segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Vocação

Estava sentada no sofá do consultório, aguardando a minha vez enquanto folhava uma daquelas revistas de fofocas e considerando a pobreza daqueles textos cheios de gírias estrangeiras e indiscretos números delatando idades e medidas dos famosos, quando uma mulher entrou na recepção, levando um menino de uns quatro anos pela mão e com uma sacola de plástico colorida pendurada no ombro. Ficou um momento no balcão de atendimmento, verificando seu horário, enquanto o menino foi sentar numa das poltronas de vime que tinha ali perto. Acabada a sua indagação, a mulher -que devia ter uns 25 anos e muitos quilos a mais- foi sentar na poltrona vizinha à do menino, falou alguma coisa para ele, que sorriu animadamente em resposta, e em seguida pôs a sacola no colo, a abriu e tirou de dentro um livro de capas coloridas e formato irregular. A esta altura, eu já havia abandonado a leitura de fofocas e desfile de vaidades e estava observando a mulher e perguntando-me como iria manter a criança quieta enquanto esperava a sua vez, pois ela parecia cheia de energia e o consultório cheio de possibilidades para correr, bagunçar e fazer estragos... No entanto, assim que ela tirou da sacola o livro, o menino se ajeitou rápida e ansiosamente nas almofadas macias da poltrona e esperou, olhinhos fixos e brilhantes de expectativa na mãe, a que ela se acomodasse também e abrisse a primeira página do livro. Antes disso, a mulher ainda tirou da sacola um pacotinho de bolachas e um copinho com um canudo, que entregou para o menino com um sorriso no rosto. Em seguida, finalmente -até eu estava começando a ficar ansiosa!- recostou-se na poltrona, abriu o livro e começou a ler a história para o filho... Eu fiquei como que hipnotizada olhando para aquele quadro: a mãe lendo em voz baixa, dramatizando cada frase, seu rosto passando pelas mais variadas expressões, e o filho imóvel, coma bolacha numa mão e o copinho na outra, totalmente absorto em suas palavras e gestos... Percebi então que estava diante de um instante único entre mãe e filho, uma experiência de total intimidade e união, de cumplicidade sem receios ou preconceitos. E percebi também que o responsável por tal feito precioso e verdadeiro era o autor daquele livro de capas coloridas e irregulares. Aquilo era magia, pura magia...
Sorri, tomada por uma curiosa emoção, pois naquele momento lembrei que a minha mãe nunca me contou histórias...
Não me lembro dela sentada na beira da minha cama ou no sofá da sala, ou à sombra de uma árvore no quintal, descrevendo para mim as peripécias de alguma princesa injustiçada por madrastas ou irmãs invejosas, ou os feitos de bravura do príncipe que desafiava dragões e bruxas para resgatar a sua amada de uma torre inatingível. Não a vejo mostrando para mim os desenhos mágicos da lebre veloz ou da tartaruga persistente, do ratinho da cidade e do seu primo do campo, das fadinhas do bosque, do lobo e os porquinhos... Não, a minha mãe não lia histórias para mim, muito menos as inventava, como eu fazia para a minha filha. Ela comprava os livros, as revistas e nos levava ao cinema para assistirmos essas coisas, porém, nada mais acrescentava da sua parte a estas experiências, então eu tive que utilizar meus próprios recursos para aprender a imaginar, a viajar, a me envolver e acreditar nas palavras e imagens que apareciam diante de mim naquelas folhas coloridas ou na enorme tela do cinema.
Eu achava curiosa esta situação, pois sempre me lembrava do que a minha mãe contava sobre a sua infância e adolescência, do quanto ela gostava de ir ao teatro, à ópera, ao cinema, e de como, quando voltava para casa, encenava para os outros tudo que havia visto com todos os detalhes... Infelizmente, com o passar do tempo e as frustrações que se viu obrigada a suportar, parece que toda essa veia teatral, festiva e cheia de imaginação foi sendo sepultada, amordaçada, relegada àquele quarto escuro onde ficaram todos os encantos que ela sonhou desfrutar e que lhe foram tirados em prol da vontade dos pais e do irmão predileto e de um casamento no qual tudo deu errado... Eu entendia escuramente suas razões e não reclamava, pois ao menos ela nos proporcionava o material para que pudéssemos iniciar algum tipo de viagem, de aprendizado sobre imaginação, criatividade e magia, sobre sonhos e esperanças. Ainda me lembro das pilhas de revistas em quadrinhos de todos os tipos que se amontoavam em nossos armários: histórias de santos, de heróis, de fábulas, de romance, de príncipes, de desenhos, de mitologia... Havia épocas em que eram tantas, que podíamos pôr uma banquinha na porta de casa e vender algumas centenas sem detrimento do nosso estoque, pois ela continuava a trazer mais a cada semana, acontecimento que a minha irmã e eu aguardávamos ansiosas.
Foi com essas revistas que aprendi a desenhar, a construir uma história, a criar personagens e paisagens, diálogos, descrições, a procurar caminhos para a minha expressão. E foi nos livros da nossa pequena e entulhada biblioteca -que a minha mãe instalou naquele estreito corredor de casa- onde descobri o fascínio pela escrita, o milagre que aquelas letrinhas miúdas juntas podiam operar no coração de quem as lia, o poder que elas tinham para penetrar e transformar nosso pensamento, as nossas atitudes e objetivos; as portas que iam se abrindo à medida que se avançava na leitura, como o texto podia envolver, transportar para outras dimensões, fazer rir ou chorar mesmo sem ter nenhuma imagem como referência. Não era preciso, pois as palavras por si só, reunidas daquela maneira peculiar, eram capazes de despertar todas as emoções, reflexões e revelações que o autor desejasse, tal era seu poder, a sua intimidade com o leitor. Era como se, ao abrir o livro e começar a percorrer as suas linhas, se fechasse algum tipo de muro dentro do qual só ficassem o autor e o leitor partilhando aquele universo tão especial, tão único, porque -descobri depois- cada pessoa que pegasse um livro e lesse, faria um contato completamente pessoal e intransferível com o que estava em suas páginas, consigo mesmo e com o autor, mesmo que jamais chegasse a ter algum contato com ele... Era algo completamente extraordinário! A chance de poder dizer algo sem impor imagens ou sons, de contar uma história permitindo a quem lia fazer seu próprio quadro escolhendo os rostos, as vozes e os cenários era algo totalmente fascinante e desafiador, pois existia a certeza da infinita diversidade de interpretações e conclusões, todas baseadas na unicidade de cada pessoa que pegasse o texto nas mãos... Havia em tudo isto uma tal concepção de liberdade -tanto para o autor quanto para o leitor- que foi impossível não escolher esta vocação para mim. Ela preenchia todos os requisitos que eu procurava para atingir a minha realização!...
Não há regras para a arte, sei disso, porém, a escrita me pareceu a mais abençoada neste sentido, pois tudo fica numa dimensão na qual a liberdade de escolha é absoluta, tanto para quem escreve quanto para quem lê.
É, a minha mãe nunca me contou histórias, como aquela outra fazia com seu filho, mas, com certeza, ela me deu tudo que era preciso para que eu encontrasse a minha vocação e começasse a escrever as minhas.

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