quinta-feira, 22 de novembro de 2012

"As verdadeiras boas vindas"

    Os dias continúam lindos e as árvores vestindo-se com esse verde novo e vigoroso que nos traz aquela velha e deliciosa sensacao de renascimento, de esperanca e pura felicidade, tanto assim que eu retomo as minhas inspiradoras caminhadas pelas ruas de manha cedo... Tem tanto para ver, tanta gente para descobrir, tantos cantos e paisagens dentro desta imensa paisagem urbana, que acho que mesmo que  caminhasse por aqui pelo resto da minha vida, sempre encontrarei novidades, surpresas, personagens e histórias. Até já conheco alguns: a tia que faz seu suco de laranja para os apressados que nao tiveram tempo de tomar café da manha, o senhor que passeia seus poodles brincalhoes, a menina que agua a grama no fim do passéio, o rapaz de mochila vermelha que, junto a sua bicicleta, senta na beira do canteiro esperando por alguém, o gordinho que chega em sua motoca azul assustando as pombas e estaciona junto a um poste, ao qual amarra seu veículo. O senhor e a sua mesinha de ervas e o fiel cao que senta na grama, sobre um cobertor velho, encostando nas costas do seu dono... E assim, tantos rostos e gestos, tantas vozes que vao entrando em meu próprio mundo e dos quais, com certeza, vocês vao ler mais adiante. Aqui tudo me inspira, mesmo quando nao é um bom dia (sim, porque também tenho dias meio chatos) tudo me da forcas, me enche de uma felicidade inexplicável e verdadeira que me deixa com vontade de mais... Me sinto feito uma crianca numa loja de doces!
    E assim escrevo hoje, confortavelmente instalada no sofá da sala, escuchando a Tribuna FM - a minha rádio favorita no Brasil- enquanto o macarrao cozinha no fogao... Querem algo mais caseiro e confortável?.
    Preciso explicar, no entanto, que na  verdade estas sao duas crônicas, porém quando as reli percebi que tinha de publicá-las juntas. Afinal, nao se pode separar uma família, nao é mesmo?...



    Ela nao é muito alta, de pele branca um pouco queimada pelo sol do campo, olhos claros, de olhar direto e inteligente,  cabelos completamente brancos, curtos, sempre meio despenteados. Tem uma voz firme e um pouco rouca, que expressa as suas opinioes com muita clareza e autoridade, porém com um quê de benevolência e compreensao. É magra e ereta, de movimentos certeiros e seguros -a nao ser por um pequeno tremor na mao direita, ao qual ela nao da a menor importância- está sempre bem vestida, mas com modéstia. Dona da sua cozinha e do seu jardim, capita orgulhosa da sua prole -filhos, netos, genros, noras, sobrinhos- e da sua casa acogedoramente desordenada. Viúva valente, católica fiel, empresária empreendora, líder admirada em sua comunidade já nao mais tao pequena. Oitenta anos de experiência que nao parecem pesar-lhe nem no corpo nem na saúde, mas dar-lhe mais disposicao e energia para continuar com o que assumiu como a msisao da sua vida: educar, formar futuros cidadaos tao retos e empenhados quanto ela própria, fazer florescer no coracao e a mente dos jovens de hoje alguns conceitos rotulados de antiquados e severos, mas que no fim sao os que lhe dao propósito e dignidade a uma vida.
    Em sua grande casa se juntam e misturam todas as tribos, as histórias e as personagens sem conflito nem discriminacao, cada um em seu pequeno território, tudo com ordem e respeito, como ela gosta. É uma constante e fluente diversidade bem alimentada fisica e intelectualmente, sempre bem recebida e acollhida, porque em seu lar há sempre ouvidos para escutar, bracos para abracar, palavras para aconselhar, uma xícara de chá, uma fatia de bolo, uma taca de vinho para aquecer o papo... Pequenos e complexos universos orbitam em volta desta mulher exigente a quem nao agradam os queixumes nem as faltas de caráter, que é aberta porém severa, amiga e sempre mestra, diretora da sua própria existência.Mulher plena, casa plena, vida plena.
    Assim a observava eu desde a cadeira na qual tinha me ajeitado, sob a parreira que já mostrava suas primeiras folhas de um verde esplêndido, no meio do jardin cheiroso e todo enfeitado para a festa daquela tarde.O céu se mostrava levadico, uma hora carregado de nuvens escuras e ameacadoras, outra  com um sol cálido contra o azul glorioso.Dúzias de pipas aproveitavam para fazer piruetas ao sabor do vento, o pessegueiro florescido, perfumado, provocava a nossa inveja com a sua beleza. Mesas, cadeiras, o cachorro correndo para lá e para cá, alvorocado com o antecipo das coxas de frango, a costela e as linguicas pipocando sobre as grelhas. Convidados chegando, carvao, picanha, bexigas e guirlandas vermelhas, azuis e brancas, música típica enchendo o ar através das caixas de som. Cheiro de vinho, de chicha, de chá, de empadas, de favas e batatas assadas. Conhecidos e desconhecidos chegando para formar uma só família, o tempo e as vozes transcorrendo, entrelacando-se, envolvendo-me feito um cobertor quentinho e tao familiar...
    Inauguramos a "barraca da Taty"-como apelidam todos à dona da casa- entoamos o hino nacional, emocionados, se dancou com graca e coracao, de ponta e salto, lencos feito mariposas nas maos das mocas, esporas tilintando nas botas dos rapazes. Foi uma tarde plena, cheia de emocoes, de reencontros, de lembrancas, de lacos que se reatavam com mais forca do que nunca, apesar do tempo e a distância transcorridos... E era esta mulher admirável, dura feito rocha e tenra feito uma brisa, quem comandava toda esta comemoracao que, para mim, ia muito além de uma festa pátria: a tia Paty.
    E logo vinham, como partes indivisíveis dela,o Mando Xavier, a Pachi, o Cristian e o Alberto, seus filhos, meus primos, filhos do irmao da minha mae... Ah, abracar cada um deles foi como mergulhar no calor do sangue, na terra, numa docura apertada, longamente desejada. As suas vozes e seu jeito de falar permaneciam as mesmas da nossa infância, mas hoje com acentos adultos... E era curioso,maso quando olhava para eles eu nao conseguia ver os cabelos brancos, as rugas ou quaisquer outros indicios que o tempo pudesse ter deixado neles. Nao, eu continuava olhando para meus primos da fazenda, da vila rural, da casa barulhenta dos meus avós e a sua garagem mágica, onde inventávamos todo tipo de brincadeira e aventuras. E os seus sorrisos continuavam inocentes, seus risos e gestos generosos, simples, espontâneos, sem receios nem julgamentos. Para mim, eles tinham conservado intata aquela ingenuidade, aquele espírito sempre alegre, cálido, de gente boa, bem educada, trabalhadora, sem frescuras, reta e aberta... E nesse momento pensei, grata: "Já nao se faz mais gente assim, e eu tenho a sorte de pertencer a esta família". Na capital as pessoas também sao amáveis, educadas, acolhedoras e abertas, mas nao têm comigo estes lacos, esta intimidade, as histórias, o afeto puro e sincero, intocado, que temos com a família. Todos eles sao dignos descendentes de um sonhador e de uma guerreira, reúnem neles o melhor do tio Armando e da tia Paty e eu espero que eles consigam passar isto aos seus próprios filhos para que assim, este rio de carinho, alegria e calor se estenda por muchas y muchas geracoes. Isto seria o melhor legado que poderiam deixar para nós.
    E assim, foram seus abracos apertados e sinceros, suas vozes bem chilenas e seu carinho calido e sem reservas os que naquela tarde de festa me deram as verdadeiras boas vindas à minha pátria.

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