domingo, 2 de junho de 2013

"Contagioso"

    Bom, imagino que vocês também sabem o que acontece quando saímos de férias, nem que seja por quatro días... A gente arruma a mala e bota o caderno de rascunhos, a caneta e o laptop, totalmente convencida de que arranjará um tempinho para sentar-se num daqueles aconchegantes cantinhos do hotel para escrever muito porque, no fim das contas, Valparaíso -cidade na costa chilena- é um lugar cheio de coisas extraordinárias, com uma arquitetura esplendorosa, mesmo se decadente, encarapitada em mil morros cheios de escadarias e ruelas pixadas onde é muito fácil se perder e também se inspirar... No entanto, assim que chega no hotel, joga as malas em cima da cama e vai se reunir com a turma para comecar a planejar o roteiro de visitas, restaurantes, elevadores, passéios, praias e lugares que nao se pode deixar de conhecer, a gente comeca a desconfiar que nao vai ter tanto tempo e sossego quanto achou para ficar no terraco olhando para o mar e escrevendo alguma coisa... E efetivamente, após días cheios de turismo, subidas e descidas vertiginosas, milhares de fotografías e percorridos maravilhosos por lugares inesquecíveis -como a casa do poeta Pablo Neruda, que é um delirio em cinco andares- o único que a gente quer mesmo quando chega num daqueles aconchegantes cantos do hotel é se jogar no sofá mais próximo e ficar em estado de choque de tan cansada. E nao é que nao tenha idéias para escrever, mas o cansaco e a informacao sao tantos que seriam preciso alguns días para procesar tudo e botá-lo no papel. Nao é que nao tenha  feito alguns rascunhos interessantes, mas parar para postá-los lá me pareceu um crime, sobretudo considerando que tínhamos tao pouco tempo para curtir Valparaíso e suas peculiaridades históricas e prosáicas... Entao, material para desenvolver tenho, e vou aproveitar estes días de chuva -ainda bem que retornamos  à Santiago bem antes de que caísse o segundo dilúvio universal por lá- para trabalhar neles e assim nao me sentir tao culpada por só curtir e esquecer meus deveres literários.
    E já de volta às deliciosas rotinas que fazem da nossa vida um encanto, quando nao a destróem, aquí vai a crónica da semana:
 
 
    Lá vem ele, arrastando seu corpo gordo e desengoncado como se fosse um fardo insuportável, com as suas surradas sandalias marróm e as encardidas meias de algodao branco, óculos embacados de gordura, cabelos oleosos e em desalinho, olhos de total desinteresse, as costas vergadas como por  um peso invisível e insuportável. Caminha sem rumo determinado, levando dois poodles brancos presos a umas corréias que pendem feito algas secas das suas maos morenas. Nao fala com ninguém -pois apesar de que vem quase todo dia passear por aquí, nao parece ter feito amizade com nenhuma das pessoas que estao sempre no lugar- e está o tempo todo com aquela expressao de tédio mortal. Trazer os cachorros para passear pela manha , nao muito cedo, parece ser algum tipo de dolorosa punicao imposta por uma mulher impiedosa ou uns filhos tiranos à qual ele se submete dócil e resignadamente... Sinceramente, no o imagino discutindo com ninguém para defender alguma opiniao própria. Nao, este parece ser alguém a quem já nada lhe importa, que passa seus días jogado numa poltrona assistindo televisao e só levanta para comer, dormir ou ir ao banheiro. Quando lhe perguntam alguma coisa mais resmunga do que responde, mas imagino que a sua opiniao nao debe ser muito requerida, entao permanece em silêncio, com a mente vazia, o corpo mole, sem vontade de nada...
    No entanto, o que realmente me entristece quando cruzo com ele, sao aqueles dois poodles. Os coitados têm uma expressao tao aborrecida e caminham com tanto desânimo! Nem sequer puxam a corréia para dar umas alegres corridinhas atrás das pombas ou retozar na grama. Nao, ao invés disso vao por aí soltando uns suspiros de dar dó, sobem apáticamente nos canteiros para fazer as suas necesidades e em seguida retornam junto do seu dono com passinhos tímidos e inseguros, como se tivessem vergonha e pena do humano ao qual sao obrigados a acompanhar. Mas eu acho que, no fundo, o que devem sentir por ele debe ser um tremendo ressentimento, já que é seu comportamento chato e parado o que determina o ritmo do passéio e, mesmo que estejam zangados, nao podem evitar parecer-se com ele. Acredito que já estao até conformados, entao vao por aí, cabecas baixas e rabos caídos, orelhas murchas, olhinhos úmidos de secreta ansiedade, caminando sem vontade por entre o mar de gente que circula pelo passéio, imitando com íntimo rancor a este dono sem graca e desenganado da vida.
    Eu os vejo pasar e me espanto ao comprobar como o ser humano tem a incrível capacidade de contagiar tudo que o rodéia com seu carisma. Quartos, locais de trabalho, noivos, animais, filhos, carros, jardins, tudo reflete seu estado de espírito, as suas crencas, seus sonhos, suas decepcoes e frustracoes, a sua raiva, sua felicidade. Se o nosso espírito está em caos, tudo ao nosso redor será uma total desorden. Se estamos felices, a nossa casa se verá iluminada e harmoniosa. Se temos bom humor, as nossas mascotas usarao colheiras e lencos coloridos e com estampas divertidas. Se estamos apaixonados, botaremos flores na janela... Assim, nosso caráter é, efetivamente, contagioso porque, queiramos ou nao, tinge o mundo em que vivemos e às pessoas com quem nos encontramos e convivemos, afeta tudo e a todos. Muito -ou talvez tudo- pode ser dito sobre nós observando nosso cenário, por isso temos que trabalhar e nos esforcar para estarmos bem, para que acontecimentos e pessoas positivas facam parte da nossa vida, para cultivar a compaixao, a generosidade, a responsabilidade, a gentileza e a boa vontade, pois deste jeito tudo que se relacione conosco será um presente para o mundo e contribuirá para a sua paz e felicidade.
 
 

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