sábado, 19 de setembro de 2009

Escolher o caminho

Às vezes fico parada pensando na quantidade de coisas que já me aconteceram, por escolha própria ou pela mão do destino, e começo a achar que a minha vida daria uma boa novela, daquelas que têm mil reviravoltas e um monte de personagens fascinantes. Como é que a gente pode experimentar tanta coisa -voluntária ou involuntáriamente- ao longo da vida, que parece tão curta e transcorre tão rapidamente?... Olhando assim, percebo de repente a quantidade de oportunidades que nos são oferecidas para aprender, crescer, amadurecer, nos aperfeiçoar como seres humanos e levar adiante a tarefa que viemos realizar neste planeta. O mundo está cheio de pessoas, cenários, acontecimentos, ciclos, processos e oportunidades que podem nos ajudar a descobrir a verdade dentro de nós mesmos; esta verdade individual que forma parte indivisível da verdade de todos e que é a que faz com que a história aconteça... E às vezes, como já aconteceu comigo, vamos descobri-la e experimentá-la nos lugares ou situações mais inesperados, junto de pessoas que jamais sonhamos fossem formar parte da nossa vida, mas que no fim, acabam se tornando verdadeiras revelações que nos acompanham pelo resto da nossa existência.
Como as freiras desta crônica, por exemplo, a quem, como um presente totalmente fora de todas as regras e convenções, me foi permitido conhecer...



Me lembro do perfume do jasmim pairando no ar enquanto caminhava lentamente pelo pátio florido do convento. O Sagrado Coração abria seus braços sobre nós como que a receber-nos, a alentar-nos, a consolar-nos. Aquela estátua no meio do pátio principal era como uma promessa, uma lembrança do amor e a dedicação das mulheres que ali viviam as suas vidas silenciosas e singelas, de su amor e fidelidade, da sua luta e seu sacrifício... Eu olhava tudo em volta, sem acreditar que, por alguma daquelas linhas muito tortas que Deus às vezes costuma escrever, eu estava mesmo ali dentro, atrás dos altos e severos muros do mosteiro, convivendo com as freiras e a sua rotina, mesmo sem ter certeza de por quanto tempo ficaria ali. Por algum motivo -que até hoje me surpreende e me encanta, pois estar dentro de um convento de clausura era algo que me atraia desde criança- este privilégio tinha me sido concedido logo na primeira entrevista que tive com a madre superiora, e eu me sentia tremendamente grata e feliz, maravilhada, já que aquele era um fato completamente fora do normal para as regras da ordem... Mas, a despeito de tudo isto, lá estava eu, passeando -quase que dançando, para ser sincera- pelas dependências do convento, cruzando com aquelas mulheres de hábito preto e andar silencioso, olhar discreto e sereno, vozes pequenas e gestos contidos, uma tranqüila e inegável felicidade estampada em seus rostos, embriagada por aquela força doce e invisível, porém quase palpável, que dominava o lugar todo, tal como eu imaginava que seria... O sol, o céu azul, as pombas no telhado e no campanário; as pequenas, sombreadas e perfumadas ermidas onde podíamos nos ocultar para ter o nosso encontro com o divino, os lençóis brancos estendidos no varal, brilhando sob os raios especialmente luminosos do sol, o cheiro de pão vindo da cozinha... Tudo parecia diferente, tão claro e próximo, tão poderoso. Eu não me cansava de contemplar aquela paisagem, aquele universo regido pela força espiritual, e podia sentir de maneira quase concreta aquela espécie de fronteira que demarcava o limite entre o convento e a sua atmosfera sobrenatural e o mundo lá fora. De repente, ele parecia tão distante e irreal, tão desnecessário! Não precisávamos dele!... O mesmo acontecia com as grades quadriculadas do coro e da sala de visitas. Víamos as pessoas e até conversávamos com elas, mas pareciam estar tão longe! Enraizavam-se em nossos corações e os sentíamos ainda mais perto, nosso amor ultrapassava as fronteiras de amizade ou parentesco, pois entendíamos então que não havia mais que escolher quem amar, que todos mereciam ser amados e que podiamos fazer isto através a força do nosso espírito. Era um presente fantástico!.
Existia ali dentro um algo todo especial, zelosamente guardado, resguardado, cultivado, partilhado - e o exterior não conseguia penetrá-lo. Não havia temor, mas uma poderosa e inabalável convição. Nâo vivíamos num clima irreal, mas sobrenatural.
Ás vezes, deitada no colchão de palha enquanto olhava a luz da lua e as estrelas no límpido céu noturno, me perguntava, espantada: "Mas, como pode?"... Levava-se uma vida ordinária, cheia de afazeres domésticos e obrigações religiosas. Tinha-se horário rígido para tudo, inclusive para o silêncio, não existiam preferências ou mordomias. Trabalhava-se na horta, no bordado, na cozinha, na lavanderia, na faxina, no jardim, na decoração da igreja; e todas faziam um pouco de cada coisa com alegria e disposição. Não havia desafetos, mágoas ou invejas, mas diferenças que eram sanadas pela sabedoroia da madre superiora e a obediência e humildade das irmãs. A vida transcorria da maneira mais prosaica possível!... E no entanto, tinha algo no ar, nos prédios imponentes e severos, nos jardins perfumados e nos corredores; nos gestos, olhares e tons das freiras, que me transportava para uma outra dimensão. Me perguntava como isto era possível, pois no fundo eram mulheres iguais a mim em tudo -e eu não sou nenhuma santa!- com seu caráter, seus problemas, seus medos e fraquezas, suas vitórias e derrotas, fadadas a errar mil vezes ao longo do dia... Então, de onde provinha aquela aura poderosa e transparente que permeava todos e cada um dos seus atos, pensamentos e intenções e todo o ambiente no qual se movimentavam?...
Até hoje não tinha conseguido responder a esta interrogante, mas agora começo a entender o que era aquela força, esse carisma inegável que guiava cada gesto, cada passo, cada pensamento e palavra destas mulheres. Essa força extraordinária vinha do peso, da lealdade, da perseverança da sua escolha, da consciência e responsabilidade que cada uma delas tinha com respeito a este caminho chamado vocação. Agora que eu mesma escolhi meu caminho, aceitando -mesmo sem saber, num ato de pura fé e amor- tudo que ele implica, sinto-me de alguma forma abençoada, fortificada, inspirada e resguardada -ou ao menos, alerta- contra as ilusões do mundo. Não preciso das paredes do convento -se bem às vezes sinto muita saudade delas- pois boa parte das vezes consigo (mesmo que demore um pouco e passe uns maus bocados) enxergar aquela fronteira que as grades delimitavam e que nos lembrava o que é verdadeiramente importante. A minha vida continua cheia de banalidades, de equívocos, de preguiças, vaidades e fraquezas, porém, há algo, esta percepção, esta clareza, esta tranqüilidade que permeia todos meus momentos, mesmo os mais sombrios e solitários.
Escolher um caminho, depois de tê-lo enxergado e compreendido, e trilhá-lo tal como aquelas freiras faziam, nos dá uma força descomunal, uma fé inabalável. Ao fazer a opção abrimos portas, descerramos janelas, encontramos caminhos e os meios para percorrê-los. E não falo só de opções profissionais, mas de vida, de humanidade, de crescimento. As primeiras fazem parte das segundas. Dentro de um mosteiro, todos os que estão ali fizeram a mesma opção e agem com um mesmo objetivo, por isso sentimos essa força imensa, essa clareza e convicção. Há que se viver para ser capaz de fazer a escolha. Depois, há que se viver essa escolha.
Porém, não se enganem, porque optar não traz paz nem felicidade instantaneamente. Não, pelo contrário: o tempo que se segue é de sofrimento -pois devemos cortar velhos laços e encontrar outros para que qualquer mudança verdadeira aconteça- é de lapidação no crisol do abandono à verdade que sabemos ser a nossa. É um tempo de pura perseverança, de provação, de luta contra as nossas própias mentiras e armadilhas. É tempo de trevas profundas e, ao mesmo tempo, de segundos de graça infinita. Tempo de misericórdia, de nudez, de feiúra, de transformação, de perdão, de revelação... No entanto em meio a todo este aparente cataclismo, algo sobrevive, martela sem cessar em nosso coração atormentado: a certeza da nossa opção. Ela nunca nos abandona. É feito um farol, uma rocha, o alicerce indestrutível sobre o qual estamos construindo os resultados da nossa escolha. Optar e agir é se tornar finalmente alguém, tomar seu lugar na história da criação. É ser humano com todas as oportunidades que lhe foram destinadas.

2 comentários:

D Z disse...

Olá Paz...

Sempre teremos que fazer uma escolha e, algumas vezes, estas escolhas determinarão o curso de nossa vida, por isso são tão difíceis de serem feitas...

Um lindo texto...

Tenha um ótimo domingo...

Bjs!

Dany Ziroldo

Paz Aldunate - Palavras disse...

Que saudade de vc!... Como está? Tudo ok?... Espero que sim! POr acá continuamos na luta, que está valendo a pena... Há que se escolher e ser fiel, não é mesmo?.
Beijão!