir à velocidade de cruzeiro, seja o que for que aquilo significasse... O aviao arremeteu de novo, num esforço que tampou meus ouvidos, e de repente, um raio de sol fulgurante entrou pela minha janela... Surpresa, me endireitei e olhei para fora... As nuvens desfaziam-se velozmente e pouco à pouco começou a aparecer um céu azul, esplendorosamente aberto, cristalino; um horizonte infinito semeado de raios dourados se abriu diante de nós... Eu segurei o fôlego. Aquele azul parecia penetrar-me por completo e eu sentia que, literalmente, alguma coisa -esse peso, essa escuridao em meu coraçao- trincava, estralando, e começava a dissolver-se... Entao, para além das nuvens negras e da turbulência, o sol brilhava e iluminava tudo! Nao podìamos vê-lo lá de baixo porque o mal tempo nao nos deixava, mas ele estava ali, aguardando a que subíssemos, a que tivêssemos a coragem de ultrapassar a tormenta para voltar a desfrutar da sua luz e do seu calor.
    E enquanto esboçava um sorriso emocionado, misturado com algumas láfgimas furtivas, pensei: "Deve ser assim também com os nossos problemas. Precisamos passar por eles, nao ficar parados ou esconder-nos, pois nao sumirao sozinhos. Precisamos tomar uma atitude, precisamos ultrapassar as sombras, as chuvas e os vendavais e alcançar o sol novamemente, pois ele está ali, sempre está. Nem as nuvens nem as dificuldades devem amedrontar-nos, pois somos como aquele aviao que, graças à potência das suas turbinas e à força das suas asas, consegue elevar-se acima do mau tempo e voar serenamente em direçao ao seu destino.
    Assim, cada vez que o dia amanhece frio, com presságio de chuvas ou que o vento gelado sopra e nao consigo enxergar minha amada cordilheira; quando os problemas, a insegurança, o desânimo ou o medo tomam conta de mim, eu lembro daquela viagem, daquele aviao que, passando incólume pela turbulência anunciada, conseguiu atingir altitude suficiente para reencontrar o sol.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

O cego

Apesar de que as tardes ficam frias e de que peguei um trememndo de um resfriado, os dias continúam gloriosos, felizes, tranquilos e cheios de aventuras. É verdade que tive de ficar uma semana trancada, tossindo e espirrando, o que significou uma diminuiçao da inspiraçao porque, sinceramente, os remédios que tem acá para a gripe sao meio que poderosos demais. Descongestionam até o pensamento da gente! E adormecem a nossa inspiraçao porque, literalmente, passava as tres quartas partes do dia cochilando no sofá, além de dormir feito um tronco à noite... Ainda bem que já estou melhor, entao pude sair para passear e dar pao às pombas do Passéio Bulnes e vir até o hotel para postar esta crônica. Em todo caso, como mais da metade de Santiago está tossindo, espirrando e bebendo xícaras e xícaras de chá com mel e limao, nao me sinto tao abandonada em minha desgraça que, por sorte, já está chegando ao fim.
   Entao, aqui vai, enquanto a cidade se enche de bandeirinhas chilenas e os passarinhos vêm comer as migalhas na janela do nosso apartamento.


    Vinha o cego caminhando em pleno Passéio Ahumada, cinco e meia, quase seis horas da tarde, quando os escritórios terminam o expediente e todos os funcionários se lançam à rua, semelhantes a uma onda ensurdecedora e desordenada, para a happy hour ou a novela em casa junto com a família... Com a sua bengala branca por diante, sulcava aquele oceano de pessoas com uma segurança assombrosa. Ninguém o acompanhava, no entanto ele parecia saber perfeitamente para onde se dirigia. Eu estava na  esquina, junto com a mina irma, esperando a luz verde do semáforo para atravessar, quando o vi surgir por trás de um redemoinho de agasalhos, cachecóis, pastas, sacolas e bolsas, alto e magro, vestido com uns jeans surrados e vários suéters, camisas, blusas de la e jaquetas superpostas, todas igualmente gastas. No entanto, o toque mais original da sua indumentária era aquele gorro, mistura de bonê e passamontanhas, meio enrolado com um cachecol colorido (na verdade, nao consegui descobrir se o cachecol e o gorro formavam parte de uma mesma coisa) que lhe cobria o rosto até o nariz. Só podia adivinhar-se que era cego pela bengala com que ia tateando o chao adiante dele, pois seus olhos permaneciam sombreados pela pala do bonê.
    Ao reparar nele, dei uma cotovelada na minha irma, apontando-lhe o homem, que se aproximava rapidamente
    -Olha esse cego!...- cuchichei -Com que facilidade e segurança se movimenta!.
    Porém, a minha irma nao pareceu impressionar-se muito com meu comentário, pois acho que estava com a cabeça em outras coisas, mas eu o segui com o olhar até que desapareceu no meio da multidao e nao pude reprimir uma silenciosa exclamaçao de admiraçao.
    O que me deixava atônita nao era tao somente a sua habilidade para locomover-se sem tropeços neste mar humano que também se mexia, mas a ousadia com que o fazia. Seu andar era decidido e firme, sem medo. Parecia saber perfeitamente por onde ia. Sabia para onde ia. As pessoas à sua volta eram feito "males necessários" ou "efeitos colaterais"; nao conseguiam desviá-lo nem detê-lo. Pelo contrário, afastavam-se do seu caminho, mas nao somente por causa da sua bengala branca, que lhes avisava que deviam fazê-lo, mas também pela atitude do cego, por esse gesto imperativo, seguro, inteiro com que avanzava pela rua... De onde vinha? Qual era seu destino? Era cego fazia muito tempo? Como era que tinha superado tan destramente a sua incapacidade? Como se sentiria caminhando no meio destas ruas tumultuadas do centro? Haveria alguém esperando por ele em seu destino? Vivia sozinho?... Dezenas de perguntas zuniam em minha cabeça...
    Quando finalmente desapareceu, percebi que estas nao eram realmente importantes, pois nao era seu origem ou sen destino o que devia ser notado ou investigado, mas sim a forma de percorrer o trajeto entre estes dois puntos: sem medo.
    Continuamos caminhando pelo Passéio Ahumada em direçao ao nosso apartamento, esquivando o vagalhao que vinha em sentido contrário, receando um esbarrao, uma pisada, um puxao na bolsa, uma mao boba no corpo, evitando olhares, perscrutando o chao para nao pisar em alguma coisa desagradável, para nao enfiar o salto numa grade... O trânsito rugia feroz, desesperado para chegar em casa, os predios pareciam árvores de natal, no ar dançava o bafo desordenado da multidao que parecia abraçar-nos até tirar-nos o fôlego...
    Em pouco tempo alcançamps o prédio, pegamos o elevador e já estávamos no apartamento, sas e salvas, exaustas, famintas. Ligamos a televisao e nos esparramamos no sofá. Como era bom estar na tranquilidad da nossa casa, protegidas!...
    Porém à noite, já deitada na minha cama, rodeada pelo silêncio e a penumbra, meus pensamentos retornaram até o cego. E me perguntei por que ele nao tinha medo. Quis saber o que lhe dava aquela coragem... E nós, do que nós temos tanto medo? Por que temos medo?... Nós enxergamos!... E nesse momento desejei ter a coragem daquele cego que, mesmo nao enxergando a rua, os carros, as pessoas, somente escutando seu barulho e percebendo seu calor e seu movimento, avançava ousadamente, sem sentir pena dele mesmo, sem intimidar-se pelos sons, os cheiros, os toques; sem perder o rumo, certo do seu destino.
    Só espero que depois deste encontro, eu própria seja capaz de enfrentar os problemas, os desafios e as aventuras que me aguardam tal como este homem que, em sua cegueira, parecia enxergar muito melhor do que todos nós.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

Um oasis

    Agora tenho tanto material para postar aqui que está ficando meio difícil escolher qual texto botar! No estou me queixando, pois a minha inspiraçao está a mil. As estórias e reflexoes pulan diante de mim a cada passo, as liçoes, as personagens. Descubro que este país é altamente instigante e inspirador, nao só pelas novidades e a diversidade, mas também porque me faz sentir cómoda, relaxada e muito perceptiva. Tenho todo o tempo e a tranquilidade do mundo para parar e observar ao meu redor e, como devem supor, esta situaçao é o paraiso para qualquer escritor!.
    Entao, aqui vai a crônica desta semana, o coraçao saltitando no peito, feliz e realizado, aguardando a próxima aventura.


    Aproveitando o lindo dia de sol em pleno inverno, a minha filha e eu decidimos sair para passear por um dos tantos parques que há em Santiago. Pegamos o metrô e descemos na estaçao Salvador, cuja escadaria emerge para o Parque do Bicentenário... Foi quase que uma cena de filme a que nos aguardava quando terminamos de subir os degraus: árvores enormes, prados verdes, canteiros cheios de flores coloridas, estátuas, bancos, senderos de areia amarela e, coroando tudo, a fonte retangular, imensa, com seus magníficos esguichos de água que pareciam querer alcançar o mesmo céu.... Ao nosso redor pardais, chincoles, pombas, tórtolas, zorzales;  famílias esparramadas na grama, estudantes com seus notebooks, suas roupas estranhas e sus gestos exagerados, com aquele aspecto de quem acabou de sair da cama; casais caminhando devagar, de maos dadas, respirando profundamente o temprano aroma das cerejeiras, que ameaçavam florescer  numa explosao... Cachorros, crianças, bexigas, grupos dançando, pulando de skate; senhoras sorrindo nos bancos, cavalheiros abstraidos lendo o jornal. Até quem parecia ocupadoi e apressado, diminuia o passo quando entrava no parque para dar uma olhada ao seu redor para perceber y apreciar, nem que fosse por alguns momentos, a beleza do lugar, a sua tranquilidade, seu colorido que convidava à reflexao, á consciência, a se abrir por alguns instantes e esperar algum tipo de milagre...
   Eu, recostada num dos bancos, perguntando a mim mesma quantos deles poderia descobrir enquanto estivéssemos ali, diante do chafariz que umedecia o vento, de repente, ao olhar além, me percatei da presença insolente dos ônibus, os carros, os prédios modernos, as lojas iluminadas, as calçadas vertiginosas e barulhentas, tomadas por aquele mar infindável de pessoas... Pisquei um par de vezes, surpresa, pois o contraste entre ambos lugares me pareceu espantoso. Como era possível que, a cinquenta metros deste oasis verde e aprazível no qual me encontrava, corresse aquela espécie de universo paralelo voraz, acelerado, indiferente e agressivo? O que os separava com tanta clareza? Nós? Os outros? A rua? Ou quem sabe algum tipo de lei divina ou natural? Ou entao homens geniais e altruístas que projetavam, construiam e nos davam de presente estes oasis para que nao enlouquecéssemos nem esquecéssemos a nossa condiçao humana, para que lembrássemos qual era o verdadeirio mundo?... Com certeza visionários que desejavam que nao perdéssemos o contato com esta realidade, com o natural, com o vital. Os homens idealistas e ingênuos que projetavam e realizavam estes espaços para seus irmaos, os homens pragmáticos e desconfiados... Era muita bondade deles!
    Entao, aos poucos, foi me ocorrendo que nós poderíamos fazer a mesma coisa, mas dentro de nós mesmos, ou entao em algum canto da nossa casa: criar um oasis, um refúgio, um santuário de descanso com tudo aquilo que nos é mais caro. Um espaço de revigoramento, de paz, de reciclagem, de transformaçao. Em meio a nossa vida agitada e cheia de problemas e angústias, precisamos encontrar um lugar no qual possamos projetar e e construir esta oasis, este tempo de reencontro, de avaliaçao e retorno ao equilíbrio,ao que verdadeiramente importa, porque é somente desde ali que poderemos ganhar um novo olhar, é dali que poderemos tirar a força, a alegria, a fé, a saúde física, mental e espiritual; é ali que nos renovaremos, nos reinventaremos, recomeçaremos após cada queda. Porque assim como a metrópole monstruosa e devoradora nos oferece inistintamente suas praças,parques, chafarizes e passéios e nos lembra nosso direito de parar, de mudar, de desfrutar, assim como a selva de concreto tem piedade dos seus habitantes brindando-lhes quadros da primavera, de bexigas e crianças inocentes, de ewsculturas poéticas, de canteiros de violetas e gerânios, de árvores centenários que renascem a cada setembro, assim nós, nossos piores juizes e carrascos, precisamos construir e preservar dentro de nós este oasis, estes canteiros floridos, estas fontes cristalinas, os cachorros, as bexigas, os pardais, as veredas claras e os céus azuis... Assim, quando andemos sobrecarregados, sombríos e magoados, poderemos mergulhar neles e encontrar a paz, a coragem, a clareza e o otimismo que precisamos para continuar adiante. E, quem sabe, para perdoar a nós mesmos e recomeçar.

sábado, 25 de agosto de 2012

Novas histórias

    As manifestaçoes estudantis continúam, sujando e poluindo a cidade, enchendo-a de gritos, cartazes, pedras, paus, de grupos que correm fugindo dos gases lacrimogéneos, de sirenes, carros lança-águas e buses policiais. Mas ningém dá o braço a torcer. "Negociaçao" parece ser uma palavra obscena. "Desordem e intransigência", estao na ordem do dia... E nós aqui, pagando o pato, tendo que ficar trancados por causa destas marchas -que mais parecem ataques de hunos- tossindo e espirrando, perdendo passéios, filmes, exposiçoes, reunioes ou simplesmente uma linda tarde de sol na Praça de Armas... Nao entendo, como estes jovens esperam conseguir alguma coisa com esse tipo de comportamento? Como nao tomam conta da sua própria gente, dos seus próprios ideais? Por que permitem que estranhos os transformem em viloes? Por que continúam se sabem o que vai acontecer?... No fim, com tanta bagunça só vao acabar ganhando o repúdio da populaçao. Acho que seria melhor que repensassem seus métodos, para que possam se fazer escutar claramente e nao em meio a sirenes, bombas, pedradas e paredes pixadas...
    E depois deste desabafo, e antes que alguma bomba exploda em meu traseiro, vou postar a crônica desta semana, entre um espirro e outro...


    O homem passou por mim assobiando alegremente, caminhando com passadas rápidas e enérgicas para espantar o frío, deixando atrás de si um tênue rastro de colônia. Trajava um sobretudo preto, luvas e cachecol cinza, chapéu verde musgo e sapatos grossos e brilhantes. Suas bochechas estavam vermelhas por causa do frio e cada vez que asobiava, nuvens de vapor emergiam dos seus lábios e seus olhos pequenos soltavam pequenas faíscas... Imediatamente, e seguindo meu costume, me perguntei: "De onde será que esta vindo? Por que assobia tao contente? Está com pressa de chegar a algum lugar ou se encontrar com alguém importante? Ou está tao somente tentando manter o corpo aquecido?"... Virei a cabeça para vê-lo afastar-se e disse para mim mesma, de forma instintiva: "Aqui deve haver alguma história interessante!"... E quando percebi isto, foi como se de repente um universo inteiro -que até agora tinha estado meio intimidado- se abrisse diante de mim. Pisquei e parei, olhando em minha volta, percebendo aquela multidao infinita, agitada e eclética que ocupava as calçadas, as janelas, as lojas, os restaurantes, os carros, os ônibus, que mergulhava nas escadas do metrô ou emergia delas feito um rio infindável... Todos vivendo suas vidas, contando suas histórias... Quantas delas haveria nesta cidade?... Precisei fechar os olhos e respirar fundo, tanto foi o choque ao perceber a resposta. Olhei para eles por um longo momento, maravilhada e horrorizada ao mesmo tempo, tentando identificá-los, reconhecê-los, porém eles se afastavam e desapareciam feito os graos de areia de um deserto. Mais pareciam passageiros, miragens breves e inexpugnáveis, um emaranhado impossível de deter. Quantas vidas transcorriam ao mesmo tempo! Todas diferentes, originais, especiais, valiosas. Como eu poderia descobrir seus personagens? Dificilmente encontraria duas vezes uma mesma pessoa na rua!... Entao percebi que, se tencionava continuar a escrever -já fosse em meu diário ou neste blog- iria ter de exercitar e melhorar muito a minha percepçao, minha atençao, a minha sensibilidade, meu caminhar por entre este novo universo humano, pois as possibilidades que me oferecia eram incomensuravelmente mayores, e na maior parte das vezes disporia tan somente de um único encontro para descobrir e deduzir alguma coisa, para descifrar o ensinamento e chegar a alguma conclusao. Caramba, ia ter de me esforçar mesmo! Seria um tremendo desafio!
    No início me pareceu uma empreitada meio absurda, quer dizer, impossível, pois ainda me sentia atropelada, chacoalhada e meio apavorada por esta sobredose de "urbanidade", de modernismo e velocidade, por tantas opçoes e tamanha diversidade. Ainda me deixava tonta tanta gente, tanta agitaçao, tinha receio de me perder no meio de todo esse barulho e de essa variedade inesgotável de rostos, vozes, cheiros e cores (Bom, devo confessar que ainda me assusta um pouco) Como, entao, seria capaz de abrir meus sentidos para alguém em particular? Poderia distinguir uma só pessoa e me focar nela? O que me atrairia, se é que conseguia me distrair-me de todo o resto? E se por olhar um, perdia o outro? Como saberia quem escolher? Qual me traria a maior liçao?... "Bom", pensei "Nao posso ser gananciosa e querer prestar atençao em todos. Suponho que deveré deixar que meu instinto me guie para assim restringir as minhas opçoes." E também achava -e esperava- que o destino faria a sua parte também, destacando de alguma forma, interna ou externa, e no momento  certo, à pessoa da qual tiraria a minha liçao.... Isto me tranquilizou bastante, porque entendi que o que tinha de fazer era relaxar e conectar as minhas "antenas" (que ultimamente andavam meio que em corto-circuito) abrir os sentidos e, como sempre, olhar à minha volta. As personagens apareceriam, junto com as suas histórias e liçoes. Todas as pessoas, em qualquer lugar ou situaçao, merecem ser observadas, no entanto, sempre existirao algumas que estamos destinados a encontrar e contemplar com maior atençao, que trazem uma mensagem somente para nós que, inclusive, pode mudar a nossa vida. Nós e os outros sempre temos algo a dizer uns para os outros, acreditem. É só prestar atençao. Isto é o que importa, estar disposto e aberto, sem desprezar nenhuma chance, por mais banal que possa parecer, para que estes encontros aconteçam, sem esquecer que talvez estes outros tenham o mesmo encontro marcado conosco e que nao podemos faltar a ele.
    Agora tenho certeza de que cheguei, de que estou aqui, porque novas histórias estao aparecendo, meus cadernos estao cheios de apontamentos, sinto que elas me rodeiam, me falam, tomam conta de mim. Sou parte destes acontecimentos, estou enleada neles, da mesma forma que estava no Brasil... Mas agora percebo que, definitivamente, saí de lá.
   

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

    O inverno continua, ganha força, e as chuvas se deixam cair sobre a cidade, mansas, persistentes, dóceis. Acá nao é como no Brasil, que quando chove parece que o mundo vai acabar.!  A cuhva é mais civilizada... O céu está fechado e os aquecedores ligados; nao dá muita vontade de sair por aí. Tivemos que mudar de apartamento para fugir do barulho insuportável da obra que crescia bem ao lado do nosso prédio, (porque já estávamos abrindo a janela e dando bom dia aos operários!) depois ficamos quase uma semana sem água quente e acho que estou começando a pegar um resfriado... No entanto,  a despeito de estas pequenas chateaçoes, continuo feliz e tranquila. Nem sempre temos dias fáceis -na verdade, dizem que temos mais dias difíceis do que fáceis em nossa vida- mas isto nao deve desanimar-nos, pois eles nao sao castigos, como a maioria pensa, mas liçoes que precisamos aprender para sermos melhores seres humanos. Entao, assim como sabemos que a primavera chegará e mudará a paisagem, assim também devemos lembrar que nosso espírito sobrepujará todas as dificuldades e sairemos adiante... Por que falo assim? Nao é ingenuidade, nao. É que eu própria  andava por estes dias cheia de angústias e desânimo, com a fé e o otimismo abalados porque as coisas nao saíam do jeito e no tempo que eu queria, e aí, quando estava quase convencida de que tudo ia sair errado... plim! o destino decidiu virar a página e aqui estou, novamente cheia de alegria e esperança. Andei percebendo muitas coisas importantes nestes dias, coisas nem sempre fáceis de entender ou aceitar, mas ainda bem que tinha a minha filha comigo para consolar-me, enxugar as minhas lágrimas e dar-me aquele abraço reconfortante e  tranquilizador... Parece que uma porta se abriu e demos mais um passo em direçao a nossa nova vida definitiva.
    E aproveitando que ainda nao começou a chover e que o salao do hotel está vazio e tranquilo, aqui vai a crônica desta semana. Meio atrasadinha, para variar, mas...



    Meu pai abria lentamente a velha arca onde guardava a sua preciosa coleçao de discos de vinil e permanecia durante algunos minutos escolhendo minuciosamente a seleçao que iria escutar durante a próxima hora. Olhos semi fechados, fixos, olhar concentrado, como tentando lembrar o conteúdo de cada disco, seus dedos  percorriam as fileiras e iam separando parsimoniosamente, quase com reverência, os autores e suas obras imortais: Beethoven, Mozart, Wagner, "Madame Butterfly", "Carmen", Ravel, Benny Goodman, Gershwin, Louie Armstrong... Uma vez escolhida a seleçao -sempre eclética e elitizada- botava os discos cuidadosamente, um em cima do outro, no suporte do tocadiscos -o que naquela época era uma tremenda novidade, pois podia-se escutar vários discos sem necessidade de levantar-se para trocá-los) ajustava a velocidade e limpava a agulha en el braço mecânico com movimentos suaves e meticulosos, deixava o volume numa altura agradável e, finalmente, se dirigia até o sofá da sala, onde após afofar as almofadas, deitava-se comodamente nele, coberto por aquele velho poncho de listras cinzas e brancas. O ritual tinha acabado... Entao, fechava os olhos e permanecia em beatífica espera... O primeiro LP se desprendia do braço com um leve zunido e caia suavemente sobre o prato que girava. Meu pai soltava um profundo suspiro de prazer antecipado e esboçava um sorriso da mais pura felicidade.
    A música começava a tocar, se elevava, se abria, se deslizava, começando a invadir cada canto. Poucos momentos depois, escapava dali e se espalhava pelo resto da casa feito um perfume ao qual ninguém ficava imune.
    E eu, enfiada em meu quarto escrevendo ou lendo, ou escovando os dentes no banheiro, ou entao sentada nos degraus negros que davam ao jardim, ou mesmo na sala sem fazer nada em especial ou brincando com algum dos nossos gatos ou cachorros, percebia aqueles sons tomando conta do ambiente devagar, enquanto meu pai parecia estar sendo arrebatado em algum tipo de êxtase totalmente incompreensível para mim. Porque, que tanto tinha aquela música? Qual era a graça? Por que ficava deitado ali como num transe?.... Os acordes tristes e solenes da "Sonata ao luar", de Beethoven ou o modernismo de Gershwin, e até a alegria cheia de ritmo de Louis Armstrong, a grandiosidade de Wagner e o dramatismo de "Madame Butterfly" nao faziam o menor sentido para mim. Pior, chegava um momento no qual se tornavam completamente insuportáveis, pois para meus ouvidos virgens soavam feito um amontoado de acordes sem ordem nem concerto, sem nenhuma harmonia ou lógica. Mais pareciam os delírios de algum alucinado a quem todos tinham a cara de pau de chamar de "genio"... Algum tempo depois de ficar escutando estas cacofonias absurdas, me sentia tao irritada que fechava a porta do meu quarto, ou fugia para o fundo do quintal, ou entao ia para rua dar umas voltas até que aquela sinfonía extraterrestre findasse... Porém, antes de sair, quando passava pela sala, nao podia evitar dar uma última olhada de curiosidade e desconcerto em meu pai, que continuava deitado no sofá, alheio a tudo e a todos, aparentemente abstraido por completo por esta música, e nao podia deixar de me perguntar como era que aquele monte de sons desconexos e irritantes podiam proporcionar-lhe semelhante bem-aventurança...
    Bom, durante muito tempo ainda continuei sendo obrigada a escutar passivamente estas sessoes musicais do meu pai, sem entender o encanto, a serenidade e o prazer que lhe proporcionavam... As notas continuavam a flutuar, a se chocar, se enredar, a se mezclar sem nenhuma coerência, subindo e descendo; instrumentos desgovernados ecoando em meus ouvidos como uma tortura... Até que  um dia, -nao sabria dizer exatamente quando ou como, calculo que como o resultado de algum tipo de processo inconsciente e constante dentro do meu cérebro- assim, sem mais, a sétima sinfonia de Beethoven penetrou pelos meus ouvidos e... voilá!: a combinaçao dos tons e dos instrumentos, dos acordes, fez sentido, começou a mostrar alguma lógica. Subitamente, o trompete de Louie Armstrong e o piano de Lizst pareceram entrar num misterioso e agradável acordo com o resto dos instrumentos. As escalas, as árias, as harmonias, os tons e semi-tons, a delicadeza ou a força de alguns arranjos começaram a mostrar algo mais, a tocar alguma fibra ainda desconhecida dentro de mim. Os caminhos da música mostraram-se surpreendentes e deliciosos, e ela começou a me mostrar suas sutilezas, seus truques, as suas intençoes... Entao, passei a nao mais fugir dela. Às vezes, fazendo um pouco de esforço inicial, já nao fechava a minha porta, nao escapava para o quintal, ficava na sala com um pretexto qualquer e, imitando meu pai, sentava na poltrona e fechava os olhos, relaxava o corpo e esvaziava a minha mente de tudo que nao fossem aqueles sons saindo do tocadiscos. Abria algum tipo de porta, atravessava um túnel, construía uma ponte pelo qual as notas se aproximavam e entravam, invadindo-me por completo. Respirava fundo e entao dizia para mim mesma, admirada e emocionada: "Entao isto é a música! É isto que provoca a quem a escuta!"... E nao me cansava do  milagre constante e inesgotável em sua diversidade que alguns humanos haviam sido capazes de, generosamente, criar para nosotros. Agora entendia o ritual do meu pai, sua expressao de paz, de felicidade. Havia  muito tempo que ele tinha aprendido a escutar. Eu estava começando agora e, num segundo, pude prever o quanto poderia crescer e aprender, partilhar e ensinar através deste novo dom recém descuberto: escutar.
    Mais tarde, quando a música já formava parte indivisível da minha existência, descobri que nao só possuimos a qualidade de ouvir e apreciar as melodias, mas também -através do meu trabalho no teatro- as palavras, o som criativo, a voz dos sentimentos, do desabafo dos outros. Podemos escutar suas histórias, suas idéias, seus planos, seus sonhos. Podemos escuchar suas tristezas, suas frustraçoes, suas mágoas... Digamos que é um outro tipo de música, às vezes triste, às vezes alegre, furiosa, divina, sedutora, porém sempre verdadeira, que precisa ser ouvida assim como prestamos atençao ao canto dos pássaros, ao toque do telefone, ao assubio de admiraçao, à buzina do carro. A voz do ser humano em todas as suas tonalidades e idiomas, forma parte da sinfonía da vida. Nao podemos ignorá-la. Precisamos aprender a escutá-la, a interpretá-la, a assimilá-la, pois se a música nos transmite e desperta em nós coisas tao profundas e verdadeiras, que diversidade maravilhosa poderemos descobrir na voz que nos fala?.
    Aprendamos, pois, a ouvi-la, a acolhê-la, a compreendê-la, a abraçá-la. No início pode parecer-nos desafinada, estranha, podemos nao ter a paciência e a sensibilidade para entendê-la e aceitá-la porque nao estamos acostumados a prestar-lhe a devida atençao. Porém, e tal como aconteceu comigo e a música que meu pai escutava, em algum momento, se insistimos e nos desfazemos do preconceito e da preguiça, chegaremos a compreender e desfrutar cada palavra, podremos tirar proveito delas e, quem sabe, um dia as nossas próprias palavras, faladas, escritas, cantadas, servirao de apoio, consolo, inspiraçao ou exemplo para outros.