sábado, 13 de setembro de 2008

Lembranças

Do que vivemos, à medida que o tempo passa, senão de lembranças? Isso não é coisa de velho, como poderia se crer, mas coisa de história, de experiência, de valorização e avaliação. Quanto mais tempo vivemos maior é o nosso acervo de recordações para guardar e transmitir aos que virão depois de nós e para levar conosco quando partirmos. Porque, para falar a verdade, elas são realmente o único tesouro que possuimos no fim, algo que nada nem ninguém pode nos tirar, a riqueza imaterial que não apodrecerá junto com o corpo... E é assombrosa a variedade, a fidelidade e o prazer que estas lembranças podem nos trazer!... Relembrar pessoas e fatos do nosso passado nos provoca uma sensação na qual se misturam a nostalgia, a alegria, a análise e a perspectiva; às vezes o perdão, outras a revelação e a paz, umas poucas o remorso e quase sempre a certeza do crescimento, do conhecimento, da consciência das nossas raízes e aspirações, tenham elas sido realizadas ou não.
Lembro-me do mestre sapateiro, do qual sempre só tive a visão da metade do seu pequeno e obeso corpo, pois as pernas e pés estavam sempre escondidos atrás do avental de couro e da pequena e entulhada mesa de madeira na qual trabalhava. Lembro do cheiro peculiar da sua pequena oficina, coberta de parede a parede por prateleiras nas quais se amontoavam centenas de sapatos, botas, sandálias, tamancos, chinelos, pedaços de couro, de sola, sacolas plásticas, vidros com pregos e cola: era um cheiro onde se misturavam a cola, o suor, o couro, a graxa, o plástico e às vezes bife, arroz, batata ou macarrão, dependendo da marmita do dia... Lembro-me da enorme cúpula de metal que coroava um dos corredores do parque João XXIII, na qual crescia, enleada aos ferros, aquela trepadeira de flor da pluma, que na primavera se enchia de pequenas, delicadas e docemente perfumadas flores cor lilás, que embalsamavam todo o espaço. Eu adorava sentar em seu tronco -que com o passar dos anos tinha-se tornado uma espécie de berço-trono grosso, cheio de nervuras e lustroso feito mármore, flexível e convidativo- e desde ali olhar para a cúpula, semeada de folhas verdes e flores lilás, e além, para as nuvens, os pássaros, o sol. Mil histórias passavam pela minha cabeça enquanto balançava de leve nos braços da trepadeira... Lembro-me da bruma densa que, nas geladas manhãs de inverno, cobria aquele enorme campo ermo que eu devia atravessar logo cedo para chegar à escola. Adentrar nela era como sair da realidade e submergir-se em alguma dimensão sem tempo nem espaço, numa perturbadora incerteza, numa espécie de sonho que quase beirava no perigoso. Havia dias -dependendo de quão sonolenta eu estivesse- em que eu era tomada por aquela sensação alucinante de não ter realmente acordado, de ter errado o dia, a hora, o planeta, e só quando começava a divisar ao longe outras silhuetas indo na mesma direção e a massa cinzenta e branca dos prédios da escola, finalmente voltava a respirar tranquila e a me sentir de novo no mundo que conhecia e do qual fazia parte... Lembro-me da casa branca com persianas e sacada de madeira vermelha de Quinteros, seu terraço de pedras e cadeiras de lona e aqueles canteiros de hortênsias escandalosamente grandes e coloridas enfeitando a cerca de troncos e as paredes laterais; lembro da violenta ventania que se levantava todo dia ao entardecer -e que era a marca registrada da cidade- Ao vê-la chegar eu e a minha irmã corríamos para sentar nas cadeiras de praia do terraço, embrulhadas em cobertores até as orelhas, e ficávamos ali, deixando que o vento e a areia nos açoitassem e penetrasssem por todos nossos poros -apesar dos cobertores- dando risada e vendo quem agüentava mais tempo antes de fugir para o conforto e a proteção da casa... Lembro dos caminhos e das fazendas de Cholqui, das ruas interioranas de Melipilla, lembro da Praça Ñuñoa e seu coreto de pedra, de seus bancos de madeira verde, do pátio da igreja de tijolos vermelhos, da gruta de Lourdes e as suas santas mil vezes repintadas... Lembro da escolinha onde comecei a desenvolver meu talento para o desenho, e onde tive aulas de ballet. Havia uma sala com o nome da minha avó, Sofia del Campo, famosa cantora de ópera, o que significava que, sendo as suas ilustres netas, não pagávamos mensalidade... Lembro da Casa de Cultura e seus jardins tranqüilos e sombreados e suas estátuas brancas. Lembro especialmente daquela que retratava uma mendiga com uma criança, a mão estendida a pedir esmola enquanto tentava se proteger do vento, um vento cruel que desarrumava seus cabelos e brincava com as suas roupas velhas e rasgadas e congelava seus pés descalços. A criança, encolhida e de angustiada expressão, tentava se proteger sob os farrapos do seu manto... Era menor que as outras esculturas e não estava num lugar de destaque, porém, era a que mais chamava a minha atenção, justamente pelo fato de ser tão diferente das outras, tão cheia de vigor e veracidade, ao contrário dos pretensiosos deuses, efebos e virgens que a rodeavam com seus corpos perfeitos e as suas expressões vazias... Avenida Irarrázaval, Pedro de Valdívia, Vicuña Mackenna, convento de São Francisco e seus mil pássaros em constante concerto no meio das árvores perfumadas e frondosas, o claustro das Carmelitas de Pedro de Valdivia e seu poço de pedra, as salas de visita silenciosas, sempre em penumbra, guardadas pelos quadros dos santos da ordem e as grades quadriculadas que separavam as freiras do mundo exterior... A casa da madrinha -a "Minina", como a chamávamos, apesar dela ser, na verdade, a madrinha da nossa mãe- com seu pequeno saguão e suas cortinas de renda branca, o corredor de lajotas vermelhas, o minúsculo pátio de luz onde brincávamos de selva no meio dos vasos de plantas e os varais de roupa estendida, a banheira de porcelana com seus pés de leão, a cozinha verde e seu fogão de ferro preto, a sala de jantar com aquela janelinha pequena lá em cima e aqueles quadros horríveis de bichos mortos em meio a alfaces, tomates, cachos de uva ou cerejas e espingardas.... Ruas de pedra-ovo, pombas na torre da igreja dos padres escolápios, a padaria e seus mini-brinquedos na esquina, a loja de cereais e óleo em tambores na outra, o convento das freiras agustinas e seu ar escuro e misterioso, aquelas santas mulheres feito meras sombras atrás das grades da capela, enlevando os nossos corações com as suas vozes celestiais... O quiosque de metal, minúsculo e entulhado com todo tipo de refrigerantes, bolachas, chocolates, pirulitos, latas de conserva, sabonetes, chicletes, balas, vassouras, pães embalados, cigarros, fósforos e outros artigos "de emergência" como papel higiênico e pilhas, onde íamos religiosamente toda manhã comprar a água mineral para o dia...
É muita coisa, é a minha vida toda, e poderia passar o que ainda me resta dela escrevendo sobre tudo aquilo, e isto deixando de lado as lembranças que irão se acumular a cada dia que transcorrer!... O acervo do ser humano nunca está completo, pois a história pode ser contada e recontada infinitas vezes e, seja pelas falhas da nossa memória ou pela constante revisitação, ela sempre terá novos ângulos, novos detalhes, palavras, olhares e gestos que passaram despercebidos no momento em que as coisas aconteceram.
As memórias são tão ricas e proveitosas quanto a observação do presente e a meditação sobre ele, pois todas elas -as memórias e a observação- sempre nos trazem alguma mensagem, alguma lição, algum tipo de crescimento necessário para seguir adiante e lutar apelo nosso aperfeiçoamento.

2 comentários:

Tiago Brizola Vieira disse...

Oi Paz, adorei esta crônica. dê uma olhadinha no meu..
tiagobrizolavieira.blogspot.com´
Até mais, um abraço...

Unknown disse...

Hermanita, me lo lloré todo cuando leí la crónica. Especialmente porque por alguna razón misteriosa me he estado acordando de lo mismo y pensando sentarme a escribir sobre lo mismo......

Gracias por los recuerdos.....

Sofy