segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Dois ciclistas

Bom, consegui arranjar um tempinho para sentar aqui e escrever hoje de manhã porque, como amanhã é feriado, a prefeitura decidiu emendar e não vamos trabalhar - o que não significa que não vamos ensaiar, isso está fora de cogitação- então, mesmo com a empregada em São Paulo no casamento do irmão -volta hoje à noite- casa para arrumar e almoço para fazer, ainda me sobram um par de horas para cumprir com meu sagrado dever da semana: postar a crônica no blog. Semana passada simplesmente não deu porque tivemos que resolver um monte de problemas, daqueles pequenos e muito chatos, da montagem, ver figurinos e dar bronca nos contra-regras que mais conversam e perdem a hora de mexer nas cordas e cenários do que ajudam. Mas, coitados, nunca fizeram este tipo de serviço, então, estamos tentando ser pacientes com eles porque, afinal de contas, o trabalho deles se resume a serrar, pintar, pregar, varrer, carregar e todo tipo de serviço braçal, então não estão acostumados com marcações, músicas, isso de aparecer no palco, se manter em silêncio ou agradecer no fim da peça... Mas como já estamos na semana da estréia as coisas estão ficando meio tensas, porque não pode haver nenhum tipo de falha nas apresentações, o que significa que precisamos ser exigentes ao máximo. As expectativas são gigantescas, assim como as perspectivas, então, a perfeição é o limite... Bom, como eu adoro desafios, não me incomodo com isto e tenho certeza de que meu pessoal também não e vai fazer o que se espera dele: um ótimo trabalho que, torço, vai render muitos frutos positivos no futuro para todos nós.
E aqui vai a crônica, recém saída do forno:


Apressada, fui atravessar a rua, a cabeça cheia de problemas para resolver, ligações para fazer, reuniões às quais comparecer, listas, relatórios, datas e horários, quando quase fui atropelada por um rapaz numa bicicleta azul. Ele freou abruptamente, cantando pneus, e olhando para mim com uma expressão na qual se misturavam a reprovação e o descaro, exclamou num tom insolente, alto o bastante como para que os transeuntes que passavam pudessem ouvi-lo:
-Aí, ô, tia! Abre o olho, né?
Eu fiquei paralisada durante alguns segundos, olhando para ele feito um rato pego na armadilha, sentindo-me impotente diante da sua agressiva superioridade, que ele fazia questão de exagerar na frente dos outros, que olhavam a cena com curiosidade e algo de comiseração. A sensação que eu tinha era a de que nenhum deles arriscaria seu pescoço para me defender ou sequer olhar torto para o garoto que, sabendo disto, sentia-se o dono do pedaço, o próprio Al Capone de bermuda, chinelo e tatuagem de caveira na panturrilha. A sua cara era tão rude, sua expressão tão ameaçadora e seu tom tão imponente e descarado, que todos preferiam ignorar o incidente a intervir e chamar a atenção dele que, na verdade, deveria ter parado para eu atravessar a rua, já que estava na faixa de pedestres. Mas seu talante era igual a tantos outros, que apareciam todo dia no jornal após um tiroteio, um assalto, um sequestro, um acerto de contas entre gangues, que ninguém teve a coragem de se aproximar e me apoiar. Nem eu mesma ousei abrir a boca para reclamar ou cobrar um pouco de educação, pois me senti impotente e sozinha diante da sua bravata e seus ademãs intimidadores... Não tinha mais do que quinze ou dezesséis anos, corpo enxuto e musculoso, forrado de tatuagens e cicatrizes, rosto de feições angulosas, boca grossa, sobrancelha raspada num desenho, piercing na língua, no lábio, na pálpebra. Vestia bermuda, chinelo e camiseta desbotada, uns cachos de cabelo castanho aparecendo por baixo do boné, os olhos escuros e frios, com o brilho feroz de quem é obrigado a defender seu territorio todo dia com um único olhar. A bicicleta na qual montava era pequena demais para seu tamanho, ele mal conseguia sentar no selim, e o azul cromado estava quase coberto de adesivos e franjas. A cada movimento seu eu podia escutar o barulhinho irritante das miçangas subindo e descendo nos raios da roda... Amedrontada, desviei os olhos e comecei a caminhar novamente, mas ele jogou a bicicleta na minha frente, dando una risadinha burlona, e acrescentou, num tom depreciativo e roufenho:
-Aí, coroa, tó atrasado, dá licença.- e subindo de um pulo nos pedais, saiu em disparada pela rua abaixo, dando risada.
Eu fiquei parada ali, feito cachorro que levou um pontapé, olhando para a sua silhueta que diminuia velozmente, o coração desbocado, a boca seca, tremendo de raiva e medo, mas sem conseguir reagir, sentindo-me idiota, ultrajada, abandonada... Mas, o que havia com esta juventude? Todos eles tinham enlouquecido? Tinham apagado das suas vidas as boas maneiras, as palavras inteligíveis, a compaixão? Ninguém tinha ensinado a eles respeito, consideração? Não sabiam o que era um sorriso?... Engolindo a minha revolta e meu medo, dei um passo em direção à outra calçada, quando divisei, vindo do outro extremo da rua, mais um ciclista, e estaquei na hora. Ele se aproximou, pedalando a toda velocidade. Era assustadoramente parecido com o outro: bermuda jeans, camiseta regata, tênis, cabeça raspada num desenho tribal, piercing na sobrancelha, luvas de couro preto... Eu tremi e comecei a recuar... No entanto, para a minha surpresa, quando chegou perto, o rapaz diminuiu a velocidade, olhando para mim com uma faísca de simpatia e a sombra de um sorriso distendendo a sua face morena, e terminou parando a meio metro de onde eu me achava. Fez um gesto com a mão para que eu atravessasse e, enquanto eu obedecia, ainda desconcertatda por semelhante cortesia, ele deu uma olhada para a igreja que estava à nossa frente e, fechando os olhos, fez o sinal da cruz com profundo respeito. Até pareceu que tinha feito uma rápida prece e, vendo que eu já me encontrava do outro lado, sorriu fugazmente para mim e montou em sua bicicleta de novo, afastando-se rapidamente atrás do primeiro ciclista, ziguezagueando entre os carros e os ônibus.
Eu fiquei a observá-lo por alguns minutos, tomada por uma multidão de sentimentos que se chocavam entre si. Porque fazia muito tempo que não levava uma surpressa deste tamanho... Pois, quem diria? O garoto de cabeça raspada e piercing na sobrancelha, tatuagem de sereia no braço e pulseira de metal com pontas, fez um respeitoso sinal da cruz, murmurou uma prece mínima porém profunda, feito um menino bem educado, "antiquado", careta, ingênuo, crédulo, até devoto, quem sabe -daqueles que já quase não existem mais, pelo menos não com esse aspecto de rebelde- e ainda teve o cavalheirismo de de me ceder a passagem na hora do rush fazendo aquele gracioso gesto com seu braço magro e nervudo... Enquanto retomava meu caminho pensei, espantada: " Como é que duas pessoas tão parecidas, que talvez vivem sob a mesma ideologia, desenvolvem os mesmos comportamentos e linguagens podem agir de maneiras tão difertentes?"... Me perguntei o que teria provocado aquela diferença em suas atitudes. Em que ponto do caminho e por qual capricho do destino escolheram, um assumir seu lado escuro e perigoso, e o outro continuar cultivando a bondade e a fé? Eram tão parecidos que até podiam passar por irmãos, com certeza provinham de vilas da periferia, pobres e abandonadas, tomadas por gangues e violência, e não se faziam ilusões com respeito ao seus futuros; no entanto, um deles tinha conseguido, de alguma forma, manter os valores, a fé, o comportamento certo para poder conviver em paz com o resto do mundo. A esperança e umas gotas de inocência e otimismo ainda brilhavam em seu olhar, adivinhavam-se em seus gestos. Já no outro garoto pude observar um abismo, um túnel sem saída, uma ponte que havia sido queimada; um algo sem volta, sem futuro. Nem em si mesmo aquele rapaz acreditava, apesar da sua pose e das suas bravatas, que davam a impressão de que era o dono do mundo e que podia fazer o que bem entendesse nele e com as pessoas que nele habitavam.
Cheguei ao meu trabalho ainda pensativa, preocupada, e sentei na cadeira em silêncio, meditando, reavaliando aquela máxima que diz que a primeira impressão é a que vale, pois aquele incidente tinha-a derrubado por terra mais uma vez. Porque não era a primeira vez que comprovava isto e, perceber que podemos, às vezes, ser facilmente enganados por uma cara feia, uma roupa surrada ou um linguajar deficiente, sempre reacendia a minha esperança de que ainda tínhamos salvação, de que podíamos acreditar uns nos outros sem importar o que parecêssemos à primeira vista... Pena que estejamos tão ligados à imagem, ao estatus, ao poder -e este erro cresce a cada dia- e seja tão difícil enxergar o verdadeiro ser humano que está diante de nós. Não estou isenta deste pecado e o cometo infinidade de vezes, mas tem dia em que, como naquela manhã, a verdade surge de improviso na minha frente como para me lembrar de não julgar nem condenar sem conhecer, para me convidar a dar uma chance. Não que isto vai fazer sumir a maldade ou as pessoas negativas, mas pelo menos as nossas consciências ficarão tranquilas se concedermos, nem que seja por alguns segundos, uma segunda oportunidade àquele que Deus coloca em nosso caminho.

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