sábado, 11 de outubro de 2008

O sobrevivente

Mais um sábado, hoje de chuva, e mais uma história. Hoje estou contente porque finalmente publicaram o endereço do blog na crônica desta quarta-feira na Folha de Londrina. Espero que a coisa funcione e mais pessoas possam ler meus textos... O único chato deste esquema é que você nunca sabe quantas pessoas realmente abrem o blog e lêem as crônicas, pois nem todo mundo posta um comentário ao respeito, então acho que devo supor que tem gente lendo e gostando, fora as que lêem as crônicas no jornal. Gostaria que eles publicasse pelo menos uma por mês, como fazia a antiga editora, mas sei que tem muita gente enviando trabalhos e também têm direito de vê-los publicados. No entanto, posso me sentir feliz porque, realmente, as minhas crônicas são as que aparecem com maior freqüência -provavelmente porque estou constantemente enviando novos textos- e recebem boas críticas. Acho que, no fim, tudo se resume a não desistir, não é mesmo?... Alguma hora algo tem que acontecer...
Bom, e aqui vai a de hoje:
Aquela imagem mais parecia saída de um quadro de Goya, de um concurso de fotografia no qual tivesse ganho o primeiro prêmio pela dramaticidade, ou de um cartaz de denúncia ou concientização sobre os velhos e as suas necessidades e penúrias: na pequena casa branca, construída com os mais diversos tipos de material, na área com teto de zinco e pilares de madeira, entulhada de latas com avencas e cebolinha, uma mesa velha coberta com uma toalha de plástico gasta e rodeada por cadeiras tão tortas e tristes quanto ela, o velho apoiava as costas vergadas na parede onde batia o sol da manhã, sentado num banquinho feito com os restos de uma cadeira metálica. Segurava um pote de sorvete do qual ia pegando vagarosamente, com mão trêmula, colheradas de algum tipo de mingau branco e fumegante, que levava à boca desdentada com todo cuidado para não derramar nada sobre o guardanapo que pendia da sua camisa. Atrás dele, no interior da cozinha sombreada, percebia-se grande atividade, vozes, barulho de pratos e panelas, silhuetas passavam pra cá e pra lá apressadas e cheias de animação, porém, para o velho sentado na banqueta ao sol, nada parecia importar a não ser terminar a sua refeição, silenciosa e metodicamente, encolhido naquela roupa grande demais para ele, calçado com chinelos velhos e de uma cor indefinida, os cabelos ralos despenteados, os pequenos olhos ausentes e opacos... Parecia que, uma vez que deram a ele seu pote de mingau, todos ali dentro haviam se esquecido dele e ele por sua vez, tampouco se mostrava interessado no que acontecia lá. Era como se estivesse numa outra dimensão, uma figura única e solitária, emprestada para compor aquele quadro do qual não parecia realmente fazer parte...
Passei lentamente diante da casa e uma rajada de angústia me apertou o coração ao perceber como ele se destacava sentado ali, apesar de tão miúdo e frágil, como parecia o reflexo fiel daquele tipo de terrível e devastadora miséria que invariavelmente afasta os velhos deste mundo; fiquei impressionada com a poderosa eloqüência da sua imagem de sobrevivente, de decadência, de solidão, de descaso por parte daquelas silhuetas que riam e conversavam lá dentro. Fiquei dolorosamente comovida e revoltada diante da sua evidente impotência, daquela resignação sem esperança e sem raiva, daquele pote de sorvete surrado no qual comia -por que não lhe deram um prato?- e da colher torta e opaca que levava à boca. Me perguntei que sabor teria aquele mingau, qual seria a sua consistência, se havia sido feito naquela manhã ou requentado do dia anterior, mas com certeza aquilo não era mais importante para ele; bastava poder comer... Me perguntei então como seria para este homem ter de se submeter à boa vontade dos outros, não ter mais o comando da própria vida, não ter um outro lugar no mundo e na história da família a não ser aquele espaço junto da parede, naquele pedaço da área de chão vermelho, ou embaixo da árvore na calçada em frente ao bar, para onde arrastava todo dia aquele mesmo banquinho e ficava sentado por horas a fio, fumando seus cigarros tortos e contemplando a azáfama do mundo ao seu redor com absoluta indiferêncça, talvez com um lampejo de desprezo em sua face enrugada.
Mas naquela manhã em que passei diante da sua casa, não me pareceu indiferente ou mostrando algum desprezo, porém abandonado, vencido, semelhante a uma vela que se apaga devagar, silenciosamente, sem nenhuma dignidade ou alívio, sem ninguém perceber... A sua imagem era tão pungente e sem esperança, que realmente poderia ser utilizada para nos conscientizar sobre o que nos aguarda se não começarmos agora a educar as novas gerações sobre o respeito, o carinho, a consideração e a compaixão que os idosos precisam e merecem para chegar ao fim da sua caminhada com o coração cheio de gratidão e satisfação pela existência que levaram e os feitos que realizaram, ao invés de transbordante de amargura e humilhação pelo nosso esquecimento e egoismo.

6 comentários:

sol disse...

SUA DESCRIÇÃO É TÃO FOTOGRAFICA QUE PUDE VER O VELHO E SUA SOLIDÃO,ALÉM DE TUDO QUE O RODEAVA,PARABÉNS!

D Z disse...

Boa tarde Paz, sobre o endereço do seu blog ter sido colocado na Folha de Londrina, com certeza, é uma boa forma de divulgação... Costumo ler, toda quarta-feira, as crônicas publicadas na Folha e esta semana encontrei a sua (com o endereço do blog), por isso resolvi vir até aqui para conhecer um pouco mais da sua escrita.

Sobre este texto, realmente, costumamos esquecer que também envelheceremos e que podemos acabar como este velhinho da crônica... Faz-se necessário criar uma consciência nas novas gerações, no entanto, penso que antes, precisamos nos transformar em exemplos... Já ouviu aquela história, a qual sempre ouvia quando criança, em que os pais maltratavam o avô e o menino cortou a coberta no meio e disse que guardaria para quando o seu pai ficasse velhinho, ele pudesse usar? Pois então, se as crianças nos vêem fazendo como o que descreveu em seu texto, como querer que façam o contrário?

Gostaria de lhe parabenizar pelos textos, adorei a forma como escreve e a descrição que fez das cenas neste texto fez com eu pudesse imaginar as personagens, o cenário e tudo mais...

Volto mais vezes para conferir seus textos...

Um ótimo final de semana!

Abraços,

Dany Z.

Paz Aldunate - Palavras disse...

Cara Dany Z:
Que bom que vc gostou das crônicas!... A minha esperança é que muitas outras pessoas as leiam e assim parem para refletir, para olhar em sua volta e tomar alguma iniciativa que melhore a própria vida e a de outros. Não quero ganhar o prêmio Pulitzer, mas o meu intuito é fazer com que voltemos a olhar para o mundo, para os seres humanos que vivem do nosso lado, para os pequenos milagres de cada dia, para as mensagens e as lições que esta vida nos oferece a cada momento. Espero que passe o endereço para mais pessoas e assim façamos alguma diferença neste planeta. Não precisa ser algo enorme, uma gota já basta, pois, não é o imenso oceano feito de pequenas gotas?
Beijos!
PAZ

D Z disse...

Paz, realmente, o oceano é feito por pequenas gotas, por isso já coloquei o seu endereço entre os favoritos do meu blog... Sou apenas mais uma desconhecida, no entanto, se apenas uma pessoa passar por lá e resolver te visitar, já é contribuição para que você possa continuar seu intuito de fazer as pessoas olharem para o mundo de forma diferente...

Tenha uma ótima semana!

Abraços,

Dany Z.

Paz Aldunate - Palavras disse...

Minha cara Dany:
Então somos duas desconhecidas neste imenso oceano, mas de desconhecida em desconhecida acho que podemos formar um tremendo bloco y talvez, talvez, mudar alguma coisa. Obrigada pelo seu apoio, não sabe como é importante para mim e a minha "missão"... Tomara que caiam outros como você no meu blog!
Beijão!
PAZ

Paz Aldunate - Palavras disse...

Cara Sol:
Você, como sempre, me dando ânimo!... Obrigada pelo apoio!... Passe o endereço para quem vc acha que vai tirar proveito!
Abração!
PAZ