segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Nossos sonhos

Já diz o ditado: "A rei morto, rei posto", não importa se a gente está ainda com o coração partido por causa da morte do anterior... Pois é, após a partida repentina da minha querida "Talita" no domingo, fiz questão de cumprir o que tinha prometido e, como já contei, liguei para esta Ong que recolhe cachorros de rua e trata deles até serem adotados (inclusive castrando-os) e pedi para me trazerem alguns para ver se ficava com algum... Bom, na verdade -e apesar da dor que ainda cortava-me o coração- quase acabei ficando com os três que me trouxeram, porém achei demais (até porque o coitado do meu esposo não estava sabendo nada desta minha manobra) e disse que iria pensar à respeito... No entanto, como todo aquele que tem a doença de gostar de cachorros está condenado, não agüentei nem uma noite e no dia seguinte liguei para dizer que ficaria com as duas cadelinhas -o outro era um macho- ambas com histórias muito tristes e traumatizantes, e hoje estão aqui, deitadas em cima da minha cama num raro momento de sossego (brincam e correm o dia inteiro feito duas crianças) iguais a duas musas inspiradoras, assim como era a "Talita". A mais velha e maltratada chama-se "Lucy" e tem um olhar maravilhoso, brilhante e direto, que parece atravessar meu coração e aquecê-lo, tem um ano e ainda se assusta com qualquer movimento brusco (imagino o que passou jogada na rua durante todo esse tempo) A menor chama-se "Sky" (como vocês podem perceber, a coisa tem tudo a ver com aquela música dos Beatles "Lucy in the sky with diamonds") e é totalmente serelepe e irresistível, louca por umas migalhas de atenção e carinho. Tem cinco mêses e só pára de brincar quando vencida pelo cansaço. Ambas são do tipo "raça desconhecida", de pêlo marrom e preto misturado, curto e grosso, mais para tamanho pequeno, extremamente espertas -como todo cachorro vira-latas- Já aprenderam um monte de coisas (gestos e palavras) que eu pensei que iriam demorar para entender, então, de repente até parece que estão comigo há mais tempo.... Não digo que ainda não me emociono quando falo da minha "Talita", mas estas duas já conseguiram me conquistar e dar alegria ao meu dia-a-dia, sobretudo quando volto do trabalho, lá pelas 9 da noite, e não tem ninguém em casa... Nem o melhor dos maridos ou filhos fazem uma festa semelhante quando nos vêem chegar, vocês têm que concordar!... Como diz a propaganda da Pedigree: "Cachorro é tudo de bom"!...

Bom, e antes de que vocês pensem que esta é a crônica da semana, é melhor eu parar de tagarelar sobre as minhas duas gracinhas e postar a crônica de verdade, não é mesmo?... Então, aqui vai. Também esta semana pretendo postar mais uma história no blog: pazaldunate-estorias.blogspot.com. Dêem uma passada por lá na quinta ou sexta!.



"Para Elisa"... A serenata de Beethovem ecoando no ar parado e penumbroso da sala e as mãos da minha mãe, uma bailarina que acabou prisioneira em intermináveis corredores com estantes nos quais se efileiravam livros sobre temas áridos e exatos feito paredes de concreto, correndo ágeis pelas teclas do piano. Para mim, uma menina de oito anos sentada ao seu lado, elas semelham duas borboletas de pontas vermelhas, e fico a contemplá-las, pasma, pois me parece absolutamente incrível que daquela espécie de vôo desordenado possa surgir tal melodia. Meu coração vibra junto com cada nota e acompanha as cadências, as subidas e descidas, as escalas primorosas, as pausas como quem escuta uma história mágica..

A cena aparece claramente diante de mim agora e uma lancetada de dor me aperta o peito ao pensar em minha mãe. Quanta sensibilidade e vontade sufocadas entre as páginas daqueles livros estéreis e sem histórias! Economia, geografia, demografia, planejamento, números, gráficos, estatísticas, alimentação, organização... Prateleiras escuras e empoeiradas que engoliram sem piedade os sonhos da minha mãe, mataram a sua criatividade e mutilaram seus desejos... Que tristeza lembrar hoje das suas mãos desfiando aquela serenata nas teclas do velho piano da madrinha, naquela sala de teto alto e paredes manchadas!... Ela, que asistia à ópera todo mes, que lembrava de cada filme, de cada nome, cada cena nos mínimos detalhes! Ela, que representava para todos em casa as histórias que lia e assistia no cinema, transformando-se com paixão em cada um dos personagens! Ela, que desenhava figurinos para atrizes e atores imaginários em peças a serem escritas ainda!... O que foi de tudo isso? Por qual maldade da vida -chamada obediência- aquilo foi silenciado, sacrificado? Onde estaria a minha mãe hoje, quem seria ela se tivessem lhe dado a chance de seguir seus sonhos? Quem ela é realmente, se consideramos aquele pedaço que está faltando? Onde e quando terminou a artista e começou a representação da senhora bem casada, bibliotecária eficiente e dona de casa, mãe responsável? Essas "escorregadas" de caráter como cantar, dançar, rir em voz alta, chegar sempre atrasada, desenhar, abrir lojas que faliam ou assistir todos os filmes que podia pagar são rescaldos daquela bailarina que ficou trancada num quarto sem luz, mas que ainda murmura em seu coração?... Se não nos tirassem, pelos mais diversos motivos e as mais variadas desculpas, os nossos sonhos, quem seríamos de verdade? Onde estaríamos? O que teríamos feito? Como estaria a nossa história hoje?... Com certeza, bem diferente.

Nenhum comentário: