sábado, 20 de novembro de 2010

O tempo do mestre

Hoje, excepcionalmente, estou com o dia livre até às 18:00h, que é quando teremos o nosso ensaio geral para a apresentação de amanhã, a última do Musical neste ano. Semana que vem é a última da escola de teatro, com a apresentação da peça da turma infanto-juvenil da qual eu estou tomando conta -e que está começando a ficar muto boa- Só espero que depois dela possamos ter algum descanso até sairmos de férias, lá pelo dia 20 de dezembro. Se supõe que à partir do dia 28 trabalharei em horários "civilizados" e não terei mais surpresas do tipo: "Amanhã tem uma apresentação!", então pretendo começar a botar em dia meus escritos (incluindo a história de "Silvestre", que já está começando a parecer uma novela da Globo!) e meus diários, porque outro dia percebi com espanto, que estou começando a ficar sem material para postar aqui e enviar ao jornal... Preciso desesperadamente de férias para recuperar o controle e a rotina saudável da minha vida!... Espero também que com o resultado dos meus exames na mão solucione este problema das dores no corpo e assim me sinta melhor disposta para criar e consiga descansar direito, porque estou precisando. Dia 29 ou 30 vou no laboratório e no dia 1 de dezembro aterrizo no consultório do médico para ter as minhas respostas. Estou meio estressada com este assunto, mas estou tentando não me preocupar antes da hora, porque isso só vai aumentar meu mal-estar. Não tenho outra coisa a fazer a não ser esperar e, para manter a cabeça no lugar, nada melhor do que escrever, não é mesmo?
    Então, vamos pôr em prática a idéia. Aqui vai a crônica desta semana, finalmente em dia:


    No meio do saguão iluminado e barulhento do teatro, lotado de público, artistas, críticos e repórteres, vejo a mim mesma, feito um patinho feio no meio dos cisnes, meio deslocada entre esta multidão de professores muito experientes, conhecedores das mais modernas e elitizadas técnicas, engajados, artistas eles mesmos, com anos de prática e pesquisas, formados em grandes universidades, que já leram, viajaram, conheceran, experimentaram, ministraram para bailarinos de alto nivel, desfiando aquele palavreado tão cheio de nomes famosos e termos técnicos que chega a ser assustador... Pessoas mais velhas, com aquela aura de "monstros sagrados", versados nos mais diversos e profundos conhecimentos sobre dança, biologia, cinética, filosofia, política, história, métodos de ensino e artes em geral... E aqui estou eu, a zebra do páreo, que nem consigo acabar de ler um livro sobre a história da dança moderna sem ter uma enxaqueca, e me sinto totalmente perdida no meio das suas pomposas conversas e dissertações teóricas tão avançadas... Olho em minha volta, escutando aquele som que parece uma colméia em frenética atividade e, de repente, percebo que ninguém está falando do ser humano, das suas peculiaridades, do seu potencial e de como ele pode ser aproveitado e incrementado para que o aluno não se torne somente um ótimo bailarino, mas também um ser humano melhor, um artista capaz de dançar os movimentos da sua alma e da alma de todos os homens. Todos aqui enchem a boca para defender seus métodos e proclamar seus sucessos, mas ninguém diz uma só palavra sobre o alvo de todas estas discussões: o aluno, a pessoa; o que ele tem a dizer através da sua movimentação... Então, respiro fundo e vou sentar num canto da sala, no único pufe que sobrou, com a minha coca-cola numa mão e o programa desta noite na outra. O abro e dou uma rápida olhada nas fotos e nos nomes das performances e dos grupos e solistas. Nesse instante, me pergunto se estes professores e coreógrafos que tanto se gabam dos seus trabalhos conhecem realmente as pessoas que os executam, ou se estão puramente interessados em seu rendimento técnico, nos aplausos, no prêmio... "Bom", digo para mim mesma, "suponho que é para botar esta questão na mesa que eu estou aqui, com toda a minha miserável ignorância". Morro de medo de encará-los, encarrapitados como estão em seus pedestais de sapiência, e despertar a sua arrogância e desprezo diante do que vim dizer, que é tão simples e óbvio, ingênuo até, mas completamente verdadeiro e necessário: a blasfêmia de deixar a técnica em segundo plano para ocupar-se da humanidade vai fazê-los cambalear e enrubescer, com certeza!...
    Mas eis aqui que, quando o momento chega, de súbito meu coração acorda e se aquece, se alegra, cresce atrás das minhas costelas, e a minha boca se enche de doçura, de sabedoria, de compaixão, de uma incontrolável felicidade, pois estou prestes a falar sobre o mais precioso bem que nós, como mestres, recebemos: o ser humano e a sua existência, seu ser, seu estar, seu dizer... E para meu espanto -e o deles também, acredito- consigo conversar, expor meus pontos de vista, explicar com cristalina clareza as minhas técnicas, meus exercícios de aula e seus propósitos e resultados, meus objetivos, meus motivos! Consigo me fazer entender e ainda suscito uma onda de comentários e perguntas, uma curiosidade totalmente inesperada com respeito a este meu trabalho absolutamente original e, pelo visto, eficiente!... Eles escutam, se abrem, percebem, até concordam e me tratam com respeito e uma nova consideração... E eu me pergunto, pasma, quase assustada: "O que estou fazendo? Quem sou eu realmente? O que toda gente está vendo? Não é o suficientemente óbvio? Como foi que cheguei aqui? Eu,  Zé ninguém de uma cidadezinha do interior, dando palestra para estas sumidades, respondendo às suas perguntas num debate?"... Mas de donde vem todo este embasamento, esta certeza, esta clareza que não admite contestação, que parece ter todas as respostas necessárias para que meu trabalho ganhe apoio e continue? De onde nascem a lógica e a verdade que permeiam as minhas palavras e gestos, a minha sernidade, a minha certeza?... E lembro daquele capítulo da história de Francisco de Assis em que ele envia seus discípulos para pregar a pobreza, a obediência e a castidade pelo mundo afora... "Não vos aflijais pela vossa ignorância. No momento certo, Deus derramará a Sua sabedoria pelos vossos lábios", dizia ele para os preocupados irmãos, alguns dos quais nem escrever sabiam, e eles nunca foram desapontados.
    Então, chego à conclusão de que  quando optamos por nos entregar aos planos divinos para cumprir nosso destino,  Deus age em nós tomando conta dos nossos atos e palavras, da nossa inspiração e criatividade, transformando-nos, guiando-nos, tocando-nos, despertando-nos... Todos temos nosso tempo de mestres, certamente, e não podemos nos furtar a este fato, pois asim como é vital aprendermos a ser discípulos, também precisamos aprender a ser mestres, pois teremos que desempenhar estes dois papéis ao longo de nossa vida em diferentes situações. Mestre e discípulo formam um corpo só. Cabe a nós saber quando é o momento de cada um deles agir.

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