sábado, 18 de dezembro de 2010

Pés e sapatos

Este negócio de fim de ano é mesmo legal, porque tem tanta comemoração, confraternização, tanto almoço e festinha de amigo secreto que mal se trabalha e podemos escolher à vontade  o horário no qual vamos fazer nada no escritório. Assim estou eu -e por isso estou tendo tempo de postar esta crônica em dia- porque como agora só tenho como trabalho real as apresentações à noite na praça, o resto é só cumprir horário fazendo cruzadinhas na sala, dar umas voltas por aí, bater papo furado com os outros e escutar música deitada nos colchonetes enquanto o tempo passa. Todas as outras áreas encerraram as suas atividades -também por causa daquele rolo político-legal- então sou a única que ainda tem alguma coisa para apresentar, o que significa vir aqui somente para isso, porque as minhas aulas também acabaram. Só falta a nossa confraternização, que será nesta terça no fim da tarde; depois só nos encontraremos novamente no ano que vem, e vamos ver quem é que volta, porque todo mundo jura que vai continuar, mas aí acabam pintando empregos, cursinhos, viagens ou faculdades e todos os planos vão por água abaixo. Por isso prefiro não me antecipar e esperar para ver quem é que vai estar aqui mesmo... Quarta e quinta (meus dois últimos dias) irei trabalhar de manhã, assim poderei ficar em casa a tarde toda descansando, escrevendo e curtindo um par de massagens relaxantes, que estão sendo ótimas para amenizar um pouco estas dores.
E como estou com todo este tempo extra, quero aproveitar para postar as crônicas em dia e avançar outro pouco na história de "Silvestre", da qual já publiquei mais uma parte e hoje ou amanhã pretendo postar uma outra. Passem por lá para conferir... É engraçado, mas outro dia percebi que eu falo desta história e do blog onde está sendo postada, mas sempre me esqueço de dizer o endereço do mesmo, porque, é claro, nem todo mundo que entra aqui é leitor assíduo, então pode não saber de que diabos estou falando. Portanto, aqui vai o endereço, para os leitores de primeira viagem: pazaldunate-estorias.blogspot.com... Agora sim, né?... Então, vamos à crônica desta semana:


    Caminhando pela rua cruzo com uma infinidade de pessoas de todos os tipos, idades e classes sociais, umas bem apessoadas, empertigadas em seus ternos ou vestidos de grife, superiores dentro de seus carros último modelo, ágeis,  bem penteados e com óculos escuros que escondem seus olhares. Outras são humildes, opacas, de andar macilento e cabeças baixas, roupas surradas e bolsas antiquadas, rabos de cavalo, coques mal feitos, feições cansadas, apagadas, carregando um peso invisível que parece superior às suas minguadas forças de trabalhadores mal pagos. Algumas são joviais, esportivas, despreocupadas, vestem-se de cores alegres e caminham com firmeza em direção a algum objetivo perfeitamente definido. Quando cruzam conosco nos olham direto, sem receio, com olhos brilhantes e confantes, como que proclamando a sua sorte, a sua saúde, seu amor, seu futuro. Não têm a intenção de despertar a nossa inveja nem a nossa admiração, mas tão somente de se mostrar, se tornar reais neste mundo tão feroz e calculista, dizer que estão fazendo a sua parte e que têm confança no futuro que os aguarda... Roupas, cabelos, bolsas e acessórios, carros e casas mostram quem são cada um destes personagens; tom de voz, olhar, jeito de andar, gestos e cenários, tudo isto são dicas, vitrines da suas personalidades, dos seus anseios, dos seus processos. Mas eu acho que tem algo que mostra, melhor do que qualquer coisa, quem somos: os nossos pés e os nossos sapatos.
    Já passei pela rua e vi, surrado, disforme e descolado, um solitário sapato abandonado na sarjeta. Sozinho, sem cadarços, a sola carcomida, já sem cor, castigado pelo sol e pela chuva, desprezado após ter dado seu último passo no pé de quem viveu muita coisa com ele. O companheiro fiel e sem mágoas de alegrias e desgraças, de festas, estudos, passeios, de aniversários e velórios, de anos de trabalho, agora jazia ali, esquecido, como se jamais tivesse feito parte da vida de alguém, sofrendo o imerecido castigo por ter se acabado e perdido e forma e a cor, por ter saído de moda, pelo dono ter juntado um dinheiro -ou recebido um aumento- para comprar um outro par mais moderno, mais bonito, mais de acordo com as mudanças em sua vida... E nem sequer seu outro par estava estava junto para consolá-lo ou fazer-lhe companhia! Qual seria seu destino final?... O lixão, a data vazia, a sacola de plástico, o bueiro... Ou então, se tivesse sorte, os pés de alguém mais pobre e necessitado do que seu antigo dono, que acharia que ainda dava para usar, lhe enfiaria uns jornais na sola e sairia andando por aí, feito o rei da Pérsia. Seria como a sobrevida de um doente terminal: um dia a mais é lucro.
    Á partir daquele dia, não consigo mais passar por alguém sem dar nem que seja uma olhadela breve nos seus sapatos. E quanta coisa podemos descobrir nesta espiada!... Uma mulher vestida com saia chamativa e decote ainda mais, maquiagem pesada, brincos, pulseiras e anéis em profusão, pronta para um encontro duvidoso, porém com sapatos velhos e meio deformados, unhas do pé com o esmalte lascado, a suspeita de um joanete despontando, calcanhares rachados e escurecidos... O homem de calças gastas e manchadas, camiseta furada e boné de algum partido político cobrindo os cabelos ralos e sujos, botinas sem meias, entortadas para dentro, respingadas de tintas de todas as cores, as ponteiras descolando, o salto gasto pelo jeito arrastado de andar, talvez fruto de uma cansera sem fim... A rapaziada que passa pela calçada e senta nos bancos da praça fazendo aquela algazarra, perturbando de propósito os transeuntes com as suas piadas e gargalhadas escandalosas; roupas descoladas e cabelos exóticos, piercings e tatuagens, a sua gíria ininteligível, seus mil anés, pulseiras e colares, exibindo seus tênis berrantes, ou então os saltos com plataforma, as sandálias com strass, aquela confusão competitiva e insolente de modelos e cores, de auto-afirmação, de identidade tribal, de unicidade; os símbolos na pele espiando por trás das meias e entre as camisetas. Pés desafiadores, nem sempre muito limpos, fortes e agressivos, de passadas firmes e decididas, bem plantados no chão que eles reivindicam como seu... A freira discreta e de expressão sempre amável e acolhedora, com seu véu e seu hábito cheirando a sabão, a lavanda, a coisa santa e transparente, impecavelmente limpo e passado, de meias e sandálias ou mocassins pesados, antiquados -daqueles que achamos nas liquidações ou nas pontas de estoque de lojas baratas- que a deixam ainda mais simples e sem graça, mas que são a sua prova de humildade, seu testemunho da ausência de vaidade, de obediência e desinteresse pelas coisas mundanas... A balconista, que defende com unhas e dentes a saúde dos seus pobres pés sempre em movimento com sapatilhas e rasteirinhas macias, com tênis baratos porém confortáveis e sandalinhas de plástico colorido, e que precisa ser amável e manter esse seu sorriso acolhedor apesar da dor e da vontade de sentar em algum canto, arrancar os sapatos e enfiar os pés machucados e inchados numa bacia com água morna e vinagre. Aí sim seu sorriso seria sincero!... O velho com seus pés sofridos e lentos enfiados en chinelos ou sapatilhas cheias de calombos e buracos que denunciam as suas deformidades, dedos encavalados e unhas comidas pela micose, calos, joanetes, manchas, veias azuladas e saltadas. E a expressão triste e dolorida da sua face enrugada é o fiel reflexo do que seus sapatos  contam.
    Assim como dizem que o nosso corpo está estampado na sola dos nossos pés, assim também o que somos, o que queremos, a verdade que derruba todas as nossas mentiras sociais está em nossos sapatos. Eles denunciam sem piedade a nossa história, o estado de nosso espírito, a vida que levamos, os sonhos que temos e os que perdemos. O salto alto de couro legítimo e aplicações de metal pode estar embaixo de um coração cansado que se assoma pelos olhos perfeitamente maquiados; e uma havaiana simples, barata e colorida pode ser a base de un coração feliz e realizado em sua modéstia, que se revela na voz alegre e no sorriso brilhante. As nossas máscaras não chegam até os nossos pés, pois em geral lhes damos quase nenhuma importância. "Eles só nos levam daqui para lá!", costumamos dizer, porém, uma olhada mais atenta fará com que comecemos a compreender a linguagem dos pés que, aparentemente protegidos -ou escondidos- pelos sapatos nada mostram sobre nós mesmos. Às vezes está neles o segredo que não contamos a ninguém, a dor que não revelamos, a felicidade que gostaríamos de compartilhar, a mágoa que carregamos e a esperança que nos sustenta junto com esses dois cúmplices dos quais mal nos lembramos no dia-a-dia.

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