terça-feira, 26 de outubro de 2010

A rede

    Como sempre ultimamente, atrasada com a crônica da semana, tudo devido ao Festival de Teatro Estudantil que está acontecendo há quinze dias na cidade e do qual sou jurada, mas, como sempre também, aproveito qualquer tempinho de folga -como agora de manhã- para cumprir com a minha obrigação literária e não deixar vocês a ver navios. Mas o festival acaba neste final de semana, então terei um pouco mais de tempo de volta, mesmo com todo o trabalho dos espetáculos de encerramento que ainda me aguarda...
    Ontem, enquanto penava sentada na primeira fileira do teatro assistindo uma peça encenada por 50 criancinhas de 7 a 12 anos (umas gracinhas, todas fofas, mas...) sobre as quais teria de dar alguma opinião logo depois, o que estava me deixando meio apavorada pois não sei quase nada sobre teatro infantil e temia julgá-las demasiado severamente, veio sentar do meu lado uma garota que já fez aula comigo mas teve de sair por problemas familiares, e de repente, assim do nada, após me cutucar gentilmente, começou a falar sobre o teatro, sobre o que sentia, sobre o que sonhava, sobre o que significava para ela, sobre como pretendia seguir a carreira de atriz... No primeiro momento, eu fiquei meio desconcertada e até incomodada, porque se supunha que eu devia era prestar atenção no que estava acontecendo no palco, mas aos poucos, a empolgação nos gestos e a emoção na voz e nos olhos da garota foi me conquistando, meio sem querer, e como já tinha chego a uma conclusão à respepito da peça e das crianças, deixei de lado minha caneta e a folha de notas e prestei atenção no que ela estava falando... E de repente era como se estivesse escutando a mim mesma há alguns anos atrás, quando decidi seguir a minha vocação de artista. Era o mesmo tom, as mesmas palavras, o mesmo brilho no olhar, aquele coração acelerado batendo no peito, iluminado pela descoberta do próprio destino; era seu sorriso igual ao meu, as suas esperanças, a sua felicidade. Era como estar me olhando num espelho e, de repente, em meio àquele cansaço, ao barulho, às luzes e correrias no palco, ao calor e à incerteza do que precisaria falar para não magoar ninguém, percebi, mais uma vez, o quanto eu gosto de fazer o que faço, quão feliz e realizada me sinto por ter ouvido a voz da minha alma e seguido esta vocação. Percebi que não há arrependimentos ou frustrações em meu coração, que mesmo sendo tão difícil às vezes, não trocaria a minha escolha por nada deste mundo, e com os olhos subitamente marejados (ainda bem que estava escuro!) desejei que aquela menina perseverasse em sua escolha, que alimentasse seu sonho para fazê-lo crescer e virar realidade, que não desse as costas a sua vocação, que parecia tão clara naquele momento, pois com certeza não iria se arrepender... São tão poucos os que recebem (ou percebem que receberam) a graça de saber quem são e o que querem fazer nesta vida! E ela era uma deles!... Quando acabou seu inflamado discurso, lhe dei um abraço apertado e cochichei em seu ouvido, enquanto o Menino Maluquinho fazia estripulias lá no palco: "Não deixe que esse deslumbramento se apague, não cale essa voz. Pule no abismo, porque posso assegurar-lhe que vai valer a pena, não importa quão medonho possa parecer às vezes. Pule!".
    Ela me agradeceu e, dando um profundo suspiro, como aliviada por ter encontrado alguém que a entendia e a apoiava, recostou-se na poltrona e ficou olhando para o palco iluminado e barulhento com olhos de encanto e felicidade. E eu, de soslaio, a contemplava e agradecia por Alguém tê-la colocado em meu caminho naquela tarde, pois assim como às vezes os jovens precisam de apóio e compreensão para correr atrás dos seus sonhos, nós, os mais velhos, precisamos nos ver relfetidos neles para nos lembrar dos nossos próprios sonhos e perceber se fomos capazes de realizá-los ou não.
    Bom, e depois deste episódio -que podería valer como uma crônica- aqui vai a da semana passada. Prometo que este fim de semana fico em dia!...

    Está fazendo um calor inusual neste início de primavera, um clima pegajoso e molhado que nos deixa desconcertados e muito irritados (sobretudo aqueles que são alérgicos). Sandálias, camisetas, bermudas, portas e janelas abertas para refrescar o interior das casas, cadeiras na calçada, na área, na rua, vizinhos afogueados se abanando com revistas o leques, estirados diante do ventilador... Tudo isto está totalmente fora de época e faz com que nos sintamos perdidos e um pouco preocupados. O calor está botando as pessoas para fora: televisões na área, piscinas de plástico nos quintais, crianças descalças e de maiô chupando sorvete nos portões, profusão de garrafas de cerveja e refrigerante saindo em sacolas dos bares e padarias, redes preguiçosas estendidas embaixo das árvores quase sem folhas ainda... O dia parece esticar-se num espreguiçar sem fim, sem vontade de nada. Há um outro espírito, uma outra atitude, algo como estar curtindo umas férias fora de época. Os vizinhos estão mais comunicativos, mais sorridentes, mais descontraídos; as crianças invadem a rua com seus gritos e brincadeiras; os bares botam mesinhas de metal pela calçada, as sombrinhas coloridas passeiam pelas avenidas feito um jardim em movimento. A música alegre dos carros estacionados se espalha pelo ar, misturando os estilos e as tribos que brincam de seduzir...
    Passo por todos estes cenários lentamente, carregando a minha mochila e a minha bolsa, testa molhada e blusa colada nas costas, e não posso deixar de sorrir diante da vida que, com frio ou calor, transcorre inalterável, mostrando seus personagens e acontecimentos, cada um em seu lugar, executando a sua rotina, alheio ao destino, ao tempo, à amorte, cumprindo seu papel neste instante, aprendendo e crescendo... Enquanto passo, feito uma mera espectadora e ao mesmo tempo profundamente inserida no acontecer, sinto meu peso, percebo meu movimento, analiso meus pensamentos, tomo consciência do meu corpo em meio a tudo isso como a peça de um quebra-cabeça, única e insubstituível, com todas as suas peculiaridades, a sua energia, seus objetivos, a sua sabedoria, a sua sede de continuar aprendendo e partilhando; e me dou conta de que cada um dos personagens que invadem a rua ao longo da minha caminhada é exatamente igual a mim, que todos formamos uma espécie de rede intimamente ligada, que todos dependemos de todos e que temos o mesmo destino e almejamos a mesma coisa: sermos amados. E que é este desejo inato o que nos leva à toda a grandeza de que somos capazes quando necessário.

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