Realmente, quando as coisas se definem, parece que nosso espírito e nosso corpo ficam mais leves, melhor dispostos e prontos para encarar -e talvez vencer- qualquer desafio... É assim que estou me sentindo hoje, após a primeira semana de trabalho de verdade, pois finalmente comecei a ir nas escolas dar aulas de teatro e, ao contrário do que eu temia, as turmas que conheci foram simpáticas, bastante disciplinadas e se mostraram extremamente ansiosas e bem dispostas para fazer o trabalho, o que me deixou muito animada (isto, fora um encontro maravilhoso que tive com um zelador de uma das escolas - e acho que já sei quem foi que o pus em meu caminho- e que pretendo contar para vocês em breve). Ainda tenho 5 turmas por conhecer, e são de bairros bastante problemáticos, mas não quero chegar lá cheia de preconceitos ou medos porque, com certeza, eles vão perceber meu estado de espírito e isso não vai ajudar em nada ao nosso relacionamento e menos ainda no trabalho. A coisa é entrar de cara, com o coração aberto e a maior fé do mundo, pois já está provado que o primeiro paso para o sucesso é acreditar que ele virá... E eu acredito em mim e em quem me colocou nesta tarefa, pois Ele deve achar que vou conseguir, então, não pretendo decepcioná-lo. Posso reclamar, xingar e me desanimar às vezes, mas enquanto sentir que há algo maior do que eu me apoiando, vou continuar até atingir meu objetivo (e o do meus chefes, é claro)...
E aqui vai a crônica desta semana:
Aos poucos, vamos nos acostumando com a sua presença em nosso dia-a-dia e nos familiarizando com seus olhos, seu jeito de andar, seu perfume, o tom da sua voz, o estilo das suas roupas; começamos a conhecer seus horários e seu trajeto diário, sua dinâmica e, às vezes, até seu destino ou seu ponto de partida.... Todo dia no mesmo horário, uns minutos a mais ou a menos, e mais ou menos no mesmo local, encontramos os personagens da nossa vida, gente desconhecida com quem cruzamos quase que despercebidamente e com a qual mantemos uma curiosa relação de olhares discretos e silenciosa cumplicidade... A velhinha japonesa, de bengala, chinelo e lenço de seda na cabeça, que passeia todo dia -quando há sol- pelo quarteirão da sua casa. As duas moças que descem de bicicleta para o trabalho e sempre dão uma paradinha embaixo das árvores para fumar um cigarro e pôr a conversa em dia. O catador de papelão com o olho quase coberto por um enorme abcesso que, enquanto aguarda a usina de reciclagem abrir, tira um cochilo na grama da casa em frente, ao lado do seu cachorro. O rapaz com o uniforme da grande loja, impecavelmente passado e a sua identificação pendurada no pescoço, que aguarda no ponto, sonolento e de cabelo ainda úmido, a chegada do ônibus. O ciclista da mochila vermelha que desce a rua velozmente, seguido pelo seu pequeno e saltitante cãozinho, sempre prestes a ser atropelado por algum motorista desavisado. A mulher que sempre volta da feira com um novo vaso de flor. O empregado do açougue que esfrega furiosamente a sujeira deixada pelos clientes do churrasquinho na calçada de lajotas brancas enquanto a dona, atrás do caixa, toda bijouterias, maquiagem e salto alto, o contempla com ar entediado. O dono do pequeno restaurante que, sentado numa das cadeiras do local, espera a chegada da cozinheira -imensa e exuberante, carregando seu avental vermelho atrás do motoqueiro que a traz- batendo papo com algum amigo que passa rumo à padaria. O menino magricela e queimado de sol que chega cedo ao lava-carros em sua bicicleta reciclada e barulhenta e espera o início do trabalho bebendo um café e devorando um pão com manteiga atrás do minúsculo balcão. Os dois amigos, bem acima do peso e suando às bicas, que saem cedo para caminhar pela marginal... E assim, poderia colocar aqui centenas deles, mais ou menos importantes, que encontro todo dia nas ruas, nas lojas, nas praças, nos pontos de ônibus, nas portas das casas, nos balcões dos consultórios e lojas, no mercado, nos bares... Pessoas sobre as quais teço histórias com as informações que a sua rápida passagem por mim me oferece, homens e mulheres com os quais estabeleço um contato tácito, uma espécie de encontro marcado para conferir como vai a vida; gente à qual, após um tempo, acabo cumprimentando com um breve aceno de cabeça ou um sorriso silencioso... Com alguns até já fiz uma pequena amizade através dos seus cachorros, o que em alguns dias nos proporciona uns minutos a mais de agradável conversa...
E tem de tudo neste palco que é o lugar onde moramos: gente alegre, gente carrancuda que até dá medo de encarar, gente distraída, triste e cabisbaixa, gente cheia de energia ou quase que se arrastando pela calçada, jovens e velhos, pobres, abastados, rápidos, lentos, cheios de motivação ou sem sonho nenhum, espalhafatosos e discretos, sorridentes ou profundamente abstraídos pelas suas preocupações. Gente com crianças, com cachorros, com sacolas, embaixo de sombrinhas, de bicicleta, de carro, de moto, a pé, de salto, de tênis, de chinelo, descalça. Pessoas receptivas e pessoas fechadas, gordas, magras, bonitas, diferentes, muito feias ou terrivelmente atrativas... E eu me pergunto, às vezes, como seria a minha vida se estas personagens não formassem parte dela, como ficaria a minha caminhada matinal, por exemplo, se eu não encontrasse a velhinha de bengala e lenço de seda, ou aquelas duas amigas que fazem fofoca e rezam o terço enquanto queimam calorias, ou se eu não cruzasse com a moça séria e de unhas vermelhas a caminho do meu trabalho. Será que a minha ida ao cabelereiro seria igual se eu não encontrasse lá a dona Lúcia e a sua mãe? Ou então, se na feira não estivesse mais a barraca do casal onde compro o alface roxo? De que modo afetaria meu dia não encontrar com aquele rapaz que fica sentado embaixo da caixa d'água do supermercado com o olhar perdido no horizonte?...
Acredito que normalmente não damos a devida importância a este "elenco" que acompanha a nossa jornada, mas se eles repentinamente desaparecessem das nossas vidas, não ficaria um vazio? Pois não formam eles parte das nossas experiências, do nosso aprendizado? A sua existência não se entrelaça com a nossa de alguma forma, nem que seja por alguns segundos, enquanto passam por nós? E nós, não formamos parte da sua dinâmica, do quadro no qual se movem, da paisagem que os rodeia e que se comunica com eles?... A brevidade não é sinônimo de pobreza ou superficialidade, não quer dizer que não pode acontecer um contato -um encontro diário, mesmo que breve, pode acabar criando um tipo peculiar de intimidade- uma cumplicidade, uma partilha. A brevidade pode ter qualidade e estas personagens, que mantêm estes curtos encontros conosco podem, às vezes, fazer toda a diferença no nosso dia-a-dia.
sábado, 25 de abril de 2009
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