sábado, 23 de agosto de 2008

O palácio

Aos poucos o material foi chegando e se amontoando no quintal: telhas, sacos de cimento, areia, pedras, tijolos, madeira, carriolas, espátulas, enxadas e caixas de ferramentas. Pacotes de pregos, embalagens de lajotas e longos ferros ocuparam o lugar das cadeiras e vasos na pequena área da frente e avançaram pela grama bem cuidada -é a casa do seu João, o nosso antigo jardineiro- e por entre as roseiras e primaveras, as margaridas e orquídeas. Os cachorros perambulavam, perdidos por entre aquela confusão, e latiam furiosos para os operários que invadiam a casa às sete da manhã falando alto, transitando sem nenhum respeito ou cuidado pelos seus territórios, bebendo litros de café, jogando bitucas por todo lado e botando aquele radinho pigarrento no volume mais alto. Era um total caos, um quebre repentino e alarmante nas suas rotinas e, como seus protestos e ameaças não eram levados em conta -pelo contrário, para seu pasmo, sempre acabavam levando uma bronca por tentar avançar nos estranhos- terminaram por recuar para os fundos da casa à procura de um canto seguro desde onde pudessem observar, na mais absoluta impotência, aquele desastre que tinha-se abatido sobre seu lar, e ao qual seus donos não pareciam dar a menor importância.
Os homens botaram escadas e se encarrapitaram no telhado, fazendo uma corrente para arrancar as telhas de eternite e estender uma lona preta no forro, furaram o chão e as paredes, martelando sem descanso até parecer que um furacão tinha passado por ali. A poeira tomou conta de tudo, apesar da dona cobrir os móveis e objetos com toalhas e lençóis, e a data se encheu lentamente com todo tipo de lixo típico de uma construção: latas de verniz, jornal, sacos plásticos rasgados, rodinhos de espuma, garrafas de plástico, cubas de madeira, respingos de cimento e massa corrida por todo lugar, pedaços de mangueira e restos de estranhos artefatos de madeira usados para segurar os alicerces da construção... Porém, os donos da casa -a esposa do seu João, já falecido, o cunhado e a filha- contemplavam este aparente desastre com uma beatífica expressão de felicidade em seus rostos morenos e enrugados, e passavam horas a fio caminhando em meio àquele campo de batalha oferecendo água, café ou um lanchinho para os operários. Depois do almoço, todos sentavam nas cadeiras de plástico no que restara da pequena área, e batiam longos papos fumando e dando risada, para logo retornar à bagunça e à barulheira... Mas nada abalava a aparente e inexplicável felicidade dos donos, para horror dos cachorros, que mal se aproximavam para comer ou beber uns goles de água. Com tanto entra e sai, o portão da casa ficava permanentemente aberto, o que seria uma imperdível chance de escapar para brincar na rua, mas eles estavam tão amedrontados que não ousavam se aventurar além dos limites dentro dos quais ainda reinava algo de ordem e lógica... Mas, o que era tudo aquilo?
Eu virava a esquina e me deparava com aquela quase demolição todo dia, e enquanto passava em frente à casa, tentava adivinhar qual seria o resultado de tudo aquilo. Ao parecer, estavam trocando todas as telhas -que não eram muitas, pois a casa era diminuta- e pretendiam aumentar a sala ou acrescentar um outro quarto utilizando o único espaço vazio que restara após a construção de uma outra casinha no fundo para a filha do seu João, obra que começou do mesmo jeito que esta outra, feito um terremoto longamente aguardado. O resultado -dois quartinhos, uma cozinha que se misturava com a sala e um banheirinho- foram recebidos com imensa alegria e satisfação pela família, e a obra foi coroada com uma camada de tinta cor azul turquesa que feria os olhos de longe e uma ostentosa porta frontal de madeira grossa, toda trabalhada com detalhes geométricos. Cortinas nas janelas, vassos na área e tapete de boas-vindas na entrada, ficou parecendo uma casinha de contos de fada. Esta obra, o jardineiro teve tempo de ver, mas neste novo empreendimento já não estava mais entre nós, mas imagino que devia estar observando tudo desde o céu, sorrindo satisfeito e orgulhoso diante deste novo feito do seu clã.
Aos poucos, a coisa foi se definindo, tomando formas claras e mostrando as intenções da família com respeito àquele pedaço do quintal. Uma tarde, virei a esquina e me encontrei com a obra quase pronta: era uma nova área, com grossos pilares quadrados de cimento e cobertura de telhas, ao invés do eternite de antes; lajotas novas, uma mureta e um novo chão de cimento para a entrada do velho carro. De repente, a bagunça havia sumido. Os cachorros, agora relaxados e alegres, estavam novamente deitados na grama e no chão fresco, a esposa do seu João aguando as plantas e escolhendo quais vasos iria pendurar na nova área, e as cadeiras de plástico arrumadas em linha à sombra da cobertura, que cheirava a novo, a sucesso, a tranqüilidade, a esforço e persistência. Ainda não estava pintada -e espero que não escolham algo parecido com aquele azul turquesa!- mas mesmo assim dava à casa um ar sólido, de humilde prosperidade e presunção, de profunda realização. Olhando para aquela varanda novinha, um pouco anacrônica se comparada com a casa velha e desbotada, e para as telhas vermelhas reluzindo ao sol, quase que pesadas demais para a frágil estrutura da casinha popular, me perguntei quanto esforço teria lhes custado aquela pequena obra, aquela minúscula mudança que para a maioria de nós passaria despercebida. Quantos cálculos, barganhas, peregrinações por depósitos de material em busca de ofertas e liquidações, quantos meses de espera juntando cada centavo, privando-se quem sabe do quê para poder alcançar seu modesto sonho: esta área fresca na qual vão passar os finais de tarde ou dar uma cochilada após o almoço, como seu João fazia; onde vão receber os amigos, brincar com os netos, proteger o carro do relento, fazer tricô, estrear tapetes de retalho, assar uma carninha num feriado e beber umas cervejas...
Fiquei alguns minutos contemplando a casinha, agora com ares de palácio para os olhos dos donos, e pensei no que significa sucesso, satisfação, alegria e progresso para cada um de nós, no quanto somos capazes de trabalhar para obtê-los e de que maneira os desfrutamos ou se, uma vez obtidos -na forma de um carro, uma reforma, um negócio, uma roupa, um brinquedo, um aparelho de som ou um computador- deixamos de dar-lhes importância e passamos a almejar algo maior, algo melhor, que nos dê ainda mais status, mais poder, uma felicidade baseada somente na comparação, na competição; algo que todos percebam e admirem, bem diferente desta humilde e sacrificada cobertura na área da casa do seu João... Mas qual felicidade é maior, mais duradoura e profunda? Qual realização é mais apreciada e desfrutada? ...Quem tem as possibilidade encara todo resultado bem sucedido como algo natural, lógico, tranqüilo. Porém, quem não tem estas possibilidades encara o objetivo alcançado, por menor que este seja, como um verdadeiro milagre, um prêmio ao seu esforço e perseverança, fazendo-o sentir que todo seu sacrifício valeu mesmo a pena... E talvez esteja aí a principal diferença entre a reforma total que os meus novos vizinhos fizeram na casa antes de se mudarem e a pequena cobertura na área da casa do seu João. Olhando para ambas me pergunto se será a família vizinha a curtir mais o jardim planejado, a churrasqueira e a cobertura de sapé, o jogo de mesa e cadeiras de metal trabalhado, a pequena piscina e o aquecedor solar, ou se será a família do seu João, deixando transcorrer calmamente o entardecer a cada dia, sentada nas cadeiras de plástico na sua pequena área, fazendo tapete, cochilando com os cachorros placidamente estendidos aos pés ou brincando com os netos nos domingos à tarde...

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