quinta-feira, 16 de agosto de 2012

    O inverno continua, ganha força, e as chuvas se deixam cair sobre a cidade, mansas, persistentes, dóceis. Acá nao é como no Brasil, que quando chove parece que o mundo vai acabar.!  A cuhva é mais civilizada... O céu está fechado e os aquecedores ligados; nao dá muita vontade de sair por aí. Tivemos que mudar de apartamento para fugir do barulho insuportável da obra que crescia bem ao lado do nosso prédio, (porque já estávamos abrindo a janela e dando bom dia aos operários!) depois ficamos quase uma semana sem água quente e acho que estou começando a pegar um resfriado... No entanto,  a despeito de estas pequenas chateaçoes, continuo feliz e tranquila. Nem sempre temos dias fáceis -na verdade, dizem que temos mais dias difíceis do que fáceis em nossa vida- mas isto nao deve desanimar-nos, pois eles nao sao castigos, como a maioria pensa, mas liçoes que precisamos aprender para sermos melhores seres humanos. Entao, assim como sabemos que a primavera chegará e mudará a paisagem, assim também devemos lembrar que nosso espírito sobrepujará todas as dificuldades e sairemos adiante... Por que falo assim? Nao é ingenuidade, nao. É que eu própria  andava por estes dias cheia de angústias e desânimo, com a fé e o otimismo abalados porque as coisas nao saíam do jeito e no tempo que eu queria, e aí, quando estava quase convencida de que tudo ia sair errado... plim! o destino decidiu virar a página e aqui estou, novamente cheia de alegria e esperança. Andei percebendo muitas coisas importantes nestes dias, coisas nem sempre fáceis de entender ou aceitar, mas ainda bem que tinha a minha filha comigo para consolar-me, enxugar as minhas lágrimas e dar-me aquele abraço reconfortante e  tranquilizador... Parece que uma porta se abriu e demos mais um passo em direçao a nossa nova vida definitiva.
    E aproveitando que ainda nao começou a chover e que o salao do hotel está vazio e tranquilo, aqui vai a crônica desta semana. Meio atrasadinha, para variar, mas...



    Meu pai abria lentamente a velha arca onde guardava a sua preciosa coleçao de discos de vinil e permanecia durante algunos minutos escolhendo minuciosamente a seleçao que iria escutar durante a próxima hora. Olhos semi fechados, fixos, olhar concentrado, como tentando lembrar o conteúdo de cada disco, seus dedos  percorriam as fileiras e iam separando parsimoniosamente, quase com reverência, os autores e suas obras imortais: Beethoven, Mozart, Wagner, "Madame Butterfly", "Carmen", Ravel, Benny Goodman, Gershwin, Louie Armstrong... Uma vez escolhida a seleçao -sempre eclética e elitizada- botava os discos cuidadosamente, um em cima do outro, no suporte do tocadiscos -o que naquela época era uma tremenda novidade, pois podia-se escutar vários discos sem necessidade de levantar-se para trocá-los) ajustava a velocidade e limpava a agulha en el braço mecânico com movimentos suaves e meticulosos, deixava o volume numa altura agradável e, finalmente, se dirigia até o sofá da sala, onde após afofar as almofadas, deitava-se comodamente nele, coberto por aquele velho poncho de listras cinzas e brancas. O ritual tinha acabado... Entao, fechava os olhos e permanecia em beatífica espera... O primeiro LP se desprendia do braço com um leve zunido e caia suavemente sobre o prato que girava. Meu pai soltava um profundo suspiro de prazer antecipado e esboçava um sorriso da mais pura felicidade.
    A música começava a tocar, se elevava, se abria, se deslizava, começando a invadir cada canto. Poucos momentos depois, escapava dali e se espalhava pelo resto da casa feito um perfume ao qual ninguém ficava imune.
    E eu, enfiada em meu quarto escrevendo ou lendo, ou escovando os dentes no banheiro, ou entao sentada nos degraus negros que davam ao jardim, ou mesmo na sala sem fazer nada em especial ou brincando com algum dos nossos gatos ou cachorros, percebia aqueles sons tomando conta do ambiente devagar, enquanto meu pai parecia estar sendo arrebatado em algum tipo de êxtase totalmente incompreensível para mim. Porque, que tanto tinha aquela música? Qual era a graça? Por que ficava deitado ali como num transe?.... Os acordes tristes e solenes da "Sonata ao luar", de Beethoven ou o modernismo de Gershwin, e até a alegria cheia de ritmo de Louis Armstrong, a grandiosidade de Wagner e o dramatismo de "Madame Butterfly" nao faziam o menor sentido para mim. Pior, chegava um momento no qual se tornavam completamente insuportáveis, pois para meus ouvidos virgens soavam feito um amontoado de acordes sem ordem nem concerto, sem nenhuma harmonia ou lógica. Mais pareciam os delírios de algum alucinado a quem todos tinham a cara de pau de chamar de "genio"... Algum tempo depois de ficar escutando estas cacofonias absurdas, me sentia tao irritada que fechava a porta do meu quarto, ou fugia para o fundo do quintal, ou entao ia para rua dar umas voltas até que aquela sinfonía extraterrestre findasse... Porém, antes de sair, quando passava pela sala, nao podia evitar dar uma última olhada de curiosidade e desconcerto em meu pai, que continuava deitado no sofá, alheio a tudo e a todos, aparentemente abstraido por completo por esta música, e nao podia deixar de me perguntar como era que aquele monte de sons desconexos e irritantes podiam proporcionar-lhe semelhante bem-aventurança...
    Bom, durante muito tempo ainda continuei sendo obrigada a escutar passivamente estas sessoes musicais do meu pai, sem entender o encanto, a serenidade e o prazer que lhe proporcionavam... As notas continuavam a flutuar, a se chocar, se enredar, a se mezclar sem nenhuma coerência, subindo e descendo; instrumentos desgovernados ecoando em meus ouvidos como uma tortura... Até que  um dia, -nao sabria dizer exatamente quando ou como, calculo que como o resultado de algum tipo de processo inconsciente e constante dentro do meu cérebro- assim, sem mais, a sétima sinfonia de Beethoven penetrou pelos meus ouvidos e... voilá!: a combinaçao dos tons e dos instrumentos, dos acordes, fez sentido, começou a mostrar alguma lógica. Subitamente, o trompete de Louie Armstrong e o piano de Lizst pareceram entrar num misterioso e agradável acordo com o resto dos instrumentos. As escalas, as árias, as harmonias, os tons e semi-tons, a delicadeza ou a força de alguns arranjos começaram a mostrar algo mais, a tocar alguma fibra ainda desconhecida dentro de mim. Os caminhos da música mostraram-se surpreendentes e deliciosos, e ela começou a me mostrar suas sutilezas, seus truques, as suas intençoes... Entao, passei a nao mais fugir dela. Às vezes, fazendo um pouco de esforço inicial, já nao fechava a minha porta, nao escapava para o quintal, ficava na sala com um pretexto qualquer e, imitando meu pai, sentava na poltrona e fechava os olhos, relaxava o corpo e esvaziava a minha mente de tudo que nao fossem aqueles sons saindo do tocadiscos. Abria algum tipo de porta, atravessava um túnel, construía uma ponte pelo qual as notas se aproximavam e entravam, invadindo-me por completo. Respirava fundo e entao dizia para mim mesma, admirada e emocionada: "Entao isto é a música! É isto que provoca a quem a escuta!"... E nao me cansava do  milagre constante e inesgotável em sua diversidade que alguns humanos haviam sido capazes de, generosamente, criar para nosotros. Agora entendia o ritual do meu pai, sua expressao de paz, de felicidade. Havia  muito tempo que ele tinha aprendido a escutar. Eu estava começando agora e, num segundo, pude prever o quanto poderia crescer e aprender, partilhar e ensinar através deste novo dom recém descuberto: escutar.
    Mais tarde, quando a música já formava parte indivisível da minha existência, descobri que nao só possuimos a qualidade de ouvir e apreciar as melodias, mas também -através do meu trabalho no teatro- as palavras, o som criativo, a voz dos sentimentos, do desabafo dos outros. Podemos escutar suas histórias, suas idéias, seus planos, seus sonhos. Podemos escuchar suas tristezas, suas frustraçoes, suas mágoas... Digamos que é um outro tipo de música, às vezes triste, às vezes alegre, furiosa, divina, sedutora, porém sempre verdadeira, que precisa ser ouvida assim como prestamos atençao ao canto dos pássaros, ao toque do telefone, ao assubio de admiraçao, à buzina do carro. A voz do ser humano em todas as suas tonalidades e idiomas, forma parte da sinfonía da vida. Nao podemos ignorá-la. Precisamos aprender a escutá-la, a interpretá-la, a assimilá-la, pois se a música nos transmite e desperta em nós coisas tao profundas e verdadeiras, que diversidade maravilhosa poderemos descobrir na voz que nos fala?.
    Aprendamos, pois, a ouvi-la, a acolhê-la, a compreendê-la, a abraçá-la. No início pode parecer-nos desafinada, estranha, podemos nao ter a paciência e a sensibilidade para entendê-la e aceitá-la porque nao estamos acostumados a prestar-lhe a devida atençao. Porém, e tal como aconteceu comigo e a música que meu pai escutava, em algum momento, se insistimos e nos desfazemos do preconceito e da preguiça, chegaremos a compreender e desfrutar cada palavra, podremos tirar proveito delas e, quem sabe, um dia as nossas próprias palavras, faladas, escritas, cantadas, servirao de apoio, consolo, inspiraçao ou exemplo para outros.

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