sábado, 4 de julho de 2009

O homem paralisado

Este fim de semana está sendo meio tumultuado, como podem ver, então somente hoje consegui sentar aqui e postar a crônica desta semana. A minha filha está finalmente de férias -e eu também, pelo menos das aulas nas escolas- então aproveitamos para fazer um programa ontem e fomos almoçar fora, depois ao cinema e finalmente fizemos algumas "compritas" (ai, meu Deus, mais contas!). Quando chegamos eu estava tão cansada e eufórica -pois fazia mais de seis mêses que não conseguiamos sair juntas por causa dos nossos trabalhos (ela é repórter de tv) que não tive fôlego nem inspiração para ligar o computador e menos ainda para digitar uma só linha... Mas valeu a pena, acreditem!... Porém, hoje volto às minhas obrigações. Ou achavam que iria deixar vocês sem a crônica semanal?... Então, aqui vai:

Todo dia, quando passo em frente à casa, ele já está sentado na sua cadeira de vime lendo o jornal, o andador de um lado e, numa mesinha ou um pouf verde, a sua xícara de café ou a lata de cerveja. É um homem alto e corpulento, de cabelos compridos e já ralos e olhos claros, sempre vestido de bermuda, camiseta e chinelos nos pés castigados pela doença que quase o impede de se locomover. Quando volto do trabalho no fim da tarde, ele continua lá, esparramado na cadeira, umas horas cochillando, outras bebendo cerveja, lendo ou simplesmente olhando para o nada enquanto a mulher, na cadeira vizinha, faz tricô, costura ou brinca com a cadela, que está sempre seguindo-a e querendo a sua atenção... Às vezes conversam, outras partilham o jornal, cumprimentam os vizinhos ou cruzam algumas palavras com o filho. Porém, o normal é que permaneçam em silêncio ou que ele fiique sozinho na varanda enquanto ela se ocupa com os afazeres lá dentro. Faz alguns anos que se mudaram para aquela casa da esquina e, no início, o homem saía para caminhar, ia até o centro e era capaz de dirigir o carro, mas com o passar do tempo, a doença foi reduzindo-o à quase invalidez e hoje só se locomove penosamente com a ajuda de um andador e só pelo interior da casa. O resto do tempo, está sentado naquela cadeira de vime na varanda, olhando a vida passar.
Quando encontro com ele pela manhã, ao sair para fazer a minha caminhada, ainda posso distinguir uma faísca de interesse e ânimo em seu olhar, mas quando regresso de tarde, a visão com que me deparo é a de alguém atordoado, tomado por uma modorra invencível, caido na cadeira, pernas abertas, cabeça ladeada, totalmente apagado, fisica e espiritualmente... O cumprimento, como sempre, mas às vezes ele nem sequer repara em mim, nem escuta a minha voz -ou qualquer outra coisa ao seu redor- e continua imerso em seu torpor e imobilidade... Ao virar a outra esquina e entrar na minha rua, ainda com a sua imagem em minha cabeça, costumo me perguntar que tipo de vida leva uma pessoa em suas condições, obrigada a permanecer parada quase que o tempo todo, olhando sempre a mesma paisagem, precisando de ajuda para se levantar daquela cadeira e entrar na casa ou ir a qualquer outro lugar, passando a maior parte do dia sozinho na varanda com seus pensamentos e sentimentos. Me pergunto se aprendeu a tirar algum proveito da situação ou se, simplesmente, foi engolido por ela e vive semi-inconsciente o tempo todo. Nunca o vi fazendo algum trabalho manual, recebendo um amigo, batendo papo com o filho, sendo carinhoso com a mulher. É como se morasse num casulo silencioso e escuro que não lhe permitisse contato com o mundo exterior. Mas, trancou-se ali por vontade própria, vítima da frustração, da mágoa, da auto-piedade, da indiferença? Foi incapaz de vencer a imobilidade em que foi forçado a viver e perdeu o interesse pelas coisas e pessoas que existem ao seu redor? Pretende apagá-las da sua rotina assim como sente que ele próprio foi apagado pela enfermidade? Qual a sua reação diante do desafio que enfrenta?... Ou não há reação alguma? Me sinto curiosa por saber como é este homem paralisado, o que pensa, o que deseja, o que o motiva, as coisas que tem aprendido ao longo da sua provação, se teria alguma lição para me ensinar... Então penso em nós, pessoas normais, que podemos andar por aí à vontade, sentar, levantar, correr, subir, pular ou, simplesmente, permanecer parados no meio da praça, ou observando uma vitrine, na fila do mercado, na igreja, na padaria enquanto aguardamos o pão quente sair. Penso em como -e talvez por termos tantas possibilidades de movimentação- deixamos tanta coisa passar, descartamos tantos sentimentos, tantas percepções, tantos encontros. Passamos velozes e despreocupados pelas lições, pelas pessoas, pelas palavras e os gestos, pelos milagres que nos cercam, pela felicidade e a paz. Talvez precisássemos de um par de dias sentados numa cadeira de vime, feito este homem que não tem outra escolha, sozinhos numa varanda da manhã até à noite, para aprendermos a parar -fisica e mentalmente- e dar-nos conta de que estamos vivos, de que existe um mundo de pessoas, paisagens, vozes, acontecimentos e desafios que não deveríamos desperdiçar, pois são somente nossos, feitos para nós, e que estão ali aguardando a nossa participação para que a história se torne mais completa, mais humana, para que tenha a chance de um futuro melhor.
O homem paralisado me lembra que eu posso me mover (sorte minha!) porém, também me lembra que preciso parar de vez em quando -ao menos uma vez por dia- para sentar naquela cadeira de vime, sob a sombra do alpende, e observar o mundo passando: os filhos crescendo, a mãe envelhecendo, a revoada de andorinhas e o cachorro deitado ao sol, o significado da expressão na face do meu amigo, a chegada das estações, o toque do ser amado, as vozes dos que passam diante da minha porta, o olhar dos que venceram e dos que fracassaram, porque tudo isto faz parte de mim, da minha essência, e porque com certeza um outro alguém está me observando também e, quem sabe, aprendendo comigo.
Não tenho medo de parar, e ntão, porque tenho a certeza de que poderei continuar a me movimentar depois, e de que esta parada não obrigatória não será -como no caso do homem do andador- o final da minha caminhada, mas sempre um recomeço.

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