sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Mãe, pátria

Vocês devem estar achando que eu desisti, que perdi a inspiração, sofri algum tipo de acidente incapacitante ou fui abduzida por um ovni e por isso já faz duas semanas que não posto nada, mas a verdade é bem outra. Antes de mais nada, vou dizer que nem por um momento pensei em desistir de escrever -isso seria a morte para mim!- mas acontece que estes têm sido dias difíceis, com perdas e mudanças fenomenais às quais estou começando a me adaptar, e como sou uma pessoa de rotinas e rituais, não está sendo nada fácil... Dia 24 de agosto perdi a minha mãe e logo em seguida houve uma mudança radical em meus horários de trabalho -o que jogou por água abaixo todos os meus esquemas- e uma das minhas turmas de teatro foi arbitrariamente dissolvida por motivos bastante escusos, porém inapeláveis (já sabem, quando chefe manda..) Agora trabalho todos os dias -de segunda à quinta- de manhã e à tarde, então acabaram-se as inspiradoras caminhadas matinais e as sessões de escrita, a academia passou para o fim da tarde, quando saio da fundação, lá pelas 18:30, o que é uma hora terrível para mim porque nessa altura do dia já estou sem energia, e tenho que almoçar, ou no restaurante, ou levar marmita e requentar no microondas, o que não é lá muito saudável... As suas vantagens tem, porque não trabalho mais à noite, então chego em casa numa hora decente e consigo jantar cedo, coisa que com certeza vai melhorar a minha glicemia -que está uma merda com toda esta revolução- nem nos finais de semana, a não ser que tenha algum evento que requira a minha presença, fato que, acredito eu, agora não vai ser muito frequente porque tem uma outra pessoa que está arcando com esses compromissos (graças à Deus!). A outra coisa positiva é que, pelo menos, e apesar de todas as nossas desavenças e esbarrões, meu chefe manteve as horas extra que combinamos no início do ano, então meu salário não vai ficar desbancado com estes câmbios de horário, coisa que seria uma verdadera catástrofe para meu orçamento... Mas na verdade não é bem um favor, porque não vou ficar com elas de graça, vou ter que trabalhá-las, e muito! Ainda bem que tem tanto projeto que não vou ficar ociosa. A outra coisa boa é que, finalmente, vou poder trabalhar em equipe com o Leander, meu aluno mais antigo -e novo diretor do musical- que é um cara mais do que sensacional, criativo, bem-humorado, eficiente, sensível e tremendamente antenado com a minha linha de trabalho... Resumindo, quase um anjo da guarda, por isso acho que o coitado vai ter de servir de ponte entre meu chefe e eu, porque é um meio termo entre ele e eu, que somos os extremos radicais no que diz respeito ao trabalho teatral... Mais um ponto positivo é que, também finalmente, terei à minha disposição um dos computadores da fundação -infelizmente não em minha sala, mas um é melhor do que nenhum- com uma senha pessoal e tudo, então vou poder ocupar o tempo que tenha livre -que não será muito- escrevendo textos, planos de aula e todo tipo de coisa que antes era obrigada a digitar e imprimir aqui em casa...
    Em fim, como vêem, a coisa ficou entre féia e cheia de bons presságios. O negócio agora é achar o equilíbrio e continuar a trabalhar, a crescer, a aprender e a ter paciência com esses furúnculos que a vida faz questão de botar em nosso caminho só para ensinar-nos a ser fortes, corajosos e otimistas... A gente sempre reclama, mas é pro nosso bem. Como sempre, as dificuldades podem parecer um castigo no início, mas se sabemos aguardar e enxergar, no fim veremos que tudo valeu a pena.
    E agora, chega de delongas, que já passei tempo demais longe deste teclado!... Então, aqui vai a crônica desta semana, temperada com o prazer de retomar velhas e libertadoras rotinas.

    É muito estranho perder a mãe...Mesmo estando longe, mesmo brigada, doente ao ponto de não reconhecer-nos, mesmo sem notícias ou aparentemente relegada a um segundo plano pelas correrias e preocupações de nossa vida de adulto, apesar de saber que a sua hora se aproxima e que nada poderemos fazer para evitar a sua partida, mesmo convencidos de que isto será o mais misericordioso e justo para ela, para que não sofra mais, quando a voz do outro lado da linha diz, num tom baixo e contido:
    -Estou te ligando para avisar que a mãe faleceu.
    Alguma coisa pára, fica gelada e muda no fundo do peito, e uma onda de estranheza e torpor percorre cada canto do corpo. Há aquele silêncio, como se a minha irmã e eu tivêssemos ficado a nos olhar durante uma eternidade, tentando acreditar, assimilar... Insantaneamente, uma enxurrada de imagens, sons e episódios vêm à minha cabeça, sobretudo as daquela única viagem que fizemos eu, ela e a minha filha, durante a qual descobri quem a minha mãe realmente era: uma mulher que gostava de se divertir com coisas simples, de compartir as suas experpiências, de rir e descobrir os pequenos milagres ao nosso redor... Em oposto a estas visões e sensações, não consigo deixar de imaginar seu coração agora parado, seu corpo miúdo e tão enfraquecido quieto e frio, seus olhos cintilantes fechados, a quietude da morte invadindo tudo sem despedidas, e aquele sentimento de vazio agiganta-se num sopro monstruoso. A carne, os ossos e o sangue do qual fui gerada deixaram de existir, a corrente se rompeu e eu fiquei aqui, estupefata, órfã, ainda mais do que quando meu pai morreu, porque naquela ocasião eu tive uma espécie de aviso, de pressentimento, algo como a sua voz cochichando em meu ouvido, lá no fundo: "Eu já cheguei lá, não se preocupe, estou bem", e aquele sonho em que alguém aparecia para mim contando-me que ele havia falecido... Porém, na hora em que a minha mãe partiu eu estava trabalhando, na rua, fazendo meu jogo da mega sena, preocupada com a apresentação do fim de semana, participando de outra reunião enfadonha e frustrante... Contudo, curiosamente, tudo naquela quarta-feira deu certo, como se mãos invisíveis clareassem os caminhos para que meus planos corressem sem tropeços. Nenhum pressentimento sombrio empanou meu da, nenhum aviso, nenhuma repentina sensação de perda, mesmo estando consciente da gravidade do seu estado (quase morreu quando estávamos no Chile, mas ainda superou aquela crise e continuou resistindo) Nâo, ao contrário, foi um dia próspero e otimista, sereno, pleno de bons presságios, como ela mesma... Agora estou convencida de que era a minha mãe despedindo-se, ensinando-me a sua última lição: "Acredite, porque tudo tem seu tempo. Não há mal que por bem não venha"... E foi desse jeito que me senti ao longo da jornada, cheia de disposição e inspiração, de otimismo... Inclusive agora, mesmo depois de ter escutado as palavras da minha irmã e ser lentamente tomada pela estranheza e o negro vazio da orfandade, uma faísca, em algum lugar, ainda mantem-se acessa e quente, mesmo ameaçada pelo vento do meu desconsolo... Vem um nada, uma apatia, um agir automático, lento, contido. Os olhos marejam e sinto o abraço firme e emocionado da minha filha segurando os pedaços do meu coração. Alguma coisa imensa e dolorosa, assustadora, entala em minha garganta, sufocando-me quase. Parece que alguma parte do meu corpo foi arrancada, algo nas entranhas, lá no fundo, no primordial, no instintivo, e aquele buraco cresce, cresce e me devora... O mundo ao meu redor fica distante, opaco. Agora não me falta tão somente a pátria, mas também a minha mãe... E como elas significam a mesma coisa, percebo neste instante! Em Santiago me sentia como se estivesse nos braços da minha mãe, sendo acariciada por ela, escutando a sua voz, sentindo seu perfume, aspirando seus ares, compartindo as suas lembranças... A mãe pátria, a terra que me viu nascer e crescer, que me amparou e me ensinou, que jamais me abandonou, que esteve sempre perto, acolhedora e compreensiva, real, forte, inabalável apesar de terremotos e doenças, que continuava inteira e íntegra apesar do tempo e da distância. Tetrra e mãe que trago dentro de mim com uma marca indelével, que contém o que sou de mais verdadeiro e eterno... Regressar a Santiago -não só à minha rua ou a minha casa, mas à cidade e tudo que ela é material e espiritualmente- foi mesmo como regressar para os braços da minha mãe, por isso tudo de ruim que havia em mim desapareceu como por encanto e nada conseguiu me perturbar. Por isso a minha paz e felicidade eram perfeitas. Estava, finalmente, de novo, feito um guerreiro que retorna da batalha, no colo conhecido e regenerador da minha mãe...
    Agora só me resta a mãe pátria, e ela há de preencher o vazio que a outra mãe acabou de deixar.
    Acho que foi por isso que ela não se manifestou de outras formas ao morrer. Já o havia feito através da terra, do ar, dos dias de sol, das paisagens e sons que me envolveram e embalaram ao longo dos doze dias que passamos em Santiago... Que presente precioso! Quanta delicadeza da sua parte! Como antes de partir me deixou nos braços da minha mãe pátria!... Nâo podia ter escolhido uma despedida melhor, mais cheia de significado!... "Gracias, mamachita!."

Um comentário:

Anônimo disse...

Ao comesar ja me emocionei muito chorei como um bebe,a angustia veio a atona tudo mudou dentro de mim emarrepiava a cada palavra e estou parado imovel...